O Sol azul e outros devaneios
Dizem os filósofos que "eu" é cada um de nós e as nossas circunstâncias. E os poetas acrescentam: "eu e a minha imaginação e desejos". Dirão os revolucionários: "eu e a Utopia".
Um escrivinhador, como eu, talvez diga: "eu e as minhas circunstâncias, desejos, sonhos noturnos e diurnos e a Utopia revolucionária".
Pensava em tudo isso uma noite, mas o sono me pegou e dormi com a ideia dando voltas no meu subconsciente.
Acordei tarde na manhã seguinte, e assim que abri os olhos levei o primeiro susto: um Sol azul, nítido e brilhante, lançava raios poderosos que atravessavam a espessura das árvores em frente da sacada do meu quarto.
Não gostei, mesmo; achei que se tratava de um mal sonho e voltei a dormir. Pouco depois abri um olho aos poucos. Não sei se já contei, mas uma das minhas manias de velho é essa: acordar com um olho só, fazê-lo girar 180 graus, à direita e à esquerda, e fechá-lo. Em seguida repito a tudo com o outro olho.
Ah! Sim, e começo sempre com o esquerdo.
E dessa vez, depois de toda a longa operação que leva pelo menos de três a cinco minutos, tive a agradável surpresa de ver que o sol estava menos azul, de um celeste pálido, digamos, apenas diferenciado do céu chapado e sem nuvens pela circunferência roxa e avermelhada que formava uma auréola ao seu redor.
Inconformado com a nova visão, que ao início me pareceu, é claro, menos assustadora que a primeira, fechei outra vez os olhos -os dois, dessa vez-, convencido de tratar-se, definitivamente, de um pesadelo.
Meia hora depois -calculo, porque quando durmo perco a noção das horas- um barulho forte de água batendo nas beiradas da minha sacada me acordou de vez.
Agora havia um mar, ou rio, ou lagoa, não sei dizer, no mesmo lugar onde mais cedo (e desde sempre) eu tinha quatro metros de altura entre meu jardim e as árvores do muro que limitam a rua.
E as águas batíam com força, mais agora, em que um iate de grande altura quase encosta na minha cama, e um elevador de vidro na lateral da nave deixa ver uma bela dama descendo com uma taça de champanhe numa das suas mãos cobertas de finíssimas luvas.
- Gostaria de subir e me acompanhar?- me convida a diva.
- Sim, bom, eu...é claro- balbucio, e rapidamente coloco uma calça em cima das minhas cuecas de seda -luxo que me permito desde temprana idade- e subo pelo elevador.
Mas, assim que me acomodo plácidamente numa das luxuosas espreguiçadeiras da borda, dois guarda-costas da diva se colocam, um à minha destra e o outro, literalmente sinistro, à minha esquerda.
A diva -que cada vez me lembra mais da Mortícia Addams- vai mudando aos poucos seu jeito sedutor e ficando a cada minuto mais autoritária, até que por fim me diz:
- Rapazinho, agora você é o meu refém; considere-se oficialmente sequestrado.
Bom, já sabia eu que havia coisas estranhas por aí. Finalmente, quando a esmola é grande, até o santo desconfia. Era demasiada sorte minha ser acordado e convidado por uma diva, assim, do nada, enquanto durmo, ou logo depois de acordar, sem sequer escovar os dentes e com meus cabelos ralos parecendo o Pica-pau dos desenhos animados.
- E tem mais: essa moça aí vai por as condições para a sua liberdade e eventual volta para casa. Ok?
Uma jovem mulher, simpática, mas visivelmente convencida da sua beleza exterior, de uns 28, 29 anos no máximo, se aproxima de mim e me lança, insinuante:
- Você só sai daqui se aceitar fazer uma doação para inseminação artificial.
- Ops- digo eu, enquanto espero chegar alguma ideia ao meu cerebrinho amortecido ainda pela rara combinação do sono e o medo. Penso, medito, deixo meu cérebro em branco por dez, quinze segundos, e finalmente reajo:
-Moça, mas não é meio ridículo que você, uma jovem tão nova, venha pedir -exigir, digamos- uma inseminação artificial justo a mim? Eu estou na idade de ser bisavô, fia.- desconverso, enquanto penso numa solução mais drástica.
Olho para o lado oposto ao de minha casa e desvio o olhar dos guarda-costas da diva. Bastou um segundo de descuido dos dois para eu me atirar num mergulho perfeito e, em menos de seis braçadas chegar até minha sacada. Assobiaram as balas das Beretta 45 bem perto das minhas costas, mas entrei no meu quarto e desci as escadas sem um rascunho, mas assustadíssimo.
Nunca mais vou comer feijoada depois da meia noite, pensei.
Tomei um Alka Seltzer, fechei as portas da varanda e voltei para minha cama.
JV. San Antonio de Fray Mamerto Esquiú. Catamarca. Julio de 1981.
Nenhum comentário:
Postar um comentário