segunda-feira, 13 de agosto de 2012

As pegadas de um escravista brasileiro na África (completo)




Lendo mais uma vez sobre a filmografia do cineasta Herzog –sim, o mesmo de “Fitzcarraldo” que já comentei neste blog em várias ocasiões- me interessou outro personagem histórico biografado por ele. É o Francisco Félix de Sousa, quem aparentemente, segundo contam, nasceu em Salvador, Bahia, um dia 4 de outubro de 1754, e morreu em Ouidah, Benim, em 8 de maio de 1849. Com certeza foi o maior traficante de escravos brasileiro e “Chachá”, algo assim como um vice-rei, da atual cidade de Uidá –na grafia portuguesa- no pequeno país africano de Benim.

Trata-se de uma figura histórica muito controvertida, tanto pela soma do poder e das riquezas que acumulou, quanto pelas origens, sempre duvidosas ou incertas.


Seus muitos descendentes na África gravaram na lápide do seu túmulo a data de nascimento de 4 de outubro de 1754. Já outros, porém, documentam que ele nasceu em 1771, e que era filho de um português traficante de escravos e que a mãe era uma escrava; e que aos 17 anos foi alforriado.

Seus descendentes o retratam hoje como sendo muito branco e até louro. Mas o mais provável é que tenha sido de um tipo mulato ou mestiço indefinido.


Mas voltando ao nosso conhecido Werneg Herzog, digamos que se inspirou na figura do escravocrata para criar o personagem do filme “Cobra Verde” de 1987.

Às vezes os escritores de romances e os cineastas exageram na dose ao misturar ficção com realidade histórica. E também é verdade que é assim mesmo que se criam ou recriam as figuras míticas, aquelas que não possuem um atestado de “verdade histórica” que as sustente. 
E eu, pessoalmente –e também modestamente- gosto dessas misturas e assim escrevo às vezes meus contos. E sei que é difícil dosar a “verdade histórica” e mesclar com prudência a ficção literária. Mas que os romancistas e diretores de cinema exageram às vezes, isso é um fato. 

Assim ocorreu com a figura do Francisco Félix de Sousa, o autêntico vice-rei de Ouidah (ou Uidá), e quem passou de todas as medidas nessa dosagem da fantasia com o realismo foi Bruce Chatwin no seu livro “O vice-rei de Ouidah”, de 1980. Trata-se de um romance que impregna o fascínio pelo poder mítico do negreiro brasileiro que virou um dos homens mais ricos do seu tempo, lá pelos anos 30 do século XIX. O vice-rei de Ouidah era um verdadeiro exagero de ambivalências e de contradições entre as duas culturas em que se movia, entre os dois continentes –as do Brasil americano e do Benim africano e escravista-. E isso foi exatamente o que também atraiu ao cineasta Herzog do filme “Cobra verde”. 

Mas, insisto, o romancista Chatwin pegou pesado: conta ele que Francisco Félix de Souza morreu louco em 1857, que foi enterrado numa barrica de rum e fecharam suas narinas com “torunas de capoc”, uma espécie de tampão de seiva. 


Félix de Souza era, sim, de um caráter de fera selvagem, mas nem por isso menos compassivo se fosse necessário; alardeava de possuir gostos refinados e era capaz de desembarcar um piano de cauda em meio de uma terrível borrasca marítima em Ouidah, mas também podia mostrar um olímpico desprezo pela indumentária, numa cidade colonial abrasada pelo calor e a malária. Não faz lembrar um pouco do "Fitzcarraldo" de Herzog?


A verdade é que Félix de Souza não era nem de longe o loiro biruta encarnado em “Cobra Verde” pelo ator preferido de Herzog, o seu “melhor inimigo” Klaus Kinski. Mas é documentado e certo que chegou a África em 1788 e que morreu em 11849, aos 94 anos, deixando centenas de herdeiros: 80 filhos e 53 filhas, duzentos e dez netos e bisnetos e 12 mil escravos. Apenas 63 entre seus filhos foram reconhecidos, mas criaram uma estirpe que chegou a ter, incluso, anuências eclesiásticas para permitir casamentos entre primos e até irmãos, tios e sobrinhas, de tal modo de santificar uma saga de milhares de descendentes –no Brasil e na África- imbricada nas loucuras da poligamia e da consanguinidade.

2ª Parte:

Mas eu disse que o romancista Chatwin tinha forçado um tanto em seu livro "O Vice-rei de Ouidah", e aqui vai um exemplo:..."nos tempos antigos, os norte-americanos jogavam os escravos no rio, e as ciprecas se grudavam ao corpo para alimentar-se, então eles o recolhiam e assim pegavam mais e mais dinheiro para a compra de novos escravos". Aqui vale mencionar que as "ciprecas" eram apenas conchas chamadas de "cauri" no Benim, e que eram a moeda corrente na África Ocidental, se bem que eram trazidas das longínquas ilhas do Oceano Índico. Só por ai já vemos como era de exagerar o Chatwin nas suas misturas de ficção com realidade.

Uma outra Souza importante, a primeira dama de Benim, é uma das milhares de descendente do lendário Francisco Félix de Sousa. Chantal de Souza, também é deputada pelo partido Forces Cauries, que toma seu nome da famosa concha cipreca ou "cauri".

Chatwin, o romancista fantasioso, como tantos cidadãos do chamado "primeiro mundo", mesmo bem intencionado não consegue fugir dos preconceitos quando trata dos países da África, Ásia ou América Latina. E teve suas dificuldades ao visitar Benim para fazer o trabalho de campo e documentação para seu livro. Foi preso porque soldados oficialistas o confundiram com um mercenário dos muitos que tentavam dar um golpe militar no país. Era 1977, época das mais difíceis pelo mundo afora, e Chatwin, assim que foi solto correu para o Brasil, onde achou uma ditadura menos selvagem e lhe resultou mais fácil completar seu trabalho. Imaginou a vida brasileira do escravista, não já no seu natal Salvador, mas no meio do agreste, onde uma seca mais que fantasiosa matava o gado e provocava incêndios que faziam correr as cobras e até as formigas.

Igual que Chatwin em seu romance cheio de exageros, Werner Herzog também se deixa seduzir por um novo personagem, o "Cobra Verde", que bem podia ter saído das fitas de "Fitzcarraldo", ou do Macondo de Gabriel García Márquez.
O bandido "Cobra Verde", vestido em roupas feitas de retalhos de seda esverdeada e cheio de anéis de ouro, leva o pícaro Francisco F. de Souza, ainda criança, do sertão para a África, e é lá que o aventureiro vira o segundo homem mais rico do mundo, nadando no ouro que o comércio infame dos escravos lhe oferece.

Exagerado, violento, megalômano, como tantos outros personagens da "conquista" da América e da África, Francisco Félix de Souza mistura seu realismo histórico com as loucuras assassinas que tão bem conhecemos no Brasil com os nomes de Borba Gato, Anhanguera -Bartolomeu Bueno da Silva, o "Diabo Velho" ou o "Espírito Maligno". Ou o Fernão Dias, outros tantos bandeirantes e genocidas; ou que na Argentina respondem pelo nome de Julio A. Roca e seus oficiais "bandeirantes" da Patagônia, valentes expropriadores de terras e de crianças indígenas.

FIM 
Javier Villanueva, São Paulo, 13 de agosto de 2012.

Bibliografia: 
Chatwin, B.: El Virrey de Ouidah, Barcelona, El Aleph, 2001.
Thomas H.: La Trata de Esclavos. Barcelona, Planeta, 1997.
Filmografia:
Herzog, W.:  Cobra Verde, Alemanha, 1987.

Nenhum comentário:

Postar um comentário