terça-feira, 1 de outubro de 2024

Escatologia, nos dicionários e na vida

Tal como me contou Pepito, sem tirar nem por. Escatologia, segundo os dicionários que mais frequento -os de língua portuguesa (Diccionário UNESP do Português Contemporâneo, e Dicionário Escolar da Língua Portuguesa da ABL) e espanhola (Gran Espasa Ilustrado, Pequeño Larousse Ilustrado e Diccionario Enciclopédico Argentino, Hispanoamericano y Universal Ilustrado) significa algo assim como uma teoria sobre o que vai acontecer depois do fim do mundo e da humanidade. Nada mais adequado e pertinente em épocas de negacionismo, terra plana, duendes queimando as florestas e bosques de meio planeta (sim, não só no Brasil, lembremos disso, cidadãos umbiguistas). Mas nas grandes enciclopédias e dicionários da língua inglesa as definições focam mais sobre o interesse doentio de certos indivíduos em saber -e até praticar- o “tratamento de matérias obscenas, principalmente na literatura” (Webster New Encyclopedic Dictionary). Ou sobre “resíduos sólidos do corpo humano, sobretudo” (Illustrated Oxford Dictionary). E também o “interesse sórdido em excrementos, e na literatura que trata do aparelho excretor” (Macmillan English Dictionary). Na língua espanhola, o DRAE (sim, o dicionário-Bíblia daquela que “o dicionário aquela que “Limpia, fija y da esplendor”) começa dizendo que é a parte da teologia que estuda a vida depois da morte; ou, dito daquele modo que os latinos, e sobretudo os hispanos mais gostamos, trata-se de um conjunto de crenças e doutrinas referentes à vida de “ultratumba”, dito de outra maneira, “a vida para além do túmulo”. Pois bem, essa semana que passou, e custei muito a digerir ambos os fatos que vou passar a relatar, Pepito me contou que viveu um par de experiencias que confirmam a relação entre uma e outra acepção do termo em questão: a Escatologia. Algum leitor piadista de mal gosto -talvez ele mesmo um ser escatologico- relacionará a dificuldade em engolir às más experiências com o tema que nos ocupa. Esqueçamos as provocações e voltemos outra vez à etimologia. Palavreja que provém do grego antigo, éskhatos, que significa "último", e -logia que, já sabemos desde a escola, significa "estudo", nos levam a pensar na vida após um dilúvio, ou simplesmente após a morte individual de cada um de nós. O outro significado, aquele que junto com muitos outros adjetivos poderia definir muito bem ao ex-presidente inelegível, o capitão negacionista e amante dos golpes militares, vem do também antigo grego eskatós, que por sua vez significa fezes ou excrementos. Ou seja, dois significados distintos que vou utilizar para contar dois fatos diferentes e semelhantes que aconteceram com o meu amigo Pepito, o primeiro no sábado retrasado, e o seguinte na segunda feira. Tragédia Um: dois bandidos fora do comum para quem mora em São Paulo, Buenos Aires ou no Rio de Janeiro, -loiros, altos, magros, sarados, falando fluentemente a língua do Master, o inglês com sotaque de chiclete de framboesa, e vestidos de camisas de mangas curtas- entraram em um congresso desses que tanto gosta Pepito de participar. Tratava-se no encontro da independência e o progresso tão desejado pelos nossos países da América Latina e da África, com brilhantes representantes das ancestrais lutas populares pela emancipação dos povos de toda opressão e exploração. Os dois bandidos, loiros, altos, magros e vestidos de Testemunhas de Jeová, entraram no recinto em que Pepito ouvia atentamente as falas de nobres lutadores populares; não levavam bíblias nem armas, instrumentos que caracterizam hoje ao estelionatário, assaltante de pobres, e ao bandido comum. Não, levavam apenas gravadores e filmadoras, e tão impávida e descaradamente como haviam entrado, os dois representantes da CIA saíram. E o que tem a ver isto com escatologia em qualquer uma das duas acepções dos dicionários? Existe a CIA? Ou ela é apenas uma invenção de Hollywood? Sim, claro, a CIA existe. A Central Intelligence Agency, é o serviço de inteligência dos Estados Unidos, com sede em Langley, Virginia. A CIA recolhe informações de diversas fontes, e avalia se elas ameaçam a segurança dos Estados Unidos e/ou seus aliados e informa os responsáveis -geralmente o Pentágono, onde se centra o cérebro militar da grande potência, para que sejam tomadas as medidas cabíveis, quase sempre vinculadas a represálias, ações armadas, invasões, bombardeios sobre populações, prisões ilegais e assassinatos de autoridades ou de simples cidadãos opositores ao seu “American life style”, ou “American dream”. E, outra vez: o que tem a ver a CIA e a anedota trágica do Pepito com a escatologia em qualquer uma das duas acepções dos dicionários? Bom, a CIA representa ambas visões ou versões da palavra, em suas duas origens gregas: é o fim do mundo, da humanidade e das civilizações pela sua relação com a guerra, as agressões imperialistas, as bombas e a destruição de mulheres, crianças e homens. É o fim dos tempos e, em certa medida, das esperanças da aventura humana na terra. Ao mesmo tempo, transita pelos túneis da coprologia, os intestinos do sistema, por debaixo das leis e as convenções, fedendo como as mais malcheirosas ações humanas, as mais desavergonhadas atividades de espionagem, traições, enganos e armadilhas que uma instituição de um estado que se considera a polícia do planeta pode desenhar e produzir contra outros estados e cidadãos do mundo. Dito tudo o que foi dito, vamos logo para a segunda desgraça do Pepito durante a semana que passou: acontece que por causa de uma sequela esquisita do Covid, meu amigo Pepi passou seis meses de 2023 tendo estranhas tonturas; ou melhor, uns quase desmaios -ou síncopes, como se usa em português-. E por causa disso iria passar uma longa semana de estudos, exames, e outras pesquisas de saúde. Mas logo no primeiro dia de esse calvário, o Pepito teve um choque de realismo com a brutalidade da violência e a falta de educação de muitos jovens desde que a escatologia, na sua versão bolsonarista, se instalou no país. Diz ele que entrou na Linha Amarela, (sim, aquela do locutor anglo-saxão da Lapa e os robocops), e pediu gentilmente para uma jovenzinha o banco azul destinado aos idosos como ele. A jovem, de cara fechada, levantou-se, mas logo em seguida largou: “E por que não senta em outro lugar qualquer, seu velho folgado?”. Bom, Pepito demorou duas décimas de segundo para reagir, dizendo que ela, mal-educada e tudo também chegaria a ser velha um dia; mas como a energúmena não parava de xingar com todos os adjetivos cabíveis para o substantivo velho, Pepito não teve mais jeito que acrescentar que assim, violenta e mal-educada, talvez não chegasse à velhice e morresse de bala. Para que! “velho branquelo” foi o melhor dos qualificativos que Pepito ouviu da boca escatológica da jovem. Branquelo eu? Perguntou o Pepi, que enche o peito de orgulho da sua estirpe Mapuche e Diaguita. Mas a moça saiu logo do trem, finalmente só tinha dedicado cinco estações aos palavrões e ameaças à velhice precoce do nosso amigo. Mas, vocês estão me seguindo ainda? Sacaram a relação entre a primeira e a segunda acepção de escatologia? É o que me dizia o Pepito enquanto botava água fervendo na cuia do chimarrão, olhava para o horizonte com aquele olhar perdido dos anciãos e me perguntava: “Será que estou ficando velho mesmo?”, e eu lembrei da amiga Viviana quando, lá pelos longínquos 2010, olhou para a distância, e me disse: “Como foi que nos aconteceu isto?” Isto que? perguntei. “Isto, como foi que assim, do nada, passamos dos 60 anos de idade?”. Javier Villanueva. Chumbicha, janeiro de 2039.