As tristes – e nefastas – histórias
de
López Rega e Bignone *
Pedro Sánchez não era o que chamaríamos de um “escritor de sucesso”.
Havia parado de tentar publicar um romance que vinha escrevinhando durante os
últimos nove anos quando, depois de seis ou sete apresentações em concursos
literários viu que ninguém se interessava muito por aquele seu texto, justamente
aquele que ele considerava o mais importante e definitivo da sua carreira.
De fato, Pedro já tinha escrito e publicado bastante: foram crônicas, contos,
alguma poesia, e um par de mini-romances para a revista “O Novo Cruzeiro”, que fundara em 1994 com dois colegas do folheto
cultural “ProHispam”, da qual tirava
seus magros salários fixos. Pobres, mas garantidos e seguros salários quinzenais.
Pedro trabalhou também como cartunista, completando mais de 190
publicações em diversos jornais e revistas de São Paulo, Juiz de Fora, Santa
Maria de Rio Grande do Sul, e Campinas, entre crônicas, contos, romances e
quadrinhos.
E ainda escreveu para a televisão a série “Planeta das Mulheres”. Em 1998 escreveu sua primeira peça teatral,
"Uma mulher desnuda ao sol",
e com ela ganhou o Prêmio Camões Jovem.
Depois passou mais de dez anos opacos e abúlicos rabiscando no Blog Carpindo, onde reuniu suas
crônicas, e chegou à marca de um milhão de visitantes. Mas, embora premiado,
muito lido no seu blog, e autor de treze livros, Pedro Sánchez era consciente
de que nunca passou – e provavelmente não passaria- de um escritor medíocre.
Na realidade, Pedro era um técnico formado aos 21 anos em meteorologia, que
mais tarde foi administrador de empresas, professor particular de inglês e de datilografia primeiro e informática depois; e, nas horas vagas – que eram
muitas–, um especialista em futebol brasileiro. Em síntese, um eclético total.
Nos últimos dois anos, deprimido pela rotina do trabalho e pelos
sucessivos fracassos de crítica das suas obras, Pedro caiu numa depressão que o
confinou durante meses a fio na frente das telas da Netflix, alternando apenas
com as palavras cruzadas e os intermináveis quebra-cabeças. Enquanto isso, trabalhava
como jornalista free-lancer, escrevendo sem nada de vontade algo de ficção
adulta e juvenil por encomenda, e fazendo roteiros eventuais para o cinema, ou
atuando como consultor naquele canal de TV mais conhecido – e o mais criticado- do
país.
Foi nessas circunstâncias que conheceu Maria Luisa, que o abandonou repentinamente, alguns poucos meses e muitas conversas depois.
Maria Luisa e Pedro tiveram semanas de entusiasmo mútuo, gastando horas
do dia e da noite em longos papos pelo telefone ou por e-mail.
Falavam de literatura, é claro, e ele pensava que a seduzia com os seus
conhecimentos superficiais de tudo, sobretudo da prosa anglo-saxã que tanto
obsessionava a Borges, outro dos seus preferidos.
Maria Luisa insistia em não avançar no relacionamento, em não abrir
espaços para o amor ou o sexo; tinha medo de ser magoada; ficava apavorada pelo
medo de ser rejeitada, dizia. Falava dos sofrimentos com a mãe e o pai.
Mas foi ela quem finalmente o rejeitou, não sem antes abrir uma boa
oportunidade para ele cair rendido aos seus pés e ela se revelar uma insensível
sedutora. Maria Luisa o deixou de quatro – literalmente – depois de lhe
oferecer os beijos, as carícias e o sexo mais delicioso que Pedro nunca tivesse
imaginado na sua vida.
– Foi ridículo- disse o Pedro. – Um dia qualquer, semanas depois de
nosso primeiro encontro, que durou três dias e duas noites, liguei para falar apenas
um oi, e ela me disse que estava embarcando para São Paulo e passaria em
Congonhas em um par de horas, rumo a Brasília.
Pedro largou tudo o que estava fazendo na sua salinha comercial em
Guaianazes, e pegou dois ou três ônibus para chegar à zona sul de São Paulo, esquecendo
dois clientes na sala de espera, em pleno expediente, a mais de 40 km de onde
pensava encontrar a sua amada. A encontrou por fim para, depois de esperá-la durante meia
hora, em menos de quinze minutos e café expresso mediante, separar-se com um
longo beijo frio – da parte dela– que o deixou sem chão.
– Nunca me senti tão pateta– repete Pedro, ainda lembrando da frieza
repentina de Maria Luisa.
– Mas tudo tem uma compensação na vida, e nada acontece por acaso–; foi
na saída de Congonhas, mais afundado na depressão ainda do que já havia estado
nesses últimos meses que, distraído, Pedro quase derrubou uma mulher que entrava apressada
ao hall principal do aeroporto carregando uns quatro ou cinco livros.
– Caíram todos no chão e me apressei a levantá-los – diz Pedro–, e nesse
momento a minha vida mudou, pelo menos a minha vida literária, por completo–.
Um dos livros espalhados no chão era o seu “O fusca amarelo”, um dos títulos menos conhecidos
no mercado embora mais trabalho tivesse tido Pedro para escrever, editar e
vender; outro dos seus fracassos literários, digamos.
Mas Marta – que era a desconhecida com a qual teve o desastrado encontro–
reconheceu de imediato no rosto do trapalhão o escritor da foto na quarta capa
de um dos livros caídos.
Com os olhos fixos na publicação ela disse, muito devagar:
– Mas...desculpa, você é...Pedro Sánchez, né?-
– Sim, eu...perdão pelo desastre, eu...-
– Gostei do seu livro. Sim, gostei muito. Posso fazer um par de
perguntas? Está com tempo? – ofereceu um cartão, e Pedro soube que Marta era
gerente da livraria do aeroporto e que o tempo parecia não ser seu problema.
Passaram outros cinco ou seis meses depois do encontro desastrado de
Marta Rotondo e Pedro, até que o fracassado escrevinhador descobrisse o caminho
das pedras que deveria estar traçado desde sempre para que ele, já entrando na
idade mais madura – os 40 anos, que de fato são o início da velhice– pudesse por fim saborear a
doçura do sucesso.
Tinham conversado sobre diversos temas, principalmente dos livros de
Pedro e das suas várias tentativas de acertar com um bom romance, assim como
dos seus fracassos sucessivos. Marta, porém, parecia querer algo mais do que
conversas e o olhava com carinho crescente. Mas Pedro sempre desviava o olhar,
até que numa das tantas tardes de conversas no café de Congonhas, ela fez um movimento
de olhos que de imediato lembrou Pedro dos olhos esverdeados e tristes da já
quase, quase, esquecida Maria Luisa.
E em seguida rememorou Pedro a chuva no telhado naquela madrugada – a
última noite de amor–, as gotas furando o forro e pingando quentes no seu
peito enquanto Maria Luisa se mexia em cima dele, gemendo e fazendo imaginar
que aquilo era amor e que, além de tudo, podia ser eterno.
Mas de repente, Marta disse algo que o tirou do fascínio e parou de
sonhar acordado:
– Sabia? Minha tia Rosa, a espanhola, aquela que já te contei que
escreveu vários livrinhos curtos contando suas memórias, era cunhada do Bruxo López Rega, o ministro argentino
que mexia os fios da marionete Isabelita, a presidente dos anos 70– disse
Marta, e Pedro lembrou da sua última tentativa de um texto abandonado e esquecido
nas gavetas.
O nosso escrevinhador já tinha pesquisado durante meses e começado um
longo texto sobre a vida e morte do Rasputin
argentino. Havia preenchido mais de 400 páginas detalhando as manobras de um
dos indivíduos mais nefastos da história latino-americana nas últimas décadas;
tinha trabalhado duramente, até que outra ideia se atravessou no meio de todo o
processo. Pedro começou a repensar todo o texto quando se focou na figura de um
outro personagem da história recente da Argentina: o último chefe da ditadura
genocida que foi implantada mediante um golpe militar em 1976. E foi ai que o projeto do texto tinha empacado.
O comentário de Marta o deixou atônito: aparecia de repente, do nada,
uma nova chance de retomar as pesquisas. E era a livreira a que lhe oferecia
essa oportunidade em bandeja de ouro:
– A minha tia era irmã da amante fiel do Bruxo; e também foi casada com um argentino, militante do peronismo que passóu da direita para a esquerda nos anos de 1970. Ela poderia te ajudar na tua pesquisa–.
Foi assim que, revisando, semanas depois uma série de Cuadernos Laprida – marca famosa de
cadernos argentinos das décadas de 1940 a 70– que a tia da Marta mantinha
escondidos em dois caixotes no porão, Pedro descobriu alguns textos
interessantes que passo a copiar agora:
Capítulo
1
“João
Inácio Fagundes saiu da balsa que o tinha tirado de Foz do Iguaçu, e subiu as
escadas de madeira que o levariam para longe da guerrilha de Porecatu, no norte
do estado do Paraná.
Passou pela revista de documentos da Gendarmería
Nacional e entrou na Argentina pela minúscula vila de Puerto Iguazú. Era o inverno de 1953 e começava seu longo exílio.
A história de João Inácio e seu compromisso com a guerrilha camponesa havia
começado anos atrás, quando milhares de famílias se fixaram na região de
Porucatu, na fronteira do Paraná com Santa Catarina, entusiasmadas pela
promessa do governador Manoel Ribas, na realidade um mero interventor nomeado
por Getúlio Vargas, presidente da República naquela época.
Para colonizar uma área de mais de 120 mil hectares, Ribas havia anunciado
que as famílias que se estabelecessem para desenvolver a agricultura iriam
adquirir as propriedades, seis anos depois, a preços muito acessíveis. Muitos
agricultores pobres acreditaram na promessa e iniciaram com entusiasmo seus
trabalhos nas plantações.
João Inácio fugia agora das
lembranças da luta que havia levado incluso o seu amigo João Saldanha a
envolver-se na história. João Inácio tinha trabalhado junto do então futuro
técnico da seleção brasileira de futebol, um dos militantes indicados pelo
Partido Comunista Brasileiro para ajudar os posseiros a se organizarem.
Saldanha levava aos camponeses desde a assessoria jurídica necessária até
táticas de luta armada de guerrilha para enfrentar os jagunços e policiais que
protegiam a cobiça de fazendeiros.
Passados mais de vinte anos em
terras argentinas, o velho João Inácio Fagundes, ao que todos chamavam de “Facundo”, decide casar com uma colega
de fábrica no bairro portenho de Barracas, e em 1951 nasce o primeiro filho, no
Hospital Fernández de Palermo.
É claro que o primogênito de João
Fagundes só podia se chamar Facundo; e não só levou a denominação no primeiro
nome de batismo, mas também no sobrenome, que por obra e graça da ignorância do
escrivão do Registro Civil da Calle Aráoz,
a poucos metros do hospital, deixou de ser português e passou a ser totalmente criollo e castelhano.
Facundo Ramón Facundo, – filho do
velho lutador Fagundes, nascido e criado no Paraná– era um
argentino completo, cheio de gírias portenhas nas falas, abusando do lunfardo local, e misturando-se na
escola e nas peladas de futebol com a melange
fina de napolitanos, filhos de galegos, netos de bascos e alguns poucos “cabecitas negras” recém-chegados do
interior junto com o aluvião peronista
começado seis anos antes, e na cola do enorme crescimento da classe operária.
”
*Esta versão em português não é uma tradução do texto em espanhol.
Continuará por capítulos, como sempre...
Javier Villanueva, Florianópolis, janeiro de 2017.
Nenhum comentário:
Postar um comentário