domingo, 26 de fevereiro de 2017

A história oficial (3ª parte de "As tristes e nefastas histórias de López Rega e Bignone")

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Existe na Argentina, desde há muitas décadas, uma História Oficial - a escrita pelos vencedores das guerras civis, a dos Unitários contra os Federais, perdedores-. É a que eu aprendi na escola, e meus pais, assim como meus filhos mais velhos. Mas também há uma História (ou várias) revisionista; onde os perdedores tem mais uma chance.
Este conto comprido - ou romance curto, de 154 páginas- é uma parte daquele que já publiquei em espanhol e parcialmente em português: "Las tristes y nefastas historias de López Rega y Bignone".
Há fantasia e imaginação do autor, é claro, mas há um 98% de história documentada; os dois tempos em que as sequências correm - antes do golpe de 1976 e no final do ciclo da ditadura, em 1979-83- são esses mesmos, sem retoques nem subjetivismo. É o tempo que culmina nos anos que retrata o filme "La historia oficial", quando uma professora investiga a origem de sua filha adotiva.
Espero que gostem do texto. JV.

A história oficial

Mas voltemos um pouco mais para atrás na memória.


3ª Parte.
A “Guardia de Hierro” e o Bruxo López Rega

Entre 1972 e 1974 uma organização política (ou político-militar, segundo alguns conhecedores do assunto) pouco visível, e que levava por denominação o pomposo nome de “Guardia de Hierro” — Guarda de Ferro, em português—, se afiança como uma das várias partes integrantes das Juventudes Peronistas.

Segundo muitos dos seus simpatizantes, já nessa época a Guardia de Hierro tinha algo em torno de uns 15 mil militantes, contabam com uma direção bastante experimentada e bem formada politicamente e constituíam,  junto a outras organizações peronistas, o que ficou conhecido na sua época como a Organización Única del Trasvasamiento Generacional (OUTG) — ou Organização Única do Transvazamento entre Gerações— que pretendia servir de canal de passagem das experiências do peronismo dos anos de 1945-55 para os jovens dos anos ‘70.

Segundo conta Facundo, e mesmo sem que exista muita documentação a respeito, entre meados e finais dos anos de 1960, a direção política de Guardia de Hierro obteve uma entrevista personal con Perón em Madrid — na mansão do bairro de Puerta de Hierro, da qual alguns historiadores e curioso pensam, equivocadamente, que a organização tomou seu nome—.

Dizem os mais velhos que foi apartir desse encontro que se descartou totalmente a luta armada como uma via para o retorno de Perón do seu exílio, já que os dirigentes voltaram ao país totalmente convencidos de que no havia as mínimas condições sociais nem políticas como para que uma guerrilha pudesse desenvolver-se num país como a Argentina daquele momento e naquelas circunstâncias.

Sabemos, por outro lado, que não era isso o que Perón falava aos futuros dirigentes de Uturuncos, das FAP —Fuerzas Armadas Peronistas—, e mais tarde aos dos Montoneros e sua poderosa Juventud Peronista, majoritariamente a favor do enfrentamento armado.

Ficou decidida também ali, entre Madri e Buenos Aires, a  incorporação de Guardia de Hierro como uma das chamadas “formações especiais”, cujo principal objetivo político deveria ser o de lutar para conseguir o retorno definitivo do líder, Juan Domingo Perón, ao país.

Segundo relatam em voz baixa alguns dos participantes no encontro madrilenho com Perón de 1967, foi delineada ai a pretendida e pouquíssimas vezes alcançada “centralidade” — nem direitas nem esquerdas— da Guardia, uma vez que o líder justicialista (nome antigo e mais conservador do peronismo) os persuadiu de não fazer nenhum tipo de treinamento na Argélia para a luta armada como eles já tinham pensado em realizar; e ainda os convenceu a formar uma espécie de "retaguarda ambiental", que talvez significasse “territorial”, através do trabalho social de base, sobre todo em bairros, com células territoriais que multiplicassem os simpatizantes da causa peronista.

Como conta Alejandro Pandra: "O próprio Perón nos tirou nos anos 60 “pelos cabelos” da tentação da luta armada, e nos deu a missão de ser a “retaguarda estratégica”. Desde então, nós tentamos nos converter num estado maior fiel ao condutor, uma espécie de “corpo de centro” do movimento, muito ligado à base e à população. Depois da morte de Perón, quando la “orga” foi dissolvida, nós tentamos interpretar sempre a situação segundo a concepção e a doutrina peronista".

Durante os anos de liderança de Álvarez, a Guardia de Hierro teve uma grande afluência de quadros e militantes provenientes de vários setores, tanto do cristianismo como da esquerda, passando pela ortodoxia peronista, o que os levou a tentar representar uma síntese ideológica dentro do pensamento peronista. Em seu Informe Histórico de 1967, aprovado pelo próprio Perón, a Guardia retoma as linhas tradicionais do chamado “campo nacional”, embora que sem aderir, por exemplo, ao revisionismo histórico mais tradicional na Argentina.

Os dirigentes da Guardia de Hierro, assim que chegaram a Buenos Aires de volta da reunião em Madri, se dedicaram afanosamente a desenvolver um programa de ação que lhes permitisse reorganizar de imediato a militância mais antiga e avançar na formação dos quadros políticos que o peronismo tinha ido perdendo durante os longos anos da resistência e da proscrição — nome dado na Argentina ao banimento e da política de “apagar” da memória coletiva— do velho líder e o seu movimento.

O principal papel político da Guardia de Hierro deveria ser o de uma lealdade absoluta, quase canina, ao chefe máximo, Juan Perón. Eles se propunham ser, por tanto, uma organização autêntica — e, simplesmente— peronista, sem mais questionamentos ideológicos, já que eles consideravam que o peronismo era "nada mais que o que a doutrina peronista diz que é, e pronto".

De tal modo, me contava Facundo, a Guardia de Hierro seria uma espécie de barreira de contenção, o suficientemente forte como para ser capaz de poder “resistir à mística” — “tão na moda”, segundo alguns deles contam ainda hoje— da luta armada como a única ferramenta válida para a liberação nacional, que era o objetivo central. Teriam que ser, por tanto, uma espécie de represa para a ofensiva das organizações guerrilheiras que já começavam a surgir e a organizar-se dentro dos âmbitos juvenis mais radicalizados. E, ao mesmo tempo, tratar de manter-se afastados também dos grupos da ultra direita — a JPRA, CNU, GRN, o Comando de Organización, etc.— que se expressariam mais tarde na revista "El Caudillo", e que terminariam congregando-se na tenebrosa Triple A de López Rega.


Enquanto isso

Por essa mesma época, — pouco tempo depois do nascimento da agrupação  Guardia de Hierro no ano 1962, vinculada ao Gallego Alejandro Álvarez e a Héctor Tristán—, José López Rega era iniciado no rito umbanda de origem afro-brasileira durante uma viagem ao Brasil, a inícios de 1963. Contam as más línguas que, num terreiro da periferia de Florianópolis, depois de sacrificar um boi, o Bruxo, vestido com uma túnica branca, foi molhado com o sangue do animal e ficou isolado numa choupana, na qual permaneceu a portas fechadas durante 7 dias, sem tomar banho nem lavar-se, porque isso era um requisito essencial para a sua iniciação no rito umbanda.

Ao sétimo dia, ao sair do isolamento, começou a ser chamado de "Hermano Daniel" — ou Irmão Daniel—, e dizem que já levava no pescoço uma cruz invertida, o que alguns, ainda dentro do rito umbanda, consideram se tratar de um verdadeiro “símbolo do Anticristo”.

Enquanto isso, em Buenos Aires, Tristán — um dirigente de origem anarquista que tinha militado em diversos âmbitos sindicais e participado ativamente na resistência peronista, entre 1955 e 59, junto com o lendário John William Cooke e outros “duros” da luta popular— e o Gallego Álvarez, que tinha uma formação  ideológica de esquerda como militante secundarista da Unión de Estudiantes Secundarios, e também lutador  na resistência peronista, preparavam as bases para que, dez anos mais tarde, Juan Perón os recebesse em Puerta de Hierro.

E já nos anos 70, na mesma época em que Álvarez e Tristán ajustavam sua Guardia de Hierro aos designios do velho chefe exilado, na condição de “formações especiais”, José López Rega completava sua iniciação umbandista com sucessivas viagens ao Brasil, sobretudo a Porto Alegre, uma cidade que ele considerava como um dos centros mais importantes do rito umbanda.

Além de tudo isso, para reforçar a ligação que ele mesmo fazia entre o umbandismo e a macumba, por um lado, com as estruturas mais conservadoras do poder político mundial pelo outro, o nome de López Rega se destaca também naquela época como o “irmão Daniel”  da logia maçônica P-2 — a famosa Propaganda Due— do Venerável Mestre Licio Gelli.

Seu nome foi achado nas fichas que detalhavam os membros da loja, depois de uma revista que a polícia italiana fez em março de 1981 na casa de López Rega em Arezzo, a que ele chamava de "Wanda", por uma grande coincidência, o mesmo nome da esposa de Licio Gelli, o Venerável Mestre.


4ª Parte

E em abril de 1982, — ainda vivendo seu exílio dourado entre a Espanha e a Suíça— ocorre o absolutamente imprevisível: Lopez Rega ressuscita.
Claro que para ressuscitar era necessário ter morrido antes; mas isso já vamos ver mais tarde como aconteceu.

O Bruxo recobra vida durante um rito de umbanda num terreiro em Embu das Artes, São Paulo, depois de reencarnar no cuerpo de Ustra — o militar assassino que durante três anos e quatro meses comandou o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna, o terrorífico centro de represión Doi-Codi en los años de la ditadura en Brasil—. Vale lembrar — me contava anos mais tarde meu amigo Facundo— que isto aconteceu logo depois de reencarnar, numa convulsionada sessão espirita no bairro paulistano de Tatuapé, no tirano Benito Mussolini.

Passados mais de sete anos, — e sempre segundo o relato de Facundo nos cadernos Laprida que Pedro e Marta já estão editando—, quando começavam a se reencontrar em Buenos Aires, já de volta da clandestinidade e do exílio aos que foram forçados pelo golpe militar de 1976, ficaram sabendo que outros camaradas, o Rafa e o Negro Dardo tinham visto o Bruxo, caminhando na santa paz pelas calçadas largas da Avenida Paulista, quase na esquina da Brigadeiro Luiz Antônio.

Era agosto de 1979 e fazia muito frio em São Paulo. Também souberam pelos Cuadernos Laprida que Julio, mais conhecido como Dieguito, tinha se encontrado cara a cara com Bruxo em Ipanema, Rio de Janeiro, em novembro desse mesmo ano.

Cinco meses mais tarde, um avión da hoje falida empresa Transbrasil, durante seu vôo 303 que naqueles anos unia a cidade de Belém a Porto Alegre, com escalas em várias capitais, entrava em pane e caia — exactamente no dia 12 de abril de 1980— num acidente nas proximidades da cidade de Florianópolis.

Transportando 50 passageiros e 8 tripulantes, o Boeing 727 de prefixo PT-TYS, se chocou contra as paredes do Morro da Virgínia, a 32 quilómetros da capital de Santa Catarina, durante a aproximación para a aterrizagem no Aeroporto de Florianópolis. De todos os 58 ocupantes da aeronave, somente 3 sobreviveram ao desastre.

Uma das vítimas fatales, um homem baixo e calvo, de uns 65 anos, levaba passaporte argentino e um Green Card a nome de José López Rega.
Começaba assim uma longa história na qual o FBI norte-americano, o Side (serviço de informações do estado) e a Polícia Federal argentinas, e a seção brasileira da Interpol iriam competir a empurrões — e as vezes até a chutes e sopapos— o privilegio de conseguir esclarecer uma morte que resultava mais do que suspeita vistos os antecedentes do morto.

Brigando a cotoveladas para chegar antes que ninguém ao balcão de informações da Transbrasil primeiro, e mais tarde na Delegacia de Polícia de Corumbá, Dan Silverston e Ricardo Grión, lutaban com forças desiguais para adiantar-se aos repórters da Folha de S. Paulo e do jornal Clarín da Argentina.


Vida e obra do Rasputín crioulo

Conhecido como "o Bruxo" pelos seus adversários e como “Daniel” ou Lopecito pelos seus conhecidos mais próximos, o morto em questão tinha nascido em Buenos Aires em 17 de outubro de 1916.
E embora os livros de história digam hoje que morreu aos 72 anos, enquanto permanecia em prisão preventiva na Argentina, em 9 de junho de 1989, — dizem algumas testumunhas que se mencionam no último caderno Laprida— são muitos os que sabem que aquele 12 de abril de 1980 foi, se não a definitiva, pelo menos a primeira morte conhecida e registrada de José López Rega.
Ao menos assim foi como detalharam os fatos, anos mais tarde, numa pouco difundida reportagem da CNN em Espanhol, Dan Silverston e Ricardo Grión, o primeiro deles ex-agente do FBI e o segundo, delegado aposentado do Side, o serviço de informações da Argentina.

Secretario privado de Juan Perón e da sua 3ª esposa, María Estela Martínez de Perón, o homem que tinha morrido em abril de 1980 — e novamente em junho de 1989—  exerceu uma influencia nefasta sobre ambos.

López Rega foi ministro de Biem-estar Social durante os governos de Héctor J. Cámpora, e mais tarde, quando este último foi despejado do poder pela direita peronista, de Raúl Alberto Lastiri — que, por uma dessas grandes coincidências, era seu genro—, e finalmente dos gabinetes do próprio Juan Perón e de Isabel Martinez, quando o velho líder morreu.
Usou e abusou à vontade das enormes quantidades de dinhero da lotería federal argentina e dos cassinos. E tudo isso deu ao Bruxo uma grande autonomia financiera que lhe permitiu realizar todos seus planos políticos e ao mesmo tempo, amassar ilegalmente uma considerável fortuna pessoal.

Mas a maior realización do Bruxo López Rega foi a organização e a colocação em funcionamento da Alianza Anticomunista  Argentina ou Triple A, grupo armado ilegal, clandestino e para-estatal.  Desde a sua sala de chefe do Ministério de Bem-estar Social, em frente à  Plaza de Mayo, o sinistro bando de assassinos realizou inúmeras ameaças de morte e finalmente executou centenas de atentados a bomba ou metralha, e assassinatos entre 1974 e meados de 1975.

Obrigado a renunciar a seu cargo depois das grandes greves e manifestações de julho de 1975, o Bruxo fugiu para Europa com un diploma oficial de fantasia outorgado pela presidente Isabel Perón. Esteve prófugo da Justiça argentina durante dez anos. Foi detido nos Estados Unidos e transladado preso até a Argentina, onde morreu — pela segunda vez, vamos repetir novamente— em junho de 1989, enquanto era processado por cargos de múltiples homicídios, associação ilícita, corrupção e sequestros.

Mas, vamos voltar de novo àquela parte deste relato, em que dizíamos que, em 13 de março de 1986, López Rega foi detido em Miami, ao sul dos Estados Unidos.
Antes de que os EUA o extraditassen para a Argentina, Ricardo Herren e Norma Morandini escriveram “El retorno de López Rega. El Brujo”, uma nota publicada na revista espanhola Cambio16.

Vejamos o que eles diziam ao descrever o entorno social e político em que se desenvolvia o drama do lopezreguismo, como era chamado o entorno do Bruxo, em 1975, quase que às vésperas do golpe genocida de Videla.

O deterioro do governo de Isabel Perón aumenta a cada dia mais e mais. Nesse ano já há 860 mortos por causas políticas e a inflación alcança o 330 por cento. O país tem quatro ministros de Economia em apenas um ano. Um deles, Celestino Rodrigo, vinculado ao Bruxo López Rega, decreta uma brutal devaluação de 150 por cento e um aumento das tarifas de 200 por cento. A gasolina aumenta um 172 por cento.”

É o famoso “Rodrigazo”. Os sindicatos resisten essa política, abandonam a Grande Paritária Nacional -onde se reúnem com os patrões para discutir salários- que tentava reeditar o Pacto Social e, numa gran movilización, pedem a expulsão de López Rega. Finalmente, a presidenta deve aceder a que “El Brujo” renuncie a seus cargos e abandone o país.”

Antonio Cafiero assume o Ministério da Economia. Mas o afastamento do sinistro personagem não melhora aas cosas. Em Tucumán, cai um avião no qual viajava o general Enrique Salgado, que levava soldados para enfrentar a guerrilha rural: morrem 13 pessoas. Em 4 de Fevereiro, as Forças Armadas recebem a ordem — legal, refrendada por todos os ministros do poder ejecutivo — de reduzir a guerrilha do E.R.P. em Tucumán que se suspeitava que tinha llegado ao ponto de derrubar um avião Hércules C-130.
Segundo o Exército, se producem 350 baixas. ”

“Montoneros tenta atacar um regimento na província de Formosa, mas não tem sucesso. Os atacantes fogem num avión de línea sequestrado, mas a maioria é capturada.
Em 23 de Dezembro, acontece um ataque do E.R.P. contra o Regimento 601, localizado em Monte Chingolo. A operação também fracassa e há mais de 100 guerrilheiros mortos.

Outros fatos de violência ocorridos nesse ano são a morte do general Jorge Cáceres Monié e sua esposa, perto de Paraná;  a bomba, atribuída à Triple A, que destroi as oficinas do jornal de  Córdoba “La Voz del Interior”; a destruição por parte de Montoneros de uma fragata que estava sendo construída em Río Santiago e a explosão pelas Três A do “Teatro Estrellas”, onde se apresentava Nacha Guevara e que provoca duas mortes”.

“O déficit da balança comercial e a saída de capitais acentúam ainda mais o nível de endividamento. A estatización das dívidas-créditos que assume o Estado desde 1976 disparam o endividamento em forma exponencial.
Depois de várias mudanças, a presidenta designa comandante em chefe do Exército ao general Jorge Rafael Videla. Logo em seguida, pede licença e se estabelece em Córdoba para cuidar da sua saúde. Por um momento se pensa que a presidenta vai renunciar e que será substituida por Italo Luder. Sobre Isabel pesa uma grave acusação por desvios egulares na “Cruzada de la Solidaridad”, similar à Fundación Eva Perón.

A acusação é por conta da assinatura de um cheque de 3.000 milhões de pesos. Mas depois de um mês, Isabel reassume a presidência e, mesmo sem a influência nefasta de Lopez Rega, ela ainda parece hesitante e errática enquanto crescem os rumores de um golpe militar.”

“Uma revolta da Força Aérea, que ocorreu no final do ano, é como uma antecipação do que vai acontecar, fatal e quase que   inevitavelmente, em alguns poucos meses.”
                                                                                
Repetidamente ao longo dos textos do caderno Laprida, o autor provável dos mesmos, Facundo, diz que depois de sua fuga apressada de Buenos Aires, López Rega passou os anos entre 1975 e 1986, vivendo como um rei com Maria Elena Cisneros, a maior parte do tempo na Suíça, até que um fotógrafo da imprensa espanhola descobriu a localização de ambos, e tiveram que fugir para algum lugar mais seguro.

Finalmente, foi a própria Maria Elena Cisneros quem involuntariamente traiu o El Brujo quando foi ao Consulado Argentino em Miami para processar um novo passaporte.
Até então, Lopecito tinha sido utilizando o documento de viagem do pai de Maria Elena.


4ª parte


Dizem que o ocultismo pode variar nas formas, mas não necessariamente depende da formação intelectual que possa ter o feiticeiro, nem dos credos políticos que pratique.
Quando os norte-americanos descobriram a tremenda influência que a astróloga Joan Quigley tinha sobre a primeira-dama Nancy Reagan, esposa do presidente Ronald Reagan muita gente atribuiu à enorme distração da senhora uma grande parte da sua capacidade de ser influenciada por um vidente.

Ainda lembramos do caso de Hillary Clinton, esposa do também presidente Bill Clinton, que invocava, com a ajuda da sua conselheira espiritual Jean Houston, a alma da antiga primeira-dama Eleanor Roosevelt, ou ainda a de Mahatma Gandhi para que ambas, com a força "do além", lhe dessem sabedoria para cumprir as suas funções junto ao chefe do império.

O presidente argentino Carlos Menem também foi chamado de obscurantista por acreditar que fosse a reencarnação do caudilho de La Rioja, Facundo Quiroga. E tudo o que foi dito até agora prova que existe uma velha aliança entre a feitiçaria, a magia e o misticismo, com o poder político e econômico. Adivinhos, feiticeiros e bruxos são um apoio e uma verdadeira garantia fiel para os poderosos. Eles oferecem a legitimidade do extraordinário, ou do sobrenatural, uma vez que trazem e levam o contato terrestre com as forças mais profundas e essenciais.

5ª parte

O começo do fim

Senhores, estão cercados. Coloquem suas armas no chão, e deixem as mãos para cima. Meus soldados vão revistá-los. Em seguida, dêm a meia volta e vão para suas casas.”

Era o entardecer do Sábado, 19 de julho de 1975, e o coronel Jorge Felipe Sosa Molina, chefe do Regimiento de Granaderos a Caballo General San Martin, o corpo que, tradicionalmente, se encarrega de proteger os presidentes argentinos, não podia acreditar no que via.

"Espingardas Itaka, as então modernas metralhadoras israelenses Uzi, e outras ainda mais novas importadas da Bélgica, pistolas automáticas e até mesmo algumas granadas de mão, haviam sido deixadas no gramado da residência presidencial de Olivos. Minutos antes, todo esse arsenal estava nas mãos da custódia de José López Rega que, abandonado pelos seus tradicionais suportes políticos, estava prestes a deixar o país.
Cerca de duas centenas de civis, muitos deles membros da Triple A, a organização terrorista de extrema-direita, que arrasou com a Argentina dos anos 70, criada sob o amparo de López Rega, tinham tentado cercar e tomar a residência de Maria Estela Martinez de Peron, na tentativa de salvar sua chefe; não teriam conseguido, mas por muito pouco não desencadearam uma tragédia.

"Caindo já o sol de inverno, um dos oficiais dos Granaderos, disse a Sosa Molina que o grupo armado estava tentando forçar os portões de entrada para a residência para os lados da rua Villate.

"O que vamos fazer agora? quis saber o oficial. Vamos  impedir a entrada deles? Sosa Molina disse que não. Mas pediu o deslocamento de quatro veículos blindados M-113 – carriers, e espalhou um esquadrão reforçado com cento e cinquenta granaderos para embolsar a banda lopezreguista que, finalmente, entrou nos jardins da residência para cair direto na armadilha.
Em questão de minutos, sem disparar um único tiro, um dos mais poderosos exércitos privados no país tinha sido desarmado.

" Fique encarregado de tudo istoSosa Molina disse ao chefe da Casa Militar, o Capitão Enrique Ventureira, depois de dar uma última olhada para o pequeno arsenal. O marinheiro não mostrou muita surpresa. Desta vez, a quantidade era bem maior, mas não foi a primeira vez que a guarda militar de Olivos, que revistava um por um os carros que entravam na residência, teve que sequestrar de dentro do veículo do Ministério de Bem-estar Social armas e explosivos em grandes quantidades.

"López Rega não estava em Olivos. Politicamente cercado e isolado, sem o apoio do setor dos militares que haviam tolerado suas andanças e as da Triple A, e que já sabia e preparava o golpe de 24 de Março de 1976, brigado para sempre com os líderes sindicais da direita peronoista que em algum momento o haviam apoiado, López Rega foi forçado a deixar o país.

"Um dia antes a presidente recebeu um ultimato do ministro da Defesa, Jorge Garrido, que falou em nome dos chefes do Exército, Alberto Numa Laplane; da Marinha, Emilio Massera, e da Força Aérea, Hector Fautario.

"Uma intimação semelhante lhe havia feito antes o ministro da Justiça, Ernesto Corvalan Nanclares, que conhecia a pressão exercida pelos sindicatos tanto da direita peronista como, e sobretudo, os comandados pelo “classismo” de esquerda para obter a saída de Lopez Rega.

A força da CGT que dirigia Casildo Herreras e as 62 Organizações, lideradas por Lorenzo Miguel, também tinha sido sentida emcima de Raul Lastiri, presidente da Câmara dos Deputados e genro de Lopez Rega.

El Brujo, como era conhecido por causa da sua paixão pelos ritos esotéricos, a emissão da energia e pelas profundezas enigmáticas do além que ficaram expressos em seus escritos como agromegálicos como ininteligíveis, devia deixar o país ".

(Texto e Guido Alberto Amato Brasvavsky)
                                                                                     
O relato de Amato e Brasvavsky é confirmado e completado com o que tinha descrito detalhadamente Facundo, personagem que cada vez aparece más protagónico nos textos do caderno Laprida, e que estava perto de Guardia de Hierro e que parecia ser um garoto muito bom, mas também muito confuso ideologicamente. Ele conta que, na mesma hora em que a guarda pessoal de López Rega largaba suas armas, o ex-ministro já dirigia de Olivos a caminho da antiga residência de Isabelita Perón em Gaspar Campos, Vicente Lopez.

Após a chegada, o chefe da guarda de Perón, Juan Esquer, já havia sido avisado por Sosa Molina que não deveria deixar López Rega sair carregando qualquer objeto de valor que tivesse pertencido a Juan Perón, falecido no ano anterior.
Esquer cumpriu com o que foi encomendado e López Rega acabou saindo de Gaspar Campos com apenas duas malas com seus pertences pessoais, alguns de seus muitos livros sobre esoterismo e um par de ternos. Nada mais.
Talvez procurasse pela casa toda, sem encontrá-la, a capa azul de tenente-general que Perón usava e com a qual, após a morte do velho, López Rega passeava-se pela Quinta Presidencial, sonhando talvez em obter ainda mais poder do que ele já tinha conseguido.

Naquela mesma tarde, depois de desarmar os homens da custódia de todos os organismos dependente de Bem-estar social — constando que López Rega também possuia uma guarda pessoal própria— e antes que o ex-ministro voltasse a Olivos novamente para despedir-se da presidenta Isabelita, o coronel Sosa Molina, chefe dos granaderos e da custódia da mandatária, ainda teve que enfrentar uma batalha muito especial com a sua protegida, segundo conta Facundo, militante da Guardia de Hierro:

O que é, coronel? Estou presa?— pergunta Isabel Perón ao chefe dos granaderos, uma vez que tinha notado com suspeita ao início e apavorada depois, os movimentos bastante incomuns; e olhava fixo, asustadíssima, as mãos crispadas, segurando os braços da cadeira.

Mas como você me pergunta isso, senhora?—respondeu muito sério Sosa Molina.

—  Acontece que não vejo nem Rovira ou Almiron. Sosa... Onde estão eles? —  Isabelita queria saber, referindo-se ao sub-delegado Rodolfo Almiron e Miguel Angel Rovira, que eram os braços armados do Bruxo López Rega, e que segundo as suspeitas naqueles dias, eram as cabeças visíveis da tristemente famosa Tríplice A —las Tres A

Rovira e o sub-delegado Almiron não fazem parte da sua custódia, senhora— diz o coronel Sosa Molina. — Eles são os guardiões do Sr. Lopez Rega. A sua custódia, senhora, é a Polícia Federal, que está aqui, protegendo-a—

Mas Isabelita não se tranquilizou. Pelo contrário, passando do medo e da depressão à euforia, e num grau de excitação incontroláveis, ele insistiu com as perguntas ao chefe da sua custódia, Sosa Molina:

Sim bom. Mas diga-me, Molina: Eu estou presa? E porque é que está acontecendo todo esse movimento estranho, esse dispositivo? e essas armas todas que tiraram da custódia, o que isso significa? — disse, nervosa, e o militar tenta acalmá-la:

Diga-me, o que você precisa, senhora?

Quero que Almiron, venha agora mesmo, já, aqui—, quase grita, tentando recuperar a sua autoridade de presidenta.

Então, o coronel Sosa Molina envia de imediato um tenente para chamar o sub-delegado.

Por favor, acompanhe a senhora— ordena Sosa Molina a Almiron quando ele chega. Isabel, entre murmúrios e soluços abafados, como estivesse rezando uma oração desesperada, volta a disser que se sentia presa. O coronel Sosa Molina, bastante cansado já, olha pra ela fixo e diz:

Senhora Presidente, estamos cuidando da sua vida. Estamos defendendo-a, senhora—  respondeu Sosa Molina, e presidenta parece começar a entender a situação e gradualmente vai se acalmando.

Quando Sosa Molina retorna ao seu escritório, López Rega passa rapidamente em Olivos para dizer adeus a Isabelita.

Um pouco mais tarde, ao chegar López Rega ao Aeroparque Jorge Newbery já está esperando por ele o avião presidencial Patagonia T-02, no qual ele vai deixar o país. Não voltaria mais nos próximos 11 anos até ser extraditado, preso pelo FBI dos Estados Unidos em Miami, depois de ser descoberto na Suíça por um fotógrafo da agência espanhola EFE.
El Brujo tinha vivido seu exílio dourado propil onze anos entre as Bahamas e sua casa de Fort Lauderdale, na Florida, Estados Unidos.
                                        
Voltando aos anos de 1960 e 70

Durante seus primeiros seis anos entre as décadas de 1960 e 70 na Quinta "17 de outubro" de Puerta de Hierro, em Madrid, o futuro Brujo, dedicou-se a suas ocupações como “valet” pessoal de Isabelita Perón, a cuidar da jardinagem e a quidar das torneiras que pingassem, e até a tomar conta e gerenciar o pessoal de serviço do casarão do casal Perón.
Simpático à sua maneira, segundo alguns dizem, servil e subserviente, López Rega tornou-se indispensável para Juan e Isabel Perón e, pouco a pouco, conseguiu até converter o general num seguidor da sua visão mágica da vida e da política.

Em poucos anos mais, El Brujo se tornaria algo mais do que apenas um servidor fiel e obsequente. Como secretário particular, muito gradualmente, sem que os seus avances e progressos fossem notados, ele conseguiu começar a controlar quase que completamente a vida do casal Perón, e se tratava nada menos que de uma figura chave na política da Argentina durante muitas décadas.
Até Pilar Franco, irmã do ditador espanhol e amiga íntima do casal argentino, advirtiu um dia sobre o poder exagerado que tinha El Brujo sobre eles. Perón respondeu com um suspiro de resignação: "Sim, mas já é tarde demais, senhora.
                         
Pedro lê nos cadernos que Facundo, aquele rapaz que simpatizaba con a organização Guardia de Hierro, insistia em dizer que o poder de Lopecito sobre a terceira mulher de Perón parecia ser total. O Bruxo a teria convencido de que poderia ser uma espécie de segunda Evita graças aos poderes que ele tinha e às suas práticas esotéricas.

Contam que manipulava, sem qualquer inibição, o cadáver embalsamado de Eva Duarte em suas cerimônias ocultistas em Puerta de Hierro, e mais tarde o viria repetir na Quinta Presidencial de Olivos, em uma tentativa desesperada de passar a Isabel, completamente desprovida de dons especiais, todo o talento e competências, assim como os poderes da segunda e mais famosa esposa de Perón.

Dizem os de Guardia de Hierro que o general nunca aguentou qualquer um que pudesse lhe fazer sombra— conta Facundo, — e Lopez Rega, como Isabel, e todo o contrario a Evita, era uma companhia ideal. Porque era rasteiro e servil, medíocre, porém astuto, e não questionava a vaidade ou o narcisismo do velho líder, o que lhe rendia bons frutos, porque depois os iria cobrar com juros e correção, generosamente a favor do seu imenso poder pessoal.

A tal ponto tinha crescido sua influência—, diz Facundo, antigo colaborador da Guardia de Hierro, — que quando seus aliados da direita sindical conseguiram afastar Cámpora e lhe exigem a renúncia ao cargo de presidente, em 1973, já o poder do Bruxo era de tal dimensão, e sua força tamanha, que lhe permitiria colocar na presidência provisória da Republica ao marido da sua filha de Norma, o seu genro Raul Lastiri.

E agora, já comodamente instalado e abrigados seus aliados como ministro, López Rega conseguia manipular a su prazer os fundos substanciais da loteria e dos casinos nacionais, o que lhe deu grande autonomia e um enorme poder financeiro; ao mesmo tempo, como ficou evidenciado em seguida, rapidamente acumulou uma fortuna tão considerável como ilegal.
Com estes recursos, e posicionado na sua função no Ministério da Previdência Social — ou Bem-estar Social—, em frente à Plaza de Mayo, organizou a banda sinistra de assassinos chamada Aliança Anti-comunista Argentina, ou simplesmente, a Triple A, para acabar, usando métodos terroristas, a esquerda de dentro e de fora o movimento peronista, sobretudo os intelectuais e a oposição sindical.

Alguns poucos anos mais tarde, os militares argentinos repetiriam as ações criminosas de El Brujo aprimorando-as ainda mais, se possível, através do poder que lhes daria o controle total do aparelho do estado argentino.

O homemzinho que na varanda da Casa Rosada mostrava descaradamente a toda a nação como ditava, ou fazia de conta que estav ditando, os discursos da presidenta, chegou ao ponto de dizer que — Isabel não existe. Ela é uma invenção minha— cometeu um grande número de crimes, incluindo o assassinato do deputado peronista Rodolfo Ortega Peña, o advogado de defesa de presos políticos Alfredo Curutchet, o professor universitário Silvio Frondizi, irmão do ex-presidente Arturo Frondizi; o padre Carlos Mugica, todos eles metralhados pelas costas. A organização criminosa Triple A, que foi criada e comandada por ele, também foi diretamente responsável pelo atentado que destruiu o carro do senador radical Hipólito Solari Yrigoyen que mais tarde, e novamente em democracia, seria o embaixador itinerante de Raúl Alfonsín.


Se não tivesse sido pego de surpresa pela sua segunda morte em prisão em Buenos Aires, Lopecito teria de enfrentar um julgamento por, pelo menos, a movimentação irregular de fundos da "Cruzada da Solidariedade", que era um delito pelo qual Isabel Perón já havia sido condenada a sete anos e meio de detenção em Bariloche pelo golpe militar de 1976. E também o ameaçava a causa por desvio de recursos reservados da presidência da república.

Facundo ainda lembra no seu texto também daquele dia desastroso e nefasto de 29 de janeiro de 1974, quando a Triple A divulga em Buenos Aires sua terrível "lista negra" de personalidades políticas, sindicais e da vida cultural, “que serão imediatamente executados, onde quer que eles sejam encontrados".

A lista, divulgada pela organização criminosa dirigida por Lopecito, incluía a Hugo Bressano — mais conhecido como Nahuel Moreno—, o líder do ex-PRT-La Verdad, então chamado PST; a Silvio Frondizi, Mario Hernández, Gustavo Roca e a Mario Roberto Santucho Roca, o principal líder do PRT-ERP, principal guerrilha marxista; havia também sindicalistas e militantes do peronismo combativo, como Armando Jaime, Raimundo Ongaro, René Salamanca, o líder sindical do PCR, e Agustín Tosco; também estavam na lista Rodolfo Puiggros, ex-reitor da Universidade de Buenos Aires, Manuel Gaggero, diretor do jornal El Mundo, controlado pelo PRT, Roberto Quieto — primeiro líder máximo das FAR e depois de Montoneros, Julio Troxler, sub-chefe da polícia da Província de Buenos Aires, ligados ao Peronismo de Base; Os coronéis do exército Perlinger e Césio, o bispo Dom Angelelli; o senador federal Luis Carnevale e vários outros, a maioria deles mortos em menos de um ano de violenta ofensiva da organização terrorista Triple A.

Nos escritos de Facundo nos cadernos Laprida, ele deixa entrever que a organização guerrilheira de esquerda peronista Montoneros havia planejado executar López Rega, aproveitando-se dos poucos momentos em que o ministro se afastava da presidenta Isabel Perón. Como conta Perdía, ex-líder dos Montoneros, “nós não o fizemos por respeito para à constituição e à viúva de Perón", diz ele. Eles tinham planejado pegá-lo de surpresa em seu carro quando se movimentava sozinho, sem estar acompanhado por Isabelita.

Os Montoneros estudaram os movimentos do Bruxo por cinco meses. O plano, no qual tinham calculado o acionar de cerca de vinte guerrilheiros, estava pronto e já em fase operações. Havia apenas um cenário possível para executar a ação militar com segurança, o que finalmente não se fez porque o movimento popular chamado de o   Rodrigazo se antecipou, com a sua profunda crise política e social, a greve geral e as grandes manifestações de massa de julho de 1975, e e logo em seguida com a queda e a fuga ao exterior do El Brujo.


— Nós, da Guardia, também tínhamos pensado num plano com os mesmos objetivos— contava Facundo no caderno Laprida. — Mas a Guardia de Hierro já estava a essa altura formalmente dividida entre um grupo que tinha proposto a auto-dissolução após a morte de Perón em 1975, e outro que estava se aproximando de Isabel Perón com o mesmo propósito político dos Montoneros e de toda a esquerda, que era a única consigna que os levava momentaneamente a coincidir com da direita peronista: evitar o golpe militar contra o governo constitucional— justifica Facundo, que não deixa de reconhecer as ambiguidades do grupo.

— Celestino Rodrigo, um homem do entorno de López Rega, assumiu o cargo de ministro da Economia em 2 de junho de 1975. Logo no dia seguinte aumentou o preço da gasolina entre 127 e 181%, o do querosene e diesel, 50%. Dois dias depois, a tarifa mínima do transporte urbano subiu 50%, o leite 23%, 20% o pão, os táxis 140%, 150% a passagem do metrô — lembra Facundo.

A guerra entre o governo e os sindicatos para equiparar os preços e salários terminou com o ministro Rodrigo e seu plano econômico, e começou a destruir o reinado do odiado López Rega, que decidiu sair de férias por alguns dias no Rio de Janeiro. Ele voltou ao país disposto a ser ainda mais duro e violento com aqueles que não queriam colaborar com a sua política:

— Para os que tenham a cabeça dura, nós vamos a encontrar um porrete adequado à essa dureza: o da Argentina é uma madeira muito boa”— comentou, totalmente inconsciente ou apenas desprezando os movimentos que um conjunto de forças já estavam preparando en su contra, como relata Facundo.

Os grêmios do peronismo “verticalista”, além dos classistas das Coordinadoras de Gremios en Lucha, exigem a saída sem condições de López Rega. E assim, em meio de diversos tumultos, se prepara o desfecho da crise:

O ministro da Defesa, Garrido, sai da casa presidencial em Olivos e se reúne com os comandantes das três forças armadas.

O chefe do Estado Maior do exército, pede ao regimento de Granaderos que ofereçam segurança especial e reforçada ao ministro da Defesa, Garrido, que ao dia siguinte vai falar de alguns temas importantes com a presidenta:

Tome todas as medidas necessárias para que no haja nenhum tipo de interferência— disse, refirindo-se com certeza a López Rega e em particular aos seus homens da custódia e aos da banda armada da Triple A.

No dia seguinte, Sosa Molina, já havia reforçado sua equipe colocando cinco dos seus oficiais de confiança em torno da Casa de Olivo, onde conferenciaram a presidenta e o ministro durante meia hora.

Depois da reunião— conta Facundotudo foi como num daqueles filmes em que a vertigem se mistura com a comédia.

O fim

Quando por fim a crise eclodiu, rapidamente foi decidido que López Rega iria deixar o país no avião da presidência. Consultada a Força Aérea sobre a disponibilidade de transporte por avião, o brigadeiro Fautario diz que a aeronave estava disponível para o chefe da Casa Militar, que era na época um fuzileiro naval; então eles teriam que consultar com a Marinha. O comandante dos marinhos, almirante Massera — futuro participante da junta militar que deu o golpe um ano depois—, se esquiva dizendo que essa é uma questão da Aeronáutica.

Finalmente, quando perguntado o comandante do exército, respondeu com um aconselhamento claro, que era não se intrometer. Finalmente, o capitão de naviao Ventureira decide aprontar o avião presidencial, que já estava esperando no Aeroporto Jorge Newbery.

E o avião espera em Aeroparque até o cair da tarde do sábado 19 de julho e López Rega decide ir para a residência presidencial em Gaspar Campos. Os homens do seu exército privado se adiantam e vão em frente para tentar o resgate de El Brujo que ainda não chegou em Olivos, mas eles são desarmados de imediato. O ex-ministro passa mais tarde, mas já sem a sua escolta de assassinos da Triple A, para realizar uma visita de despedida fugaz à presidente. Um comboio de veículos militares leva o ex-ministro em alguns poucos minutos para o Aeroparque.

Antes de decolar a aeronave, os motores param, sai um oficial de dentro do avião presidencial, e passa uma ordem. Um motociclista da Polícia Federal corre de volta para a residência de Olivos para pedir que lhe entreguem a nomeação de López Rega como embaixador plenipotenciário da Argentina. El Brujo, na pressa de fugir, e Isabelita em seu estado de extremo terror, tinham esquecido o diploma sobre a mesa da última conversa.
No aeroporto, o ex-ministro levanta o diploma e o exibe com um largo sorriso ao subir a escada do T-02:

Agora eu sou embaixador! ouviram dizer ao Lopecito. E foram as suas últimas palavras em solo argentino até onze anos mais tarde, como conta Facundo, um ex-simpatizante da Guardia de Hierro muito bem informado sobre as andanças da direita sindical e católica do peronismo na década de 1970.


A modo de um pré-epílogo
ou de post- prólogo


Como já sabemos, aquele 12 de abril de 1980 foi, se não a definitiva, pelo menos a primeira morte conhecida e registrada de José López Rega.
Mas muito pouco se sabe sobre o que essa morte representou naquele momento. El Brujo morreu, sim, e foi uma maneira de escapar, — pelo menos de momento— da justiça humana.

Divagando um pouco, digamos que, talvez uma forma de tentar entender esse processo estranho é sair por um momento de tudo o que é meramente sensível ou "real" e encarar de frente outras crenças ou convicções. Como as crenças do próprio personagem, — o nefasto e tenebroso personagem deste relato—.

Ao ler este cardeno, quando o texto se concentra no tema do espiritismo e nas formas em como López Rega o interpretou e usou, Pedro e Marta lembraram de outro momento da história argentina que antecede a esta época e que trata do assunto:

A crença na reencarnação, por exemplo, sempre esteve presente desde os tempos antigos em todas as culturas da humanidade, seja na egípcia, grega, hindu, budista ou as religiões romanas.
Uma das respostas do humanismo para as incógnitas das desigualdades e sofrimentos dos homens e mulheres, é encontrado na doutrina da reencarnação, e a lei análoga de causa e efeito, ou da ação e reação.

Em seu "Livro dos Espíritos", Allan Kardec, fundador do espiritismo professor, escreve a seguinte mensagem: “ Deus criou todos os Espíritos simples e ignorantes, que possuem tanta aptidão para o bem como para o mal, mas com idênticas oportunidades para evoluir.”
Kardec, em seus trabalhos também nos diz que "só é inabalável aquela fé que pode olhar cara a cara a razão, em todas as idades da humanidade.” “Nascimento, morte, renascimento e progresso, sempre. Esta é a lei.
                                                                            
Mas voltando à nossa história, segundo a conta Facundo nos seus Cuadernos, sempre fiel à sua experiência juvenil na confusa e ambivalente Guardia de Hierro. Ele diz que havia lido um texto de Juan Gasparini no qual afirma que a justiça falhou e não podia condenar El Brujo por não ter seguido as pegadas do dinheiro, para que se pudesse recuperar a fortuna ilegal de López Rega. Esse tesouro ilícito foi herdado em sua totalidade pela sua companheira de aventuras, Maria Elena Cisneros, que disfrutou do botim no Paraguai, dando aulas de música enquanto mantinha duas contas suíças abertas por Lopecito em seu nome.


A Neronada

No dia 16 de junho de 1955 aconteceu uma das jornadas mais dramáticas entre as muitas da história argentina. O bombardeio da aeronáutica sublevada contra o governo legítimo de Juan Perón sobre a Casa de Governo, ao mediodía; e o incêndio das igrejas, durante a noite. Foi a ominosa expressão da violencia e intolerancia máxima entre dois setores bem claros da sociedade argentina, a beira de uma guerra civil.
Às 17 horas a fracassada tentativa de golpe para assassinar o presidente Perón tinha concluído, e a base aérea de Morón, de onde tinham despegado os aviões, foi tomada pelas tropas leais ao governo; os ocupantes do Ministerio de Marinha se renderam, os aviões rebeldes fugiram rumo a Montevidéu e os responsáveis do bombardeio foram detidos.

Horas mais tarde, aconteceu o saqueio e a queima das igrejas céntricas de Buenos Aires.

Embora em 1946, quase o 94 % dos argentinos declaraba ser católico, e a hieraquia eclesiástica, encabeçada pelo cardeal Santiago Luis Copello, havia proclamado sua “neutralidade” no debate político pré-eleitoral, alguns, como o presbítero Virgilio Filippo, pároco da Inmaculada Concepción, de Belgrano, elogiaba o peronismo como o mejor antídoto contra o comunismo, enquanto que o padre Hernán Benítez de Aldama S.J., confesor de Evita, assessoraba o candidato em matéria de dotrina e redigiu vários dos seus discursos eleitorales católicos.

No outro extremo estava monsenhor Miguel De Andrea, en franca disidência contra Perón. O pároco de Corpus Domini, de Liniers, assim como o presbítero José Dumphy, lançavam inflamados sermões antiperonistas que atraiam os católicos simpatizantes da Unión Democrática, aliança dos partidos anti-peronistas.

A marca clara e forte da doutrina social da Igreja em todo seu ideário político-ideológico, os emblemas “Dios, Patria y Justicia Social", e a peregrinação ao santuário de Luján como culminação da su campaña electoral inclinaram à maioria dos católicos a dar seu voto a Perón nas eleições de 24 de fevereiro de 1946.

A legalização do ensino religioso em 1947 foi fundamental para as boas relações entre o Estado e a Iglesia. Porém, entre a longa lista de medidas favoráveis à Igreja Católica, como a construção de novas casas paroquiais, a designación da Virgen de Luján como patrona da policía e dos ferrocarris, o presidente Perón intercalava algumas queixas contra o Episcopado.

En 1950, contudo, aconteceu a primeira fratura grave quando o presidente enviou sua saudação especial a um ato espírita da Escuela Científica Basilio realizado no estádio do Luna Park.

A ortodoxia dos textos escolares e toda a concepção peronista da religião penetraram nos três níveis do ensino por meio da obrigatoriedade do texto de La razón de mi vida, livro auto-biográfico e de reafirmação ideológica peronista de Eva Perón. Parecia, aos olhos dos setores mais conservadores, que estava emergendo um culto novo, diferente e dissociado daquele da Igreja. Juan Perón concluiu assim a sua primeira presidência sem ter podido conquistar a hierarquia dos católicos.

Na noite de 16 de junho, logo depois do bombardeio criminoso ao centro histórico de Buenos Aires, grupos de jovens vestidos de civil arrobaram os portais da Cúria e da Catedral, penetraram nas igrejas e saquearam as sacristias. Carregando vasilhames com diversos combustiveis iniciaram a operação fogueira, mais conhecida como "a neronada”.

Foram tomadas pelo fogo a Cúria Eclesiástica, com o seu irrecuperável arquivo e tesouros artísticos, e oos templos de Santo Domingo, San Francisco, San Nicolás, La Piedad, San Ignacio, San Juan Bautista, Nuestra Señora de la Merced, Nuestra Señora de las Victorias e San Miguel. O convento de San Francisco e a capela de San Roque ficaram seriamente danificados. A ira dos incendiários, que apilaram os bancos de madeira para aumentar as fogueiras, incluiu sagrários e outros símbolos religiosos.

Os devotos de Dom Orione veriam cumprida sua profecía: "Haverá persiguição contra a Igreja e os principais templos de Buenos Aires serão incendiados ".
                                                                                                      
É parte da história oficial que Alberto Teisaire, o vicepresidente da Argentina na época dos fatos, e Armando Méndez San Martín, o ministro de Educación, ambos membros da masonería anticlerical, serian sindicados pela oposição anti-peronista como os ideológos dos incêndios e da ocupação das igrejas.

Como consecuencia dos fatos, a Santa Sé decidiu “a ex-comunhão de todos aquellos que cometeram tais delitos".

Porém, segundo a legislación eclesiástica, o único que podería ex-comungar um presidente da nação era o Papa. E o decreto em cuestão havia sido emitido por uma instituição menor, uma instancia menos importante, um organismo do Vaticano, a Sacra Congregação Consistorial. O decreto levaba a firma do cardenal Piazza. Em 1963, Perón, morando já em Madri, pediu numa carta à Santa Sé um esclarecimento sobre a sua situação canónica. A rigor, o caudilho dizia na nota que solicitava o requerimento para desanuviar qualquer dúvida perante a sociedade.

Nesse momento, o Papa João XXIII – Angelo Giuseppe Roncalli- fez a Santa Sé responder que não havia nenhuma questão em pendência com a Igreja. Ou seja: Perón não estava ex-comungado. Mas o velho líder foi além em seu requerimiento. "Temeroso de ter sofrido a ex-comunhão", Juan Perón, manifestava seu arrependimiento pelos eventuais atropelos cometidos e pedia, como uma ação cautelar, a absolvição. A Santa Sé aceitou o pedido e comisionou para tal efeito o arzebispo de Madri, cardeal Leopoldo Eijo Garay. Roma colocou ainda uma condição, que o fício tratando do tema se mantivesse em sigilo para evitar qualquer tipo de leitura políticas de um ato privado ou particular. O arzebispo concordou então em dar a Perón a sua absolvição na sua casa, na residência de Puerta de Hierro. Assim foi. E o líder do peronismo recebeu de joelhos o perdão do Papa.

M.E. Cisneros — diz Facundo nos seus textos nos Cuadernos— também guardou a sete chaves o produto da venda de vários imóveis, entre outros o chalê avaliado em mais de um milhão de dólares à beira do lago Leman, na Suíça, onde ela morou com El Brujo desde que deixou apressadamente a elegante residência madrilenha de Puerta de Hierro.

Facundo nos contava que a localización dessa imensa fortuna ilegal, junto com as fotografias e os detalles dos dados financeiros, foram revelados no livro "La fuga del Brujo. Historia criminal de José López Rega", publicado pelo mesmo Gasparini em 2005.

Mas, fala pra mim, Facundo— o Viejo Pedro encara o amigo olhando-o fixo—podemos contar com você, de verdade, mesmo a pesar do teu passado de simpatizante dos fascistas da Guardia de Hierro?

— Viejo, o senhor me perdoe e eu digo isto com todo o respeito que me merece, mas na Guardia de Hierro no havia somente fascistas. Tinha também muita gente boa, incluso de esquerda— responde Facundo, com calma e educação, mas um pouco chateado.

Tá bom. Não precisa se ofender, pibe, mas se eu te digo isso é porque o que estamos nos propondo fazer agora é muito importante; pode significar uma virada fundamental na história do país, Facundito— passa a mão pela cabeça, paternalmente, e lhe dá um tapinha de despedida o Viejo Pedro Milesi.

Já é quase de noite e a saida do barraco da Villa Las Antenas vai ficando um movimento bastante perigoso, ainda para um velhinho de aspecto inofensivo como era Pedro nesses primeiros tempos dos anos oitenta. As lutas contra o saturnismo – ou intoxicação pelo chumbo no sangue- na fábrica Insud em 1974 tinham juntado gente de todos os movimientos políticos, desde o PRT – Partido Revolucionario de los Trabajadores, que organizara a guerrilha marxista do ERP- até os simpatizantes da Guardia de Hierro. Foi ali mesmo, na Villa Las Antenas, que tinham se conhecido Facundo e dom Pedro Milesi. Junto com eles, uma cinquentena de ativistas sindicais e vicinais, e de militantes da esquerda, desconectados das suas organizações, tinham se mantenido agrupados durante os años mais duros de 1976 a 1979.

Muito pouca gente soube disso em seu momento, e quem me falou do assunto, já a finais de 2001, em meio ao fragor das batalhas populares de 19 e 20 de dezembro, também não acreditava demasiado. Mas, em fim, o que se conta de boca pequena é que Facundo era nada menos que a terceira ou quarta reencarnación de El Brujo. Teria voltado ao mundo dos vivos, dizem, com uma única missão: a de desfazer na medida do possível todo o mal que López Rega tinha espalhado como uma tempestade de vento, de morte e sangue no seu passo por este mundo.

E é por isso que às palabras de Perón —“He vuelto casi desencarnado”— ditadas pelo pensamento esotérico do nefasto Brujo, Facundo acrescentara do seu próprio cunho a frase misteriosa que o Viejo Pedro Milesi lhe ouvira no dia do reencontro: “Voltei para encarnar o bem, e para desencarnar os crimes do passado”. E o Velho pensou que se tratasse nada mais que de una auto-crítica do su centrismo político, e que agora sim se poderia confiar plenamente na sua participação nas novas ações que estavam sendo preparadas contra a ditadura.

6ª parte

O juiz federal Norberto Oyarbide que decretou a prisão da ex presidenta María Estela Martínez de Perón — conhecida como Isabelita— e sua extradição desde España, na causa que investiga os crimes da organização parapolicial Alianza Anticomunista Argentina a “Triple A entre os anos de 1973 e 1976, fez com que em 12 de janeiro de 2007, fosse detida pela Policía Nacional espanhola na periferia de Madri transladada, algemada, até a Audiencia Nacional.

Isabel se negou a ser extraditada voluntariamente à Argentina, e foi liberada provisoriamente pelo Juíz de Guarda, Juan del Olmo, enquanto não se resolvesse o expediente da extradición, com a obrigación de comparecer ao juizado a cada 15 dias.

Em 28 de abril de 2008, a Audiencia Nacional espanhola considerou que os crimes atribuídos à ex-chefa do Estado estavam prescriptos pois “não são de lesa humanidade” e, em consequencia a justiça da Espanha rejeitou o pedido de extradição. A causa do argentino Oyarbide está baseada em “50 corpos de atuação e muitíssimos folhas”, segundo o magistrado, e parecia ser uma das mais importantes na história da justiça argentina, depois do juizo às Juntas Militares da passada dictadura de 1976 a 1983.


O juiz, cauteloso, rejeitou a existência de qualquer elemento que responsabilize ao ex-presidente Juan Domingo Perón, morto quando gobernava pela terceira vez o país, em julho de 1974, mas considera que a ex-mandatária, ela sim, prestou uma colaboração “esencial” nos crimes que cometeu a “Triple A” entre os anos de 1974 e 76, embora o acionar deste grupo já tinha começado em 1973, quando o ex-cabo de policía José López Rega, logo depois Ministro de Bienestar Social no governo peronista, chegou ao país.

Continuará

JV. São Paulo, 24 de fevereiro de 2017.