sábado, 28 de janeiro de 2017

Julio Cortázar. Graffites em tempos de opressão.

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De Julio Cortázar
Graffiti
A Antonio Tàpies


Tantas coisas que começam e talvez terminam como um jogo, suponho que te fazia graça encontrar o desenho ao lado do teu, atribuíste-o a uma casualidade ou a um capricho e só na segunda vez te deste conta de que era intencional e então olhaste-o com atenção, inclusive voltaste mais tarde para olhá-lo de novo, tomando as precauções de sempre: a rua em seu momento mais solitário, nenhuma viatura nas esquinas próximas, se aproximar com indiferença e nunca olhar o grafite de frente mas do outro lado da calçada ou em diagonal, fingindo interesse pela vitrine ao lado, indo-te logo em seguida.


Teu próprio jogo havia começado por tédio, não era realmente um protesto contra o estado de coisas na cidade, o toque de recolher, a proibição ameaçadora de colar cartazes ou escrever nas muros. Simplesmente te divertia fazer desenhos com giz de cores (não gostavas do termo grafite, muito de crítico de arte) e de quando em quando voltar para vê-los e até com um pouco de sorte assistir à chegada do caminhão municipal e aos insultos inúteis dos empregados enquanto apagavam os desenhos. Pouco importava que não fossem desenhos políticos, a proibição abrangia qualquer coisa, e se algum menino tivesse se atrevido a desenhar uma casa ou um cachorro, eles o teriam igualmente apagado entre palavrões e ameaças. Na cidade já não se sabia muito de que lado estava verdadeiramente o medo; talvez por isso te divertia dominar o teu e de tempos em tempos eleger o lugar e a hora propícios para fazer um desenho.

Nunca havias corrido perigo porque sabias escolher bem, e no tempo transcorrido até a chegada dos caminhões de limpeza se abria para ti algo como um espaço mais limpo onde quase cabia a esperança. Olhando de longe teu desenho podias ver a gente que dava uma olhada ao passar, sem dúvida ninguém se detia mas ninguém deixava de olhar o desenho, às vezes uma rápida composição abstrata em duas cores, um pefil de pássaro ou duas figuras enlaçadas. Uma só vez escreveste uma frase, com giz preto: A mim também me dói. Não durou duas horas, e desta vez a polícia em pessoa a fez desaparecer. Depois somente continuaste fazendo desenhos.

Quando o outro apareceu ao lado do teu quase tiveste medo, de chofre o perigo voltava em dobro, alguém se animava como tu a divertir-se à beira do cárcere ou algo pior, e esse alguém além de tudo era uma mulher. Tu mesmo não podias prová-lo, havia algo de diferente e melhor que as provas mais convincentes: um traço, uma predileção por tons quentes, uma aura. E como andavas sozinho imaginavas uma mulher por compensação; tu a admiravas, tiveste medo por ela, esperaste que fosse a única vez, quase te denunciaste quando ela voltou a desenhar ao lado de outro desenho teu, uma vontade de rir, de ficar ali parado como se os policias fossem cegos ou idiotas.

Começou um tempo diferente, mais sigiloso, mais belo e ao mesmo tempo ameaçante. Descuidando do teu trabalho saías a toda hora com a esperança de surpreendê-la, escolheste para teus desenhos essas ruas que podias percorrer rapidamente num único itinerário; voltaste à aurora, ao anoitecer, às três da manhã. Foi um tempo de contradição insuportável, a decepção de encontrar um novo desenho dela junto a algum dos teus e a rua vazia, e a de não encontrar nada e sentir a rua ainda mais vazia. Uma noite viste seu primeiro desenho sozinho; havia-o feito com gizes vermelhos e azuis numa porta de garagem, aproveitando a textura das madeiras carcomidas e as cabeças dos pregos. Era mais do que nunca ela, o traço, as cores, mas além disso sentiste que este desenho era como um pedido ou uma interrogação, uma maneira de te chamar. Voltaste à aurora, depois que as patrulhas rarearam no seu surdo escoamento, e no resto da porta desenhaste uma rápida paisagem com velas e quebra-mares; ao olhá-lo bem diria-se um jogo de linhas ao acaso, mas ela sabia olhá-lo. Esta noite escapaste por pouco de uma ronda da polícia, no seu apartamento bebeste gim e mais gim e falaste com ela, disseste tudo o que vinha à boca como outro desenho sonoro, outro porto com velas, imaginaste-a morena e silenciosa, escolheste para ela lábios e seios, quiseste-a um pouco.

Quase em seguida te ocorreu que ela buscaria uma resposta, que voltaria ao desenho dela como voltavas agora aos teus, e mesmo que o perigo era cada vez maior depois dos atentados no mercado atreveste a aproximar-te da garagem, a rondar pela manhã, a tomar intermináveis cervejas no café da esquina. Era absurdo porque certamente ela não pararia ao ver teu desenho, qualquer uma das mulheres que iam e vinham podiam ser ela. Ao amanhecer do segundo dia escolheste um paredão cinza e desenhaste um triângulo branco rodeado de manchas como folhas de carvalho; do mesmo café da esquina podias ver o paredão (já haviam limpado a porta da garagem e uma patrulha voltava e voltava raivosa), ao anoitecer te distanciaste um pouco mas escolhendo diferentes pontos de vista, deslocando-te de um lugar a outro, comprando qualquer coisa nas lojas para não chamar muito a atenção. Já era noite cerrada quando ouviste a sirene e os projetores te varreram os olhos. Havia um confuso amontoamento junto ao paredão, correste contra toda sensatez e só o acaso te ajudaste, um automóvel virando a esquina e freando ao ver a viatura te protegia e viste a luta, um cabelo preto puxado por mãos enluvadas, os pontapés e os alaridos, a visão entrecortada de uma calça azul antes que a jogassem no carro e a levassem.

Muito depois (era horrível tremer assim, era horrível pensar que isso acontecera por culpa do teu desenho no paredão cinza), te misturaste com as outras pessoas e pudeste ver um esboço em azul, os traços desse laranja que era como seu nome ou sua boca, ela toda nesse desenho truncado que os policiais haviam borrado antes de levá-la. Tinha ficado o bastante para compreender que ela havia desejado responder ao teu triângulo com uma outra figura, um círculo ou quem sabe uma espiral, uma forma cheia e formosa, algo como um sim um sempre ou um agora.

Sabias muito bem, te sobraria tempo para imaginar os detalhes do que estaria se passando na prisão central; na cidade tudo isso transpirava pouco a pouco, as pessoas estavam a par do destino dos prisioneiros, e se às vezes voltavam a ver alguns deles, preferiam não os ver como a maioria das pessoas se perdiam nesse silêncio que ninguém se atrevia quebrar. Já sabia e muito, essa noite o gim não te ajudaria mais que morder-te os punhos, a pisotear os gizes de cor antes de te perder na embriaguez e no pranto.

Sim, mas os dias passavam e já não sabias viver de outra maneira. Voltaste a abandonar o teu trabalho para dar voltas nas ruas, olhar furtivamente as paredes e as portas onde ela e tu haviam desenhado. Tudo limpo, tudo claro; nada, nem sequer uma flor desenhada pela inocência de um colegial que rouba um giz na classe e não resiste ao prazer de usá-lo. Tampouco pudeste resistir, e um mês depois te levantaste ao amanhecer e voltaste à rua da garagem. Não havia patrulhas, as paredes estavam perfeitamente limpas; um gato te olhou cauteloso em cima de um portão quando sacaste os gizes e no mesmo lugar, ali onde ela havia deixado seu desenho, encheste a madeira de um grito verde, uma labareda vermelha de reconhecimento e de amor, envolveste teu desenho com uma oval que era também tua boca e a dela e a esperança. Os passos na esquina te lançaram a uma corrida silenciosa, ao refúgio de uma pilha de caixotes vazios; um bêbado vacilante se aproximou titubeante, quis pisar no gato e caiu aos pés do teu desenho. Partiste lentamente, já seguro, e com o primeiro sol dormiste como não houveste dormido em muito tempo.

Essa mesma manhã olhaste de longe: ainda não o haviam apagado. Voltaste ao meio-dia: quase inconcebivelmente continuava ali. A agitação na periferia (havias escutado os noticiários) afastava as patrulhas urbanas de sua rotina; ao anoitecer voltaste a vê-lo como tanta gente o havia visto ao longo do dia. Esperaste até as três da manhã para regressar, a rua estava vazia e negra. De longe descobriste o outro desenho, somente tu poderia tê-lo distinguido tão pequeno no alto à esquerda do teu. Aproximaste com algo que era sede e horror ao mesmo tempo, viste a oval laranja e as manchas violeta de onde parecia saltar um rosto tumefato, um olho pendente, uma boca consumida por socos. Já sei, já sei, mas que outra coisa poderia te desenhar? Que mensagem teria sentido agora? De qualquer maneira teria que te dizer adeus e te pedir para continuar. Algo teria que te deixar antes de me voltar a meu refúgio onde não havia espelho algum, somente um espaço onde me esconder até o fim na mais completa obscuridade, recordando tantas coisas e às vezes, assim como havia imaginado tua vida, imaginando que fazias outros desenhos, que saías à noite para fazer outros desenhos.

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