segunda-feira, 30 de junho de 2014

Unamuno e o desafio à violência política.



Em épocas em que a violência dos insultos acompanha a crueldade dos linchamentos e a estupidez da virulência na luta política, é bom lembrar alguns fatos históricos que definem o caráter em épocas de crise. Um homem íntegro, embora que confuso nas suas definições políticas e ideológicas, pode ter uma atitude heróica, no momento mais perigoso. No dia 18 de julho de 1936, o golpe militar detonado nas Ilhas Canárias com Francisco Franco à cabeça inicia, ao fracassar em meia Espanha, uma guerra civil que será a antessala da 2ª Guerra Mundial. O literato e filósofo Miguel de Unamuno - um dos mais importantes no “pequeno século de ouro” espanhol republicano, e reitor de Salamanca - apoiou inicialmente os rebeldes de Franco, pois, depois de ter sido republicano em 1931, esperava, ingenuamente, ver nos militares sublevados um conjunto de “regeneradores” autoritários e firmes, dispostos a reencaminhar pela ordem o que ele considerava ser a “deriva sem rumo” do país.

Unamuno, como veremos a seguir, se arrependeu aos poucos de sua postura ao constatar a selvageria da repressão franquista, que já tinha fuzilado em poucas semanas a vários dos seus amigos. O que não se esperava é que o fizesse publicamente, negando com os fatos seu apoio à sublevação militar durante o ato de abertura do curso acadêmico que, naquela ocasião, coincidia com os festejos do “Dia da Raça”, o 12 de outubro de 1936, no Paraninfo da Universidade de Salamanca, a mais prestigiosa da península.

Assistiam ao ato diversas personalidades franquistas com motivo da celebração da festa que hoje se conhece como o Dia da Hispanidade, aniversário da descoberta do continente americano, o bispo de Salamanca, Dom Enrique Plá y Deniel, o governador civil, Carmen Polo Martínez-Valdés -esposa de Francisco Franco- e o general Millán-Astray. Vários oradores se despacharam contra o que a direita espanhola chamava de “antiespanha” - os socialistas, republicanos, anarquistas e comunistas que estavam começando a ser varridos dos governos locais com a valiosíssima ajuda das tropas, armas e aviões de Mussolini e Hitler. O que aconteceu de repente, segundo nos conta o hispanista inglês Hugh Thomas em sua grande obra “La guerra civil española”, é mais ou menos o que vou relatar a seguir: 

“O professor Francisco Maldonado, depois das formalidades iniciais e de um apaixonado discurso de José María Pemán, faz uma longa exposição em que ataca violentamente a Catalunha e o País Basco, qualificando essas duas regiões como cânceres no corpo da nação. O fascismo, que é o que vai sanar a Espanha, saberá como exterminá-las, cortando em carne viva, como o faria um decidido cirurgião, livre de falsos sentimentalismos".

“Alguém grita então, de algum lugar do paraninfo, o famoso lema "Viva a morte!". O general Millán-Astray responde com os gritos com os que habitualmente se excitava o povo: "Espanha só uma!” respondem os assistentes”. 

Contam que então, alguns jovens falangistas – que segundo outras versões seriam “carlistas”- tentam trocar o monstruoso “viva la muerte” por vivas ao Cristo Rei e à paz; mas essas tentativas são apagadas pelos gritos ensurdecedores dos grupos mais fascistas e militaristas. 

Depois, um grupo de milicianos vestidos com as camisas azuis da Falange fazem a saudação fascista, braço direito em alto, dirigindo-se ao retrato de Francisco Franco pendurado na parede. Tentam assim remediar o incidente juntando esforços de irmandade com o conjunto da assistência. 
Miguel de Unamuno, que presidia a mesa, se levanta lentamente e diz: 

"Vocês estão esperando minhas palavras. Vocês me conhecem bem e sabem que sou incapaz de permanecer em silêncio. Às vezes, ficar calado equivale a mentir, porque o silêncio pode ser interpretado como aquiescência. Quero fazer alguns comentários ao discurso - por chamá-lo de algum modo - do professor Maldonado, que está entre nós. Vou deixar de lado a ofensa pessoal que supõe sua repentina explosão contra bascos e catalães. Eu mesmo, como vocês sabem, nasci em Bilbao. O bispo, diz Unamuno apontando ao bispo de Salamanca-, querendo ou não, é catalão, nascido em Barcelona. Mas agora acabo de ouvir o necrófilo e insensato grito "Viva a morte!" e eu, que tenho passado minha vida compondo paradoxos que excitavam a ira de alguns que não os compreendiam tenho que dizer a vocês, como especialista na matéria, que este ridículo paradoxo me parece repugnante. O general Millán-Astray é um inválido. Não é preciso que digamos isto num tom mais baixo. É um inválido de guerra. Também era um inválido Cervantes. Mas, infelizmente na Espanha há hoje demasiados mutilados. E se Deus não nos ajuda, pronto haverá muitíssimos mais. Atormenta-me pensar que o general Millán-Astray pudesse ditar as normas da psicologia da massa. Um mutilado que careça da grandeza espiritual de Cervantes, é de esperar que encontre um terrível alivio vendo como se multiplicam os mutilados ao seu redor."

Nesse momento Millán-Astray exclama irritado "¡Muera la intelectualidad traidora!" "¡Viva la muerte!" embora pela grande bagunça do público não se ouviu a frase, mas que pelo grupo que estava mais perto do general, nascendo assim a lenda e sendo aclamado pelos assistentes. O escritor José María Pemán, numa tentativa de acalmar os ânimos, esclarece: "¡No! ¡Viva la inteligencia!¡Mueran los malos intelectuales!". 

Mas Dom Miguel de Unamuno, sem duvidar, e sem amedrontar-se, continua: 
"Este é o templo da inteligência, e eu sou o seu sumo sacerdote. Vocês estão profanando seu sagrado recinto. Vocês vão vencer, porque vocês tem sobrada força bruta. Mas não vão convencer. Para convencer é preciso persuadir, e para persuadir vocês vão necessitar algo que falta a vocês: razão e direito na luta. Parece inútil pedir a vocês que vocês pensem na Espanha. Tenho dito."

Unamuno não foi coerente nem depois deste incrível episódio; mas foi valente e íntegro. Continuou apoiando o franquismo e, de fato, se amparou desde o momento do incidente, na esposa do ditador, que lhe deu proteção durante os poucos meses que sobreviveu no seu enclausuramento. Nesse seu exílio interior conseguiu fugir das fúrias dos fascistas que havia provocado com a sua independência de pensamento, mesmo que adepto ao regime ditatorial.

Um episódio para ser pensado nos tempos contraditórios em que vivemos.

Javier Villanueva. São Paulo, 30 de junho de 2014.

sábado, 14 de junho de 2014

Os insultos dos pobres meninos ricos.



Ontem publiquei no FB o texto do jornalista Florestán Júnior, e a repercussão foi grande: 576 compartilhamentos e 349 "curtir". Reproduzo aqui o texto e os meus comentários. 
Solidariedade com a mulher, com a ex guerrilheira, com a combatente que foi democraticamente eleita e não merece essa falta de educação dos privilegiados. Agradeço a todos pela divulgação. (JV)

"Onde estavam ontem os políticos que festejaram a escolha do Brasil como sede da Copa do Mundo de 2014? Onde estavam Lula, Sergio Cabral, Eduardo Campos, Aécio Neves, José Serra, Jaques Wagner, Yeda Crusius, Cid Gomes, Carlos Eduardo de Sousa Braga, Wilma de Faria, Roberto Requião, José Roberto Arruda, Blairo Maggi? Onde estava Marina Silva que queria uma sede no estado dela, o Acre? Onde estavam os prefeitos, senadores, deputados, ancoras de televisão e rádio que queriam tanto a Copa do Mundo? Onde estavam os prefeitos e governadores responsáveis pelas obras exigidas pela Fifa? Ontem, coube a uma unica mulher receber toda a agressão de uma torcida rica e privilegiada que conseguiu ingressos para o jogo de abertura em São Paulo. Uma elite raivosa que não perde a chance de destilar seu ódio de classe, seus preconceitos e sua falta de educação. Parabéns, presidenta Dilma, você não se escondeu nos palácios da República como fizeram os governadores, inclusive o senhor Geraldo Alckmin".

FLORESTAN FERNANDES JÚNIOR, jornalista.



Nos 500 anos mandando no Brasil as nossas classes dirigentes fizeram do país um modelo do atraso do 4º mundo. Cheguei no Brasil em 1979, e era pouco mais do que uma república bananeira, governada por generais boçais sem voto, ditadores assassinos e ignorantes que, como Figueiredo, que diziam “preferir o cheiro de cavalo ao cheiro de povo“. Aí finalmente o povo escolhe um governo que faz o Brasil avançar, alça o país à categoria de 7ª economia do mundo, leva o PIB  de 1 para mais de 2,4 trilhões em uma década, arranca 40 milhões de brasileiros da pobreza. Nasce uma classe média de mais de 90 milhões com melhores empregos, cursos universitários, rendas mais alta, carteiras assinadas e contas no banco. Avanços enormes em uma década! Mas a Globo e a Veja, conservadores e mentirosos, criam um clima de "beira do abismo". Os que só se informam pela Veja não lembram do nosso passado medíocre, tão recente. Pobre gente burra!

É triste de ver tanta ignorância: xingaram a mulher, a ex guerrilheira, e não criticam os políticos Opus Dei que governam São Paulo há duas décadas, deixam a população sem água, roubam no metrô que avança feito minhoca, põem a USP em situação de falência, reprimem protestos sociais do modo mais ditatorial. Vergonha de essa "elitezinha" que 10 anos atrás ia ao Paraguai comprar whisky falsificado e agora se faz de especialista em vinhos. Vergonha desses que não passam uma nota fiscal nem que a vaca tussa, mas criticam descaradamente a corrupção; aumentam descabidamente os preços dos serviços, mas gritam pela "inflação galopante". 
Sinto vergonha desses covardes, que criticaram a copa, pagaram R$ 900,00 para o jogo de inauguração e xingam a mulher que nos governa, com o voto popular e democrático, como jamais teriam se atrevido a insultar aos militares assassinos dos anos 60 e 70.

 Não é necessário ser petista para avaliar os progressos sociais que trouxe este governo. O PT é hoje um movimento socialdemocrata de centro-esquerda, num governo em que manda só um 40, 45%, com uma maioria do PMDB, em que o centro-direita impõe políticas conservadoras e desenvolvimentistas. Mas o que já foi feito pelas frestas, em termos de políticas sociais, nunca se fez no país antes. Esse crescimento exponencial da economia e das classes médias, que nem a Globo com seus infográficos mentirosos consegue ocultar, favoreceu muita gente, muitos pobres e miseráveis que jamais tinham sido contemplados antes. 

O ódio contra a Dilma é reacionário, aponta ao passado guerrilheiro, valente, comprometido, e a natureza feminina da presidenta; é o machismo nojento dos coronéis, expressado sem pudor pelos filhos de uma classe média que nunca lutou pelos seus direitos, nunca batalhou uma única conquista, e tem raiva de quem luta e consegue, quem se compromete e põe a própria vida a risco para chegar a onde chegamos. 

É que, no fundo e sempre, a história política transparece nas escolhas das pessoas: os eleitores do Ademar de Barros ficaram velhos e os seus filhos passaram a votar no Maluf e no Collor e, coincidentemente, foram os mesmos que votaram no Jânio pra prefeitura, contra o FHC em 1986. O discurso dessa massa -muitos da classe média baixa paulista e paulistana- era e é sempre o mesmo: falta de segurança contra os marginais, críticas aos que defendem os direitos humanos, ao direito sindical a greve e ao protesto de rua, além de um ranço -antes público, agora apenas doméstico- racista e de despreço pelo povo nordestino. 

Essa tendência ideológica, que em todas partes do mundo, desde a Revolução Francesa, se chama de "direita", ou pelo menos de "conservadora", foi a que nos últimos 26 anos, ante qualquer risco do PT ou as esquerdas ganharem, acabam se alinhando numa frente bastante coerente no discurso: os latifundiários do agro-negócio deixam de representar qualquer perigo para eles, e o inimigo dessa massa obscura de baixa classe média passam a ser os Sem Terra. A história universal do capitalismo conta que, sem reforma agrária, não há desenvolvimento nacional -dentro do capitalismo, claro. França, Alemanha, Inglaterra e EUA fizeram as suas reformas agrárias. No Brasil, quem quer reforma agrária é chamado de "vagabundo" por esta massa obscura da classe média baixa em ascensão. Não importa se esse conservador votou na UDN no passado, ou vota no DEM ou PSDB hoje, seu discurso será sempre intolerante com qualquer movimento de pobres e excluídos no presente: sem-terra, sem-teto ou sindicalistas serão sempre "vagabundos" para ele. Por que? porque a sua formação ideológica leva o conservador a odiar de morte qualquer tendência popular, de esquerda ou progressista. 

Repito: o atual governo, a meu entender de pessoa interessada em política e que lê bastante mais do que a Veja e o Readers' Digest, é que este governo é uma coalizão em que o PT (movimento socialdemocrata de centro-esquerda) tem apenas o 45%, e o resto, ou a maioria, é do PMDB, de centro-direita, e dos partidos aliados da direita (PP,PSD e PR). Mas, apesar dos fortes interesses conservadores que apostaram no Lula dez anos atrás, o que fomenta o ódio feroz da direita são as políticas populares, de integração social; nada que qualquer país capitalista decente -como os governados pela socialdemocracia europeia do norte- não possam fazer; mas essa direita conservadora -a mesma que foi a base do golpe de 64- pensa que isso é bolchevismo, política de sovietes, e outras besteiras que a história política desmente em menos de dez minutos de polêmica.

O que não evita -para isso está a política e o oportunismo eleitoralista da atual direita, através do partido da ordem, o PSDB- que esse ódio contra o Bolsa Família, Minha Casa, Pro Uni, etc. vire "bandeiras" da oposição ao atual governo "populista". Ou por acaso o PSDB vai tirar algumas dessas enormes conquistas populares dos últimos 10 anos? claro que não. O problema é muito claro: os programas da oposição e do governo atual podem até se parecer, porque no fundo, PT e PSDB são apenas irmãos simétricos, um mais à esquerda e democrático, o outro mais à direita e liberal, mas não muito longe do centro. 

O problema é a ideologia: quem xinga a Dilma jamais teria ousado levantar a voz contra um general, ou até discutir contra um mero tenente, nas épocas ferozes da ditadura. Enquanto isso, os que desaprovamos a repressão feroz do Alkimim contra os protestos sindicais ou sociais, jamais deixamos de criticar o desenvolvimentismo da Dilma y do seu grupo no PT. Os que criticamos sem pelos na língua as falcatruas do grupo do Dirceu, (que usou os mesmos métodos do FHC na época da votação pela sua reeleição) somos os mesmos que exigimos que seja investigado o Mensalão Mineiro com o mesmo fervor e entusiasmo global que foi investigado o Mensalão petista. Os que exigimos que se investiguem de verdade as negociatas do governo de São Paulo com os trens e o metrô, somos os mesmos que criticamos a insensibilidade da Dilma com os povos indígenas que vão ser despejados do Xingu por causa das hidroelétricas. Os que detestamos a figura autoritária e oportunista do Joaquim Barbosa, somos os mesmos que pedimos liberdade de protesto -em qualquer estado, não importa quem o governe- e que se acabe com as truculências das PMs. Os que lutamos contra a escravidão das drogas, somos os mesmos que aplaudimos tanto o estado de SP com o seu programa Renascer, como a PMSP com o seu Braços Abertos -sem distinção de partidos- e somos os mesmos que deploramos as negociações do nosso governador Opus Dei com o PCC. 

Para entender o que acontece hoje no país, é necessário entender não só o que se passou do Getúlio até aqui, mas desde os Bandeirantes e suas políticas genocidas, ou desde os Pedros e suas ações imperialistas que os levaram a invadir o Uruguai e o Paraguai. E para isto, é claro, se necessita pegar nos livros, queimar os cílios e tomar partido.

JV. São Paulo, 13 de junio de 2014.