terça-feira, 29 de março de 2011

Nas salinas de Chumbicha



Nas salinas de Chumbicha

“Pensar é a única coisa que me sobrou: sonhar ou pensar, pensar em Catamarca e sonhar com o avô Victoriano. Viajo quarenta, cinquenta anos para trás. 
Pensar no futuro? Lembrar-me dele? Será que é o mesmo que fechar o círculo de cachorro mordendo o próprio rabo? Fazer um prólogo para o futuro, ou um epílogo do passado? 
O que importa! Se agora tenho todo o tempo do mundo, e na ausência de fala ou de leitura, bons são os sonhos e as memórias. Tio Luis e Raquel deixam o quarto do hospital, mas os fantasmas do avô e do tio Pibe ficam, falando baixinho, contando histórias para velar os meus sonhos:
  
“As curvas da estrada da capital para Piedra Blanca, mantiveram partes do nevoeiro na noite passada. O Pibe Barrionuevo disse adeus à vovó Rosa e deixou a casa dos Jaime um pouco antes das oito horas. Dirigindo seu jipe vermelho com cuidado, pois podia aparecer de repente alguém a cavalo, um ciclista ou um motoqueiro. Iria se reunir com Daniel Unzaga para ler um artigo que queriam republicar em La Unión, no jornal do domingo. Daniel era muito grave e circunspecto, e divertia o Pibe que sempre lembrava da sua história mais famosa quando, menino ainda, se aproveitava da bondade da dona Eufemia, a mãe, com o conto de ser “doente do coração”. Enquanto todos os seus irmãos tomavam chá mate e comiam pão seco, Daniel passou sua primeira infância tomando o café da manhã com churrasquinho grelhado.
O Pibe ainda estava rindo com as memórias de Daniel quando teve de pregar os freios para evitar colidir com uma charrete que, a cerca de cinco metros, estava parada com o homem que conduzia o cavalo, ambos imóveis, olhando fixo para algum lugar no lado das montanhas. O Pibe era muito calmo, mas já estava assustado e gritou com o homem para que se mexesse, que não podia passar. Mas o homem nem pestanejou mesmo, e tanto o animal como o condutor ficaram tão duros como estavam antes da chegada do Pibe à curva. Passou pelo acostamento se estreitando contra a cerca para ultrapassar a charrete pela direita.
Na próxima curva, a cerca de vinte metros, um caminhão dos Jaime estava atravessado na estrada. Outra vez buzinou e novamente foi surpreendido ao ver que Julio, seu primo, estava quieto, duro no volante. O Pibe desceu para ver o que tinha acontecido, mas aí percebeu que dois outros carros, a menos de uma centena de metros de distância, também estavam parados, estáticos, com seus condutores quietos e silenciosos.
O Pibe chegou até o caminhão do Julio Jaime, escalou o degrau do estribo e ficou surpreso ao ver que seu primo estava ainda olhando para o horizonte, com o queixo ligeiramente levantado para o espelho, mas rígido, mudo e sem respiração. Tocou no pulso do rapaz, pensando na possibilidade de síncope, parada cardíaca, ou um acidente vascular cerebral repentino. Mas não, Julio estava com o corpo morno, normal, sem febre ou quente, nem frio como um morto. Parecia apenas um homem dormindo, só que no meio da estrada e com o caminhão atravessado de ponta a ponta no caminho. O Pibe rapidamente virou-se para a charrete, e o homem estava igual! Correu para o cavalo e o condutor do veículo: ambos estavam rígidos e calados, como Julio Jaime. O cavalo tinha a cabeça ligeiramente virada para trás, mas os olhos estavam duros, o focinho sem respiração e o corpo quente, como se o cavalo e o condutor da charrete tivessem acabado de morrer, mas sem cair, sem perder o prumo, nem o homem as suas cores, e tal como no caso do Julio, como se estivessem simplesmente dormindo, mas com os olhos abertos.
O Pibe começou a se desesperar, nem uma viva alma passava e já era quase 8:20 da manhã. Todos os vizinhos deveriam estar levantados fazia mais de duas horas, trazendo o leite para as casas, começando os trabalhos nas leitarias e nos sítios.
Mas não, não havia nenhum tráfego de automóveis e o ônibus das 08:15 não tinha passado. O Pibe correu uns cem metros até os outros carros que continuavam parados, e em todos a mesma coisa: em um, um casal de moradores de La Falda, os dois loiros e com caras de gringos -el Pibe não os conhecia, deviam ser novos no lugar- estavam como falando um com o outro, mas em silêncio e imóveis, como Julio Jaime e igual que o homem e o cavalo da charrete.

Ele sentiu um calafrio na espinha. Quis saber se o outro carro estava nas mesmas condições, mas de longe viu que dentro havia um rapaz gordo, que também nem se mexia. Correu para o jipe, entrou e deu partida com toda a velocidade que a estrada, obstruída pelos carros parados lhe permitia, e em alguns lugares, teve até que subir na calçada. Dirigiu-se à polícia de trânsito em Tres Puentes, para dar parte do que já era uma constatação da realidade terrível que ele tinha visto ao longo de mais de seis quilômetros de terror: todos os carros, e o ônibus das 8:00 estavam parados, com o motor ligado e os seus condutores e passageiros duros, estáticos e silenciosos. Não havia nenhum sinal de acidente ou de algo incomum, a não ser as mais de vinte pessoas que tinham sido transformadas em estátuas, os cavalos e vacas que pareciam bonecos de cera e centenas de pássaros e borboletas -também viu dois morcegos e três preás no chão-, todos como as pessoas, sem uma gota de sangue derramado.
Quase morreu de susto quando viu, na porta do destacamento o Jorgito Avalos, que era polícia de trânsito e neto do florista que tinha um viveiro ao lado da casa dos Ovejero, estava duro como um manequim, ainda com uma lanterna para dissipar a névoa da manhã , acesa na mão esquerda e com o braço direito levantado, como fazendo um sinal para pedir a algum veículo que parasse ou descesse a velocidade.
Meu tio lembrou que o filho Fabian e a Beba, sua esposa, tinham falado muito sobre a série americana "Twilight Zone" que ela tinha assistido no ano anterior em uma viagem ao Egito, quando foi entrevistar Nasser. O Pibe pensava que as histórias de sua esposa e seu filho acabariam por influenciá-lo um dia, tanto que lhe falavam de H.G.Wells e sua Máquina do Tempo da série Além da Imaginação. Mas isso que ele estava vivendo agora já era demais. Ele deixou o destacamento, subiu no jipe e cobriu os dois quilometros e meio que faltava para chegar à cidade em mais de 20 minutos, tamanho era o congestionamento de carros, caminhões e ônibus estacionados no meio do caminho para Catamarca.
Os motoristas da Cacorba e da Chevalier tinha abandonado dois ônibus de linhas interprovinciais, um atravessado na ponte e o outro no Hospital da Criança. O Pibe saiu do jipe e foi procurar um telefone público. Não funcionou nenhum dos três que ficavam perto da escola de Fray Mamerto Esquiú.
Desesperado, foi esquivando com o jipe todos os corpos que ainda pareciam estar querendo atravessar a rua San Martin. Driblou carros e ônibus largados no meio das ruas e calçadas e dirigiu lentamente em direção à praça. Mas o que eu viu foi a mesma coisa. Não pensou duas vezes e entrou no primeiro posto de gasolina, encheu o tanque, e ainda levou dois tambores de vinte litros cada um, já que não havia ninguém se mexendo por perto para pagar o que havia consumido, ou para impedi-lo, e embarcou em uma corrida louca para o sul de Córdoba em direção a Buenos Aires, ou até que encontrasse alguém com quem falar, que se mexesse, e que pudesse contar em detalhes o que tinha acontecido realmente.
Na penumbra da noite de Catamarca, e com a tristeza invadindo seu espírito, deixou a cidade bem para atrás, cheio de um medo indefinido. Muito cansado, parou algumas horas depois para descansar e esfriar a cabeça, e só teve força para conduzir outra vez quando o sol já estava alto.
Já em pleno caminho das salinas, e ao longo de todo o percurso, não havia encontrado ninguém, a não ser um carro parado, também com três homens dentro, rígidos e silenciosos. Ao chegar a Chumbicha um condor no meio do asfalto, duro, parecia pronto para alçar vôo. Uma mala, por trás do enorme pássaro ainda o obrigou a sair do jipe. Limpou o suor e sacudiu a poeira que se juntara nos ombros e sapatos; já passava das onze e meia e o sol lhe queimava a cabeça. O Pibe calculou que fazia mais de 40 graus.
Debaixo de um arbusto seco e espinhoso, sem sombras sob o sol do meio-dia, um velho olhava para ele. Apesar de seus esforços, não conseguiu arrancar uma palavra sequer, mas de repente, da boca do velho, escapou um som quase vazio.
Se inclinou para ouvir melhor, ele repetiu algo ininteligível e lentamente fechou os olhos para finalmente ficar quieto e calado, como uma das muitas pessoas feito manequins que ele havia visto em Catamarca.

O Pibe agachou-se e perguntou:

 –Você está dormindo? Está se sentindo bem?.
 –Estou dormindo, mas eu estou morrendo respondeu o velho com um sussurro fraco.
O que aconteceu com todas essas pessoas duras e mudas? -perguntou.
 –Não me acorde, deixe-me morrer dormindo! disse o velho.
 –Dói alguma coisa? interrogou.
 –Eu não sinto nada; estou dormindo, e estou bem, mas vou morrer  disse o velho, enquanto sua pele escura, queimada pelo sol e o frio dos invernos impiedosos nas Salinas, foi se tornando mais pálida.
 –O que aconteceu com todos? o Pibe insistiu. 
E você, porque você acha que vai morrer assim, tão de repente?
 –Estou bem –e o sussurro virou uma voz cavernosa, grossa, que estremeceu o Pibe, deixando-o assustadíssimo e com os cabelos em pé.
 –Você está acordado? Ou dorme?  disse, já mais recuperado do terror.
 –Eu estava dormindo, você me acordou, mas agora eu estou...morto e a voz áspera e forte, oca, rouca e retumbante do velho arrepiou os cabelos do pescoço do Pibe.

Antes fraca e inaudível, suas palavras pareciam vir agora do fundo de uma caverna nas profundezas da terra. E o Pibe, homem forte e corajoso, sentiu que o medo causado por essa voz  o imobilizava.
Deixou o velho de cócoras e subiu ao jipe, mas depois se arrependeu e voltou para esticá-lo com cuidado na relva fina e salgada; o corpo do homem se mantinha aquecido, ainda sem a rigidez do corpo morto que já era. 
Um carro passou a mais de cem por hora, e o Pibe logo percebeu que este era o único sinal de vida ativa -além do velho moribundo até minutos atrás, e dele próprio, claro- que tinha notado nas últimas cinco ou seis horas.


Javier Villanueva. Catamarca, 2012.



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