quinta-feira, 13 de março de 2014

O homem sensato


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Un padre que da consejos, más que un padre es un amigo. (Martín Fierro en quíchua)

O homem sensato

Não foi fácil colocar as mãos dentro das luvas cirúrgicas; o talco me atrapalhava, assim como o frio do mês de julho em Córdoba, que os meus muitos anos de vida nos trópicos já tinham me feito esquecer. Coloquei o avental e entrei na sala de terapia intensiva.

Então eu vi você. A boca entreaberta, quase dormindo, o peito pálido, nu, os olhos fechados. Mas você acordou e olhou para mim com ternura quando cheguei ao lado da cama do hospital. "Meu amor", você disse, e eu imaginei que você me via como quando era criança, porque você quis me beijar, mas a grade metálica alta e gelada não me deixava chegar tão perto. 

Passei a mão sobre a tua cabeça, e agora a criança era você, e eu um homem que envelhecia rapidamente, vendo-me mais e mais parecido com a tua própria figura. Os mesmos olhos, as sobrancelhas, iguais, e também o gosto pela política, e pelas notícias. Mas você sempre mais calmo, mais reflexivo e menos impulsivo, incapaz de guardar rancores.

Você sorriu docemente e eu perguntei como você estava, e você me disse "bem, bem", e levantou os ombros, como acrescentando: "O que vai se fazer?". Mas logo você se reanimou e me olhou novamente; e então me perguntou o que você estava fazendo aí, nessa cama.

Eu disse que você tinha tido um ataque cardíaco e que estava melhorando. Eu menti sem querer. Mas você mesmo mudou de assunto e comentou como era boa
a comida nesse hotel. E depois soube também que você já tinha perguntado antes pra Raquel se ela achava que seria melhor continuar a viagem ou ficar nesse hotel tão confortável. Você perguntou pela mãe, e me disse como você tinha sido feliz quando éramos crianças e brincávamos nas Chacras. Você só se preocupou um pouco quando me comentou que fazia quatro dias que não ia ver a sua mãe, a avó Juana -ainda que já faz mais de 35 anos que ela se foi- e que ela ficaria muito brava se você não voltasse naquela mesma noite.

Eu sei que no dia seguinte você leu o jornal, e disse a Raquel que você sabia que eu já tinha ido embora. Perdão, pai, menti de novo pra você; ou melhor, eu escondi mais uma vez que tinha voltado pra São Paulo; não queria que você ficasse triste.
Voltei mais tarde, como você tinha me pedido, mas foi apenas para levar embora algumas camisas que você já não usa mais, umas fotos dos bisavós e uma jaqueta para o Gabriel. 

As calças de boxeador que o Luciano tinha deixado pra você, eu dei a ele de volta para ele treinar; e vamos treinar todos para acompanhar você quando te vejamos novamente, como prometeu o Luciano, e nos divirtamos trocando luvas com o tio Pibe e Víctor Galindez, ou com Nicolino Locche e Monzón.

Desculpe meu velho, por ter pensado que você era imortal, e que era imune às vulgaridades da morte. Mas agora, uma semana depois, e depois de ter ido para passar a limpo cada uma das suas memórias, depois de ter contrastado a minha visão de filho, pior, de primogênito, com os outros seres queridos, irmãos, amigos, colegas, primos e sogros, eu sei que você é um simples e comum homem lúcido. E se em algum momento de sua vida, como disse o antigo texto caldeu, você fosse atingido pela infelicidade e seus pesares: a nostalgia, a dor, ou qualquer outro emissário da morte, você saberia suportar tudo isso com coragem, bravamente, humildemente, e morreria como você fez no final, de causas naturais, ao lado dos seus amigos, seus filhos e netos que vão conhecer e compreender você, lembrando sempre com ternura a tua grande aventura de vida.


JV. Córdoba, agosto de 2013 e São Paulo, março de 2014.

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