Don Quijote e a cápsula do tempo do Pepito
Pepito abriu a cápsula do tempo que havia selado e enterrado no fundo do jardim, dentro de um baú, em 2018.
Tinham passado 20 anos desde então, e ele já estava com 87, quase 88. Para os padrões da época não poderia ser considerado ainda um ancião, mas sim um respeitável senhor de idade, que andava pra lá e pra cá no bairro com uma elegante bengala e um chapéu, para evitar que o sol queimasse a careca incipiente.
Mas, apesar de uma certa decadência física e talvez um pouco de deterioro intelectual - que ele se negava a deixar transparecer- e que na idade avançada é bastante normal, Pepito se sentia realmente feliz e "realizado", como se dizia muito tempo atrás.
E é que, igual que os piratas que guardam seus tesouros em ilhas longínquas, Pepito tinha em 2038 um baú cheio de joias e moedas de ouro: o grande amor da sua vida e uma filha, a que quase três décadas atrás não esperava ter, depois de quatro meninos que já eram homens na hora de enterrar o baú; e muitos netos, os que já estavam na época e eram quase adultos, e os que viriam mais tarde, alguns deles adotados, como prova do muito amor que sempre tiveram na família, para dar e ainda sobrar bastante.
Porque Pepito tinha uma família enorme, com bisnetos, e com muita história, com lembranças heroicas de vidas passadas, a maioria delas muito comuns e corriqueiras, e outras nem tanto.
No fundo do baú havia ainda o embrulho das memórias e livros, os muitíssimos que já tinha lido e os que ainda leria, e os tantos que escrevera até então ou ajudara a escrever e ainda os muitos que ainda iria escrever.
Estavam lá também seus alunos, que não eram igual a seus filhos, mas se pareciam um pouco; e milhares, que digo, milhões de histórias para contar. Muitas verídicas, outras fantasiosas ou misturadas, algumas abertamente mentirosas.
Mas, voltando ao começo da contagem das moedas do cofre: para que serviria tanto ouro ao Pepito se não tivesse, hoje mesmo, uma mulher e uma filha que são o espelho invertido onde ele vê todos os defeitos da sua natureza de homem e a dos seus filhos e netos?
E também, pensava Pepito enquanto contava e recontava seus tostões: do que valeria ter família, livros e alunos, e todo o amor desse pequeno círculo, se não tivesse amor de paixão e solidariedade pelos outros seres humanos; se não entendesse a tristeza e a humilhação dos oprimidos, da mulher que sofre o machismo, do negro que aguenta o racismo, do gay e o/a transexual que suporta a homofobia?
Do que valeria o tesouro guardado se tivesse que viver escondido, com medo dos que sofrem?
- Quem sabe daqui a vinte anos, em 2038, quase 39- pensava Pepito enquanto enterraba o baú com a cápsula, ainda em 2018-, o mundo não esteja no turbilhão de uma catástrofe, como esteve cem anos atrás, e sim olhando para horizontes mais amplos, menos mesquinhos, mais solidários e humanistas.
JV. Buenos Aires, novembro de 2018
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