-Você jura vencer ou morrer na defesa deste lugar?
Sim, juramos!- responderam a uma única voz os chefes, oficiais e soldados, e o ar trovejou com os seus "vivas". (Do diário de um dos defensores do Paysandú)
Entre dezembro de 1864 e janeiro de 1865, ocorreu um dos episódios mais dolorosos da história do Uruguai, o sítio e a defesa de Paysandú. Lá se enfrentaram os seiscentos defensores liderados por Leandro Gomez, o comandante da praça, contra dezesseis mil homens de três exércitos invasores, por trás de uma cortina de interesses internacionais. O conflito bélico terminou tragicamente para os sitiados, marcado pela enorme desigualdade de poder de fogo e de recursos.
O escritor Mario Aparaín Delgado entra com a sua própria ficção nessa Paysandú, que aos poucos vai se tornando uma montanha de entulho, coberta de cadáveres e saqueada pelos guerreiros vitoriosos. Coragem, abandono, deserção, amor, ódio e loucura...
Às vezes, por incrível que pareça, a história é escrita pelos vencidos. “Não roubarás as botas do morto" não é um mandamento cristão desconhecido, mas o romance do autor uruguaio Mario Aparaín Delgado, lançado há um tempo em Buenos Aires.
O protagonista, Martín Zamora, é um nativo de Castellar de Andalucía, mas a vida, "que é capaz de surpreender até o mais inteligente, criando armadilhas, bifurcações ou encruzilhadas, violentas e trapaceiras em que se há de escolher entre a glória ou desgraça", o levou às terras do Rio da Prata e o confinou em uma masmorra de Paysandú, um povoado uruguaio, prestes a ser sitiado e assaltado por três exércitos.
O protagonista, Martín Zamora, é um nativo de Castellar de Andalucía, mas a vida, "que é capaz de surpreender até o mais inteligente, criando armadilhas, bifurcações ou encruzilhadas, violentas e trapaceiras em que se há de escolher entre a glória ou desgraça", o levou às terras do Rio da Prata e o confinou em uma masmorra de Paysandú, um povoado uruguaio, prestes a ser sitiado e assaltado por três exércitos.
Martín Zamora é um personagem fictício no meio de uma história real que acontece em 1864, num dos sítios mais sangrentos na história da América Latina, como afirma o autor. Porém, conta ainda que alguns amigos e escritores, antes da publicação do romance, criticaram o título do livro, porque disseram que parecia mais um nome de filme “western”.
Gostei, diz Aparaín Delgado, porque desde que eu me lembro de ler histórias sobre o tal sítio, aprendi que os sítios a cidades, desde sempre despertam uma patologia de guerra que não ocorre em outros momentos bélicos. Uma dessas doenças é a extrema crueldade dos sitiantes com os sitiados. Quanto mais tempo demora a resistência, maior a irracionalidade dos sitiantes. Assim foi, por exemplo, no sítio de Kiev, en Stalingrado. Não é o suficiente romper o cerco dos sitiados, é mais: é necessário humilhá-los, arrancar troféus, cortar cabelos e barbas, roubar as botas dos sitiados derrotados e mortos.
Eu gostei da solidão que caracteriza a vitória total e gostei da forma desse décimo primeiro mandamento ligado à guerra. Na linguagem cristã "não roubar as botas dos mortos" poderia ser traduzido como "não humilhar o próximo".
Na história do sítio do Paysandu de Aparaín Delgado, coexistem em uma igualdade real os personagens de ficção; então, é a história de uma humilhação, é o desrespeito à dignidade dos vencidos. Segundo o autor, se o sítio do Paysandu tivesse acontecido no hemisfério norte, Oliver Stone teria feito três filmes e não apenas um. "O Álamo", que se tornou o ícone cinematográfico do sitio pelos defensores do território do Texas –os norte-americanos que o tinham tomado do México- foi mais baixo na qualidade, e nos custos militares e políticos.
O desafio literário
A escrita do romance levou dez anos e foi um dos maiores desafios de sua vida como escritor. Como evitar a armadilha do romance histórico tão na moda que oferece "pacotes" de História para uma digestão em formato da narrativa ficcional? Como trabalhar o material histórico a partir do ponto de vista da mera ficção? "Poucas vezes me senti –responde o escritor Aparaín Delgado, que toma a história como uma fonte de criação, sem uma suposta erudição, nem fazendo um acúmulo sistemático de fatos históricos, ou datas– um historiador...e sempre pensei que, no entanto, os escritores como William Faulkner contando a Guerra Civil norte-americana, por exemplo, ou Jorge Ibarbengoitia nos seus relatos da Guerra Civil Mexicana a partir de uma perspectiva humorística, fizeram isto de uma forma bem legal".
“O mesmo acontece aqui com o Belgrano Rawson, ou Andrés Rivera. Rivera é muito grande", disse o autor "ele é o meu ponto de referência para que você tenha de captar o passado histórico, no momento de escrever um romance. Eu acho que o principal componente da criação a partir da História é a atmosfera, o que significa que você respira, sofre e tem cheiro de pólvora em suas mãos".
A linguagem do passado.
A composição da atmosfera está intimamente ligada com a linguagem. Em sua bem-sucedida novela "Zama" o argentino Antonio Di Bendetto "inventa" um século XVIII espanhol, sem recorrer a arcaismos nem a reconstruções arqueológicas.
Para Delgado Aparaín a fórmula é diferente: ”Outros dois grandes desafios desta novela para mim- diz, "foi encontrar uma linguagem para falar sobre o que eles queriam; me perguntei como eles falavam um século atrás. Descobri que eles gostavam muito de escrever cartas, e algo muito importante: assim como hoje as pessoas se comunicam por meio de veiculação eletrônica, na época isto só se fazia só através de cartas. As cartas também eram susceptíveis de um grande uso e abuso dos adjetivos: usavam dois ou três adjetivos em uma linha só, e eu me perguntava o que aconteceria se você tirasse um ou dois desses adjetivos e. em seguida, lesse em voz alta. sou eu quem disse isso".
Naquela época, as cartas eram preciosos objetos de leitura literária de alguém antes de serem enviadas para o destino. Havia uma preocupação com a beleza da escrita que era ligada à beleza da caligrafia. "Eu gostei", continua o escritor, de fazer um trabalho longo e sério de captura dessa linguagem. Eu estava preocupado porque teria que me convencer antes de convencer a qualquer outro e, ao mesmo tempo, tinha que ser uma história divertida.
Como conclusão, por fim, persiste a pergunta: quem, além de alguém especializado no estudo da história poderá dizer o que significam para o Uruguai ou para Argentina os nomes de Leandro Gómez, Lucas Piriz, Federico Aberastury, e muitos outros heróis que se sacrificaram pelo povo de Paysandu na sua luta inglória contra o imperialismo? Quem sabe hoje, após um século de história e de educação colonizada e falsificada nas nossas escolas, que foi em Paysandú, em terra Oriental, que começou já grande, essa épica enorme da injusta guerra contra o Paraguai, onde um povo irmão inteiro foi morto por defender as populações pobres da Argentina e da República Oriental da arrogância dos imperialistas?
Quem não suspeita que Mitre tem estátuas, ruas, e cidades com seu nome, parecendo que foi um grande presidente, só porque a história oficial limpou dos seus capítulos o Paysandú e a Guerra do Paraguai?