Em épocas em que a violência
dos insultos acompanha a crueldade dos linchamentos e a estupidez da virulência
na luta política, é bom lembrar alguns fatos históricos que definem o caráter
em épocas de crise. Um homem íntegro, embora que confuso nas suas definições
políticas e ideológicas, pode ter uma atitude heróica, no momento mais
perigoso. No dia 18 de julho de 1936, o golpe militar detonado nas Ilhas Canárias
com Francisco Franco à cabeça inicia, ao fracassar em meia Espanha, uma guerra
civil que será a antessala da 2ª Guerra Mundial. O literato e filósofo Miguel
de Unamuno - um dos mais importantes no “pequeno século de ouro” espanhol
republicano, e reitor de Salamanca - apoiou inicialmente os rebeldes de Franco,
pois, depois de ter sido republicano em 1931, esperava, ingenuamente, ver nos
militares sublevados um conjunto de “regeneradores” autoritários e firmes, dispostos
a reencaminhar pela ordem o que ele considerava ser a “deriva sem rumo” do
país.
Unamuno, como veremos a seguir, se
arrependeu aos poucos de sua postura ao constatar a selvageria da repressão
franquista, que já tinha fuzilado em poucas semanas a vários dos seus amigos. O
que não se esperava é que o fizesse publicamente, negando com os fatos seu apoio
à sublevação militar durante o ato de abertura do curso acadêmico que, naquela
ocasião, coincidia com os festejos do “Dia da Raça”, o 12 de outubro de 1936, no
Paraninfo da Universidade de Salamanca, a mais prestigiosa da península.
Assistiam ao ato diversas
personalidades franquistas com motivo da celebração da festa que hoje se conhece
como o Dia da Hispanidade, aniversário da descoberta do continente americano, o
bispo de Salamanca, Dom Enrique Plá y Deniel, o governador civil, Carmen Polo
Martínez-Valdés -esposa de Francisco Franco- e o general Millán-Astray. Vários
oradores se despacharam contra o que a direita espanhola chamava de “antiespanha”
- os socialistas, republicanos, anarquistas e comunistas que estavam começando a
ser varridos dos governos locais com a valiosíssima ajuda das tropas, armas e aviões
de Mussolini e Hitler. O que aconteceu de repente, segundo nos conta o
hispanista inglês Hugh Thomas em sua grande obra “La guerra civil española”, é
mais ou menos o que vou relatar a seguir:
“O professor
Francisco Maldonado, depois das formalidades iniciais e de um apaixonado
discurso de José María Pemán, faz uma longa exposição em que ataca
violentamente a Catalunha e o País Basco, qualificando essas duas regiões como cânceres no corpo da nação. O fascismo, que é
o que vai sanar a Espanha, saberá como exterminá-las, cortando em carne viva,
como o faria um decidido cirurgião, livre de falsos sentimentalismos".
“Alguém grita então, de algum lugar
do paraninfo, o famoso lema "Viva a morte!". O general Millán-Astray
responde com os gritos com os que habitualmente se excitava o povo: "Espanha
só uma!” respondem os assistentes”.
Contam que então, alguns jovens
falangistas – que segundo outras versões seriam “carlistas”- tentam trocar o monstruoso
“viva la muerte” por vivas ao Cristo Rei e à paz; mas essas tentativas são
apagadas pelos gritos ensurdecedores dos grupos mais fascistas e militaristas.
Depois, um grupo de milicianos vestidos
com as camisas azuis da Falange fazem a saudação fascista, braço direito em
alto, dirigindo-se ao retrato de Francisco Franco pendurado na parede. Tentam
assim remediar o incidente juntando esforços de irmandade com o conjunto da assistência.
Miguel de Unamuno, que presidia a
mesa, se levanta lentamente e diz:
"Vocês estão esperando minhas
palavras. Vocês me conhecem bem e sabem que sou incapaz de permanecer em silêncio.
Às vezes, ficar calado equivale a mentir, porque o silêncio pode ser
interpretado como aquiescência. Quero fazer alguns comentários ao discurso - por
chamá-lo de algum modo - do professor Maldonado, que está entre nós. Vou deixar
de lado a ofensa pessoal que supõe sua repentina explosão contra bascos e catalães.
Eu mesmo, como vocês sabem, nasci em Bilbao. O bispo, diz Unamuno apontando ao bispo
de Salamanca-, querendo ou não, é catalão, nascido em Barcelona. Mas agora
acabo de ouvir o necrófilo e insensato grito "Viva a morte!" e eu,
que tenho passado minha vida compondo paradoxos que excitavam a ira de alguns
que não os compreendiam tenho que dizer a vocês, como especialista na matéria,
que este ridículo paradoxo me parece repugnante. O general Millán-Astray é um
inválido. Não é preciso que digamos isto num tom mais baixo. É um inválido de
guerra. Também era um inválido Cervantes. Mas, infelizmente na Espanha há hoje
demasiados mutilados. E se Deus não nos ajuda, pronto haverá muitíssimos mais. Atormenta-me
pensar que o general Millán-Astray pudesse ditar as normas da psicologia da massa.
Um mutilado que careça da grandeza espiritual de Cervantes, é de esperar que
encontre um terrível alivio vendo como se multiplicam os mutilados ao seu redor."
Nesse momento Millán-Astray exclama
irritado "¡Muera la intelectualidad
traidora!" "¡Viva la muerte!"
embora pela grande bagunça do público não se ouviu a frase, mas que pelo grupo que
estava mais perto do general, nascendo assim a lenda e sendo aclamado pelos assistentes.
O escritor José María Pemán, numa tentativa de acalmar os ânimos, esclarece:
"¡No! ¡Viva la inteligencia!¡Mueran
los malos intelectuales!".
Mas Dom Miguel de Unamuno, sem duvidar,
e sem amedrontar-se, continua:
"Este é o templo da inteligência,
e eu sou o seu sumo sacerdote. Vocês estão profanando seu sagrado recinto. Vocês
vão vencer, porque vocês tem sobrada força bruta. Mas não vão convencer. Para
convencer é preciso persuadir, e para persuadir vocês vão necessitar algo que falta
a vocês: razão e direito na luta. Parece inútil pedir a vocês que vocês pensem na
Espanha. Tenho dito."
Unamuno
não foi coerente nem depois deste incrível episódio; mas foi valente e íntegro.
Continuou apoiando o franquismo e, de fato, se amparou desde o momento do
incidente, na esposa do ditador, que lhe deu proteção durante os poucos meses
que sobreviveu no seu enclausuramento. Nesse seu exílio interior conseguiu
fugir das fúrias dos fascistas que havia provocado com a sua independência de
pensamento, mesmo que adepto ao regime ditatorial.
Um
episódio para ser pensado nos tempos contraditórios em que vivemos.
Javier Villanueva. São Paulo, 30
de junho de 2014.
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