sábado, 25 de setembro de 2021

A Revolução Cubana, a Sandinista e o socialismo pacifista do chileno Salvador Allende

A Revolução Cubana, a Sandinista e o socialismo 
pacifista de Salvador Allende



Três grandes momentos revolucionários na América Latina do século XX

(Arquivo oferecido aos alunos do Curso Espejo Enterrado)


Depois da Revolução Mexicana - que na realidade foram duas, simultâneas- as revoluções Cubana e Sandinista, e a tentativa frustrada no Chile de Allende, representam projetos que vamos a analisar em suas semelhanças e diferenças: 

A Revolução Cubana foi um movimento popular, que derrubou o governo do presidente Fulgencio Batista, em janeiro de 1959. Como consequência do processo revolucionário, foi implantado em Cuba o sistema socialista, com um governo liderado pelos dirigentes do movimento revolucionário: os irmãos Fidel e Raúl Castro, o Che Guevara e Camilo Cienfuegos, que morreu pouco antes da constituição do governo popular.

A Revolução Sandinista foi uma revolução popular ocorrida na Nicarágua entre 1979 e 1990, dirigida pela Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) - chamada assim em memória ao líder nacionalista Augusto César Sandino, que depôs o então presidente Anastasio Somoza Debayle. A FSLN liderou a primeira revolução em que se aliaram o cristianismo de libertação e os intelectuais marxistas, e governou o país durante onze anos.

O Governo Allende. Em 1970 Salvador Allende foi eleito presidente do Chile pela Unidade Popular. Esse agrupamento político era formado por socialistas, comunistas, setores católicos e liberais do partido Radical e do Partido Social Democrata, e contava com grande apoio dos trabalhadores urbanos e dos camponeses. O governo Allende pretendia construir uma sociedade socialista em liberdade, pluralismo e democracia, respeitando as instituições burguesas e sem violência popular, e estava comprometido com o processo de nacionalização da economia, a reforma agrária e a elevação do nível de vida dos trabalhadores. Allende e a UP acreditavam que as reformas sócio econômicas graduais iriam fortalecer as massas trabalhadoras e ao mesmo tempo destruir o predomínio econômico e imperialista, a caminho da construção de uma sociedade socialista.

Durante o primeiro ano de governo ocorreram importantes mudanças, como a reforma da Constituição de 1971, que passou a considerar como propriedade do estado todas as riquezas do subsolo, o que incluía o cobre, uma das fontes principais de ingressos das classes dominantes chilenas e seus sócios no exterior. No entanto, as pressões do imperialismo e das elites chilenas passaram a ser mais sentidas a partir do ano seguinte, com o lock-out dos proprietários de caminhões, responsável pela grave crise de abastecimento que se seguiu, e uma série de boicotes contra o governo popular. A importante vitória da Unidade Popular em 1970 e as medidas progressistas do governo desde então, porém, não eram garantia de poder completo e total, uma vez que as demais instituições do estado - o Congresso e o Poder Judiciário - continuavam controladas com punho de ferro pela burguesia. As forças da esquerda exigiam maior radicalização para superar os obstáculos, enquanto que os setores conservadores do próprio governo pediam maior flexibilidade para salvar as dificuldades. Nesse sentido Allende incorporou ao ministério alguns militares legalistas, conseguindo uma estabilidade institucional transitória, o que permitiu a Unidade Popular vencer nas eleições para o Congresso Nacional de março de 1973.

A partir de junho desse ano, porém, a reação conservadora ficou mais intensa, produzindo levantes militares, diversos atentados terroristas, greves e lock-outs patronais. Existiam também as diversas visões internas dentro do governo, uma vez que a Unidade Popular era uma frente política de vários partidos e tendências diferentes da esquerda. Enquanto o Partido Comunista defendia a via pacífica para o socialismo, apoiando as táticas de Allende, o MIR (Movimento de Izquierda Revolucionário) realizava maior pressão pela radicalização, e preparava ações armadas em vista de um processo violento de defesa do poder popular. Havia no Chile uma ilusão com as Forças Armadas, já que, na história do país quase que não haviam interferido diretamente no processo político. 

A Doutrina Truman e o medo a Revolução Cubana, porém, fizeram com que núcleos fascistas crescessem dentro da estrutura militar que, apoiada pelos EUA seria a responsável pelo golpe de 11 de Setembro, que derrubou o governo popular. O golpe começou em Valparaíso com o levante da Marinha no dia 11 de setembro com a adesão, em Santiago, das três armas e do Corpo de Cabineiros, comandados pelo general Augusto Pinochet. Os confrontos terminaram em massacre nos bairros operários e nas fábricas ocupadas, com cerca de dez mil mortos e milhares de prisões; o ataque ao Palácio de La Moneda, onde Allende resistiu e acabou morto, completou a vitória da extrema direita e da CIA sobre as forças populares chilenas.

Semelhanças e diferenças entre a Revolução Cubana e a Nicaraguense

A revolução em Cuba no final da década de 1950 foi resultado de uma insatisfação popular com o longo processo de dependência político-econômica da ilha caribenha em relação aos Estados Unidos, desde a ruptura dos laços coloniais com a Espanha em 1898.

A ascensão de Fulgencio Batista ao comando do Estado cubano, por meio de um golpe, em 1952, instaurou uma ditadura apoiada pelo governo dos EUA, o que agravou ainda mais uma situação de ausência de liberdade política, de democracia efetiva e de condições dignas de existência para a maioria da população. Sucederam-se diversas tentativas políticas de caráter insurrecional contra o regime do ditador Batista, até culminar com o assalto fracassado ao quartel Moncada, em Santiago de Cuba, no ano de 1953, e a organização de atividades guerrilheiras em Sierra Maestra, a partir de 1956, até culminar com a tomada do poder pelos revolucionários, em janeiro de 1959.

A principal figura de oposição a Fulgencio Batista durante todo esse processo, e líder da Revolução Cubana, foi Fidel Castro, que contou com o apoio de distintos segmentos sociais urbanos e rurais, sobretudo destes últimos, insatisfeitos com as condições de atraso econômico e com o autoritarismo governamental amparado por forças imperialistas norte-americanas. Para unir amplos setores da sociedade, o centro de gravidade da revolução ficava, inicialmente, na libertação nacional. Posteriormente, na tentativa de consolidar as premissas da revolução, à concepção de independência da nação se acrescentou a edificação de uma ordem social inteiramente nova, a sociedade socialista. A Revolução Cubana foi marcada pela longa duração, e por uma liderança de um pensamento social e político tão consistente que transfere seus resultados e consequências até as décadas mais recentes. Mas, apesar dos êxitos iniciais do processo revolucionário em relação à conscientização e ao enorme envolvimento político e cultural da sociedade cubana, a partir de 1970, já numa segunda fase, o pensamento social sofreu pelas mudanças das condições internacionais, que provocaram a detenção do seu desenvolvimento, e um grande empobrecimento e tendências internas à dogmatização.

Tudo isso teria resultado no endurecimento do controle do Estado em relação à sociedade, na tentativa de manutenção dos preceitos da revolução diante de um cenário de crescimento das críticas ao comando do governo, cada vez mais vinculado às diretrizes políticas e econômicas dos EUA, que agravaram o bloqueio à ilha e incentivaram a participação crescente dos soviéticos na vida da revolução.

Por sua vez, na Nicarágua, a Revolução Sandinista de 19 de julho de 1979 foi resultado de um acúmulo de forças sociais heterogêneas – tanto camponeses, como operários, e pobres e marginalizados em geral da cidade e do campo, intelectuais e setores progressistas da burguesia nacional – em torno de um objetivo comum: acabar com a ditadura da família Somoza no país, e abrir caminho para a emancipação da sociedade nicaraguense da oligarquia local e do imperialismo dos Estados Unidos. O movimento de caráter popular e anti-imperialista da oposição ao governo de Anastasio Somoza Debayle foi canalizado pelo grupo politicamente mais organizado, a Frente Sandinista de Liberación Nacional. O FSLN dotou a luta popular de uma perspectiva revolucionária, que culminou com a revolução de 1979 e encerrou décadas de ditadura somozista na Nicarágua. O movimento revolucionário se inspirou em Augusto César Sandino, líder guerrilheiro dos anos 1920 e 1930, que combateu contra a ocupação norte-americana no país. Assim como em Cuba, os termos do socialismo na Nicarágua foram adotados ao longo e no transcorrer da rota de desenvolvimento da questão nacional nicaraguense. Também em comum com as estratégias revolucionárias praticadas duas décadas antes em Cuba houve, na Nicarágua, a opção decidida e praticada foipela luta armada, embora na Nicarágua esse processo curto terminasse três anos depois pela via eleitoral.

Tanto a Revolução Cubana de 1959 como a Revolução Sandinista de 1979 tiveram um impacto eletrizante, que repercutiu muito além das fronteiras de ambos os países, levando à proliferação de movimentos socialistas e nacionalistas, a maioria deles armados, em diversas regiões da América Latina, durante as décadas de 1960, 70 e 80. A diferença das ações tomadas contra Cuba, a partir da revolução sandinista, os EUA reagiram ao avanço popular com embargos econômicos e financiaram as milícias armadas dos chamados “Contras”, organização paramilitar formada pelos setores que tinham se beneficiado da ditadura somozista no passado, e organizaram um exército que colocou o país em situação de guerra novamente. 

O financiamento dos “Contras” provocou uma séria crise no governo Reagan que propiciou desvios de recursos não autorizados pelo Congresso. Depois de anos de batalhas, os EUA e o exército mercenário dos Contras conseguiram desgastar o governo popular. A população, cansada de guerra, exigia paz e optou pela articulação conservadora nas eleições de 1990. Um pleito presidencial financiada também pelos estadunidenses e questionada internamente e fora do país. A FSLN se transformou num partido político de esquerda, legalizado e as conquistas da revolução sandinista foram perdidas pela ausência de incentivos ao pequeno agricultor que perdeu as terras conquistadas, pelo aumento da taxa de analfabetismo, o que levou a que os índices de desenvolvimento ficassem no segundo pior da América Latina, a dependência econômica aos EUA, como um país sem soberania. As lições desta revolução mostram as características da luta de classes e do projeto popular numa realidade social em que a democracia foi conquistada às duras penas, mas onde não foi o suficiente para manter um projeto popular e de soberania nacional. Essas duas experiências revolucionárias - a cubana e a sandinista- foram analisadas também por renomados escritores, como Julio Cortázar, Mario Benedetti e Eduardo Galeano.

JV. 2020


segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Lua engana-nos — e tem uma cicatriz no nome.

 

Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

A Lua engana-nos — e tem uma cicatriz no nome.

Nestas férias, numa daquelas noites de Verão que apetecem e de que já começamos a sentir saudades (e nem Setembro chegou ao fim), o meu filho Matias, de três anos, apontou para a lua cheia e disse, a rir: «Olha um senhor!».

Também eu, há muitos anos, olhava lá para cima e encontrava um velho a olhar para nós, cá em baixo. O Homem da Lua é um velho companheiro da humanidade… A mais conhecida imagem é a do filme de Georges Méliès, Le voyage dans la Lune (1902), em que o tal senhor da lua tem uma nave no olho.

A culpa é da pareidolia, a nossa tendência para ver padrões onde não existem mais do que (neste caso) manchas aleatórias — se olharmos o tempo suficiente para nuvens ou para rochas, também começamos a encontrar objectos e pessoas.

A Lua, que nos acompanha desde sempre, engana-nos de mais maneiras. Quando está perto do horizonte, por exemplo, todos a vemos como se fosse muito maior do que quando está um pouco mais acima.

Se usarmos uma régua ou uma moeda para comparar, vemos que o círculo não aumenta nem diminui — mas todos conhecemos a lua gigante (e muitas vezes laranja) de certas noites… O nosso cérebro tem ali qualquer coisa que interpreta a lua como sendo muito maior do que realmente é.

Por fim, a maior ilusão de todas: a Lua e o Sol parecem ter o mesmo tamanho. Aos humanos que pensavam nestas coisas há uns bons milhares de anos, pareceria perfeitamente natural que o rei dos dias e a rainha das noites tivessem o mesmo tamanho. Tanto assim é que a Lua consegue tapar o Sol perfeitamente durante um eclipse total.

Na verdade, a Lua é 400 vezes mais pequena que o Sol — só que também está 400 vezes mais perto da Terra… O que pareceria algo natural na pré-história parece-nos hoje, que sabemos a real dimensão destes astros, uma extraordinária coincidência.

A origem da palavra «lua»

Não é só o astro ou a forma como o vemos que nos espanta. O nome que lhe damos tem muito que se lhe diga. Em português, por exemplo, a Lua faz-se acompanhar de um capricho ortográfico: escreve-se com maiúscula se se referir ao satélite natural da Terra e com minúscula se se referir à forma como nos aparece à noite — assim, digo «Hoje está lua cheia!», mas afirmo que a Humanidade já chegou à Lua. A palavra também se escreve com minúscula quando se refere a satélites em geral, como «as luas de Júpiter».

Mas e o nome da Lua, de onde veio? A nossa palavra veio do latim, ali direitinha pelos séculos fora. Pelo caminho ficou com uma cicatriz — mas já lá vamos. Antes, escavemos um pouco mais fundo. A palavra latina «luna» terá vindo do proto-indo-europeu, a língua que deu origem a quase todas as línguas da Europa (e arredores), reconstruída pelos linguistas nos últimos 200 anos.

Nessa língua, haveria duas formas de designar a lua: a primeira, mais comum, era «*mḗh₁n̥s», que derivava do verbo com o significado de «medir» —  a lua servia para medir o tempo… A mesma palavra era usada para designar a subdivisão do ano e, com esse significado chegou até nós na forma «mês». Foi a partir do mesmo vocábulo que apareceu também o nome inglês «Moon» — e muitas outras luas por essa Europa fora.

A outra palavra, que tudo indica ser usada em discursos mais poéticos, era «*lówksneh₂», que significava algo como «objecto brilhante» (aliás, a raiz desta palavra também nos deu vocábulos como «luz»). Com o debastar constante das línguas pelos séculos (sempre compensado com materiais que se vão juntando noutros pontos do léxico ou da gramática), esta palavra acabou na «luna» latina.  

A cicatriz da palavra

Pois bem: a «luna» latina continuou a ser dita pelos séculos fora, até hoje, sem grandes alterações. Começando pela «lună» romena e passando pela «luna» italiana, a «lune» francesa, a «lluna» catalã, a «luna» castelhana (há mais umas quantas pelo caminho, eu sei), chegamos à «lua» do galego e do português.

A palavra é a mesma, mas com uma ferida que há muito cicatrizou: falta-lhe a letra N e, na boca dos falantes, o som correspondente.

Os falantes de latim ali para o noroeste da Península, em séculos tão recuados que nem Portugal havia, começaram a deixar cair os sons representados pelas letras N e L quando estes aparecessem entre vogais.

Porquê? Não se sabe. Pode ter sido influência de língua anterior, falada por aquelas bandas, ou talvez uma moda que pegou até se cristalizar no português. O certo é que dizemos «lua» e não «luna». 

Mais tarde, quando importámos palavras do latim ou doutras línguas latinas, trouxemo-las com as letras perdidas — e assim ficámos com «lunar» ao lado de «luar» e de «Lua». A língua é feita assim, da mistura de materiais com origens e percursos que nem imaginamos quando usamos as palavras.

Para lá dos nomes que damos às coisas, há a imaginação, as histórias que contamos, a vontade de lá chegar. Sugiro a leitura do livro A Lua É Um Romance, da astrónoma francesa Fatoumata Kebe (publicado em português há poucos dias, com tradução de André Tavares Marçal). O livro conta os mitos e histórias que fomos tecendo sobre a Lua — e ainda explica tudo o que sabemos sobre a sua origem (do astro, não da palavra).

Ainda nem passadas sete décadas do filme de Méliès, chegámos mesmo à Lua, alunando não num olho, mas no Mar da Tranquilidade. Sobre esse feito, sugiro o surpreendente documentário Apolo 11, de Todd Douglas Miller (2019). Foi composto exclusivamente com imagens de arquivo — e deixa-nos de boca aberta, mesmo sabendo como acaba a história.

A história, na verdade, não acaba. Havemos de lá voltar — e, entretanto, haverá sempre uma criança a olhar para a lua, a imaginar e a fazer perguntas.