O Ferreira Gullar vem passando das velhas posturas do "partidão", o PCB, a posições em geral cada vez mais reacionárias em política. Mas num ponto, talvez porque a vida lhe deu um desses presentes inesperados, com dois filhos dependentes químicos e com sérios transtornos mentais, o velho poeta mantem um discurso coerente e, como ele mesmo diz, sensato.
Mesmo que muitos me achem mal-humorado, ranzinza e ultra radical, não julgo ninguém a partir das suas posturas ideológicas em geral, ou políticas em particular. Aliás, nem julgo, apenas gosto, detesto ou ignoro.
Mas uma mulher e um homem não podem falar, por exemplo, sobre repressão e ditadura sem nunca ter sentido em carne própria a falta absoluta de liberdade. Pode-se ler em livros e assistir a palestras, mas a sensação no corpo, no cérebro, não é a mesma.
Pode-se opinar sobre drogas, a favor ou contra o uso, mas não é possível avaliar os danos profundos quando não se vê ao lado, ou na própria carne, as lesões, as feridas e a dor profunda que vive o dependente químico, escravo em qualquer classe social, mas sobretudo das capas mais sofridas da população, que entrega a sua liberdade e seu futuro nas mãos do traficante, soldadinho do último escalão de um sistema perverso, capitalista selvagem, que mata ou rouba por dinheiro, venha ele do tráfico de armas, mulheres, órgãos humanos, animais em extinção ou alucinógenos.
O artigo do Gullar observa, embora ela não o diga dessa vez, desde o ponto de vista das famílias. Ele não fala de outra experiência pessoal que não seja a de ser pai de dois escravos da dependência química.
Ser contra a guerra às drogas, ao estilo Reagan, não me leva a ser a favor da liberação geral.
Ser a favor de descriminalizar o usuário não me obriga a apoiar o capitalista predador George Soros, o ultra-liberal FHC, ou os consórcios Ambev, Souza Cruz-Philips Morris, a Monsanto ou os grandes bancos internacionais que sonham com pegar das mãos dos traficantes de chinelo e Uzi o negocião das drogas ilegais.
Educação preventiva e saúde pública para atendimento aos escravos dessa praga chamada uso-abuso e dependência. Esse é o tema, o eixo da polêmica e não guerra x liberação total.
JV
Maconha legal
Por Ferreira Gullar
Folha de SPaulo, 20 de setembro de 2015
A legalização do consumo da maconha tornou-se, sem qualquer dúvida, uma questão importante em vários países, inclusive no Brasil. Em alguns outros países essa legalização ou descriminalização já se deu, como no Uruguai e em Portugal, respectivamente. Aqui no Brasil, o Supremo Tribunal Federal debate descriminalizar o consumo da maconha.
No meu ponto de vista, não é que essa descriminalização esteja errada, já que não me parece justo prender e muitos menos condenar quem consome drogas, seja maconha ou qualquer outra. No meu entender, a providência correta é a ajuda terapêutica para livrar o viciado do vício e uma campanha de esclarecimento pelos meios de comunicação e nas escolas.
Há quem afirme que a maconha não provoca nenhum mal e, portanto, não é necessário tratar o usuário dela. Minha experiência pessoal, nesse terreno, é o contrário: a maconha é um alucinógeno e, portanto, conforme seja o indivíduo que a fume, as consequências tanto podem ser insignificantes como desastrosas.
Conheço os dois tipos de consequências: gente que, fumando-a, sente-se relaxada, como outros, que perdem o controle e fazem qualquer coisa, como tentar estrangular a irmã ou jogar-se da janela do apartamento. Como tenho o mau hábito da sensatez, acho que o melhor mesmo é não arriscar.
Digo isso porque, quando era garoto, levaram-me a experimentar a maconha. Dei uma tragada, achei-a desagradável e não aderi. Meu colega Esmagado, também não aderiu, mas o Maninho, que compunha a nossa trinca, achou um barato.
Depois de tantos anos, eu estou aqui, modéstia à parte, saudável e trabalhando. Esmagado tornou-se craque de futebol, enquanto Maninho passou da maconha para a cocaína (o que costuma ocorrer), sumiu de casa e morreu, antes dos 40, depois de várias internações para livrar-se da droga.
Quem defende a legalização da maconha alega que, como os muitos anos de repressão ao tráfico não acabaram com ele, a solução não é essa. Isso me parece mais um sofisma do que um argumento porque, se o aceitarmos, teríamos que desistir de combater a corrupção, uma vez que, após séculos de combate, ela continua.
Por outro lado, nada indica que a legalização da maconha (ou das drogas em geral) acabará com o tráfico. Um exemplo: a venda de cigarros é legal mas o tráfico de cigarros continua apesar disso. O mesmo pode-se dizer do tráfico de pedras preciosas, cuja venda clandestina se mantém apesar da repressão. Por que, então, o tráfico de drogas, que movimenta milhões de reais, iria acabar? Não vejo razão para acreditar nisso.
Mas tudo bem, a maconha vai ser legalizada, de modo que, a partir daí, o consumidor da erva poderá portar, sem problema, a porção de maconha necessária a seu consumo. Mas não uma quantidade que indique ter ele a intenção de vendê-la. Ou seja, consumo pode, venda não pode.
Aí tenho certa dificuldade de entender: se a lei admite o uso da droga, por que então proíbe sua venda? Como justificar-lhe a proibição se a mesma lei considera seu consumo legal? Parece-me contraditório ou sou eu que estou pensando errado?
Vejamos: se o Estado admite o uso da maconha, ele está inevitavelmente assegurando que ela não provoca mal algum ao usuário, mesmo porque seria um absurdo permitir o livre consumo, pela população, de algo que lhe prejudique a saúde física ou mental. Logo, para todos os efeitos, se o uso da maconha é legalmente permitido será porque nenhum mal ela causa. Mas, se é assim, proibir-lhe a venda não tem explicação.
Ou tem? Uma explicação possível seria que os próprios legisladores não estejam certos de que o amplo consumo da maconha nenhum mal provoque à sociedade e especialmente ao pessoal mais jovem.
Já imaginou se dezenas de milhões de jovens passarem a se drogar e, em vez de cuidar do futuro,de estudar e buscar uma profissão –entreguem-se ao barato da maconha que tem, como principal característica, deixar o cara desligadão dos problemas da vida?
Não resta dúvida de que dói menos viver nas nuvens do que encarar a realidade. Sim, dói menos até o cara cair na real.
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