Capa do livro que Souttomayor, o companheiro de aventura do Seu Xunqueira publicou e que, como veremos mais abaixo, não se corresponde com a realidade, segundo a opinião do autor do texto, Miguel Urbano Rodrigues.
Seu Xunqueira, o José Velo do texto a seguir, que conheci graças à amizade com a Elizabeth Lorenzotti, é um desses personagens que sempre me apaixonam, porque podem passar da Utopia mais desvairada -que sempre é assim, ou não seria Utopia, porque ela é possível, sempre que encontre loucos capazes de levantá-la como bandeira- à ação revolucionária.
Loucos revolucionários não são dementes nem desvairados, apenas exigem o impossível porque são cruamente realistas. Porque sem sonhos não há vida, nem futuro, nem filhos, nem amor, nem sexo.
Sem sonhos, a vida é uma chatice e quem leva as de ganhar é sempre o mais perverso, o conservador, o que esmaga as Utopias com as botas das ditaduras.
Só os Xunqueiras fogem desse padrão e criam novos protocolos a seguir.
Dito isto, acrescento apenas que, para os que falamos a diário o português brasileiro e o espanhol argentino, é um prazer refinado poder ler e ouvir falar em galego, a língua da nação que ficou presa dos Reis Católicos e se afastou da sua irmã Portugal. A língua do seu Xunqueira, o herói destas páginas. (JV)
https://javiervillanuevaliteratura.blogspot.com/2013/05/el-asalto-al-trasatlantico-santa-maria.html
https://javiervillanuevaliteratura.blogspot.com/2013/05/el-asalto-al-santa-maria-un-navio.html
José Velo Mosquera, revolucionário puro e cavaleiro da utopia
Miguel Urbano Rodrigues (In Memoriam - 1925-2017)
O texto que reproduzimos a seguir foi escrito por Miguel Urbano Rodrigues para ser publicado no número 1 da Revista Kallaikia, da Associaçom de Estudos Galegos (AEG), correspondente a outubro de 2016. Publicado na altura na ediçom impressa da Kallaikia, disponibilizamo-lo agora também em formato html em homenagem ao próprio Miguel Urbano Rodrigues, grande amigo da causa nacional galega recentemente falecido, assim como ao protagonista do texto, o patriota galego José Velo, de cujo nascimento se completou precisamente no ano 2016 o primeiro centenário.
José Velo Mosquera foi um revolucionário de uma pureza e autenticidade raras.
Escrevi num dos meus livros que não conheci alguém que se lhe assemelhasse pela personalidade. Era um Quixote moderno, mas diferente do herói imortalizado por Cervantes.
Em Janeiro de 1961, ao chegar ao «Santa Maria» após uma viagem tormentosa, senti quando trocamos o primeiro abraço uma grande empatia com aquele galego alto, magro, desengonçado, ossudo, que me sorria e irradiava caráter e fraternidade.
No transatlântico, rebatizado como «Santa Liberdade», o comandante nominal era Henrique Galvão, mas apercebi-me logo que os comandantes reais eram dois galegos: Souttomayor e Velo, que usava o nome de guerra de Junqueira de Ambia.
Galego da aldeia de Celanova, amava a palavra, tratava-a com amor. Fazia do gesto uma arma de persuasão. Era um comunicador, e, dotado de uma imaginação prodigiosa, recorrendo a metáforas e a parábolas, impressionava tanto os companheiros da «Santa Maria» que a maioria aderia ao seu discurso, por mais absurdas e inviáveis que fossem as suas análises e sugestões.
Somente com o rodar dos meses me apercebi de que era um mitómano talentoso. Quando um mito o encantava, trabalhava-o com tamanha paixão que objetivos inatingíveis se tornavam parte integrante do seu ego.
Sobre a grande aventura e o fim do chamado Diretório Revolucionário Ibérico de Libertação-DRIL escrevi muitas dezenas de páginas. De Henrique Galvão e Soutomayor somente guardo péssimas recordações. Ambos, de revolucionários somente tinham a máscara. O livro de Soutomayor «Eu roubei o Santa Maria» é, aliás, uma impressionante coleção de mentiras de um aventureiro megalómano.
Agora , quando a juventude estudantil da Galiza presta homenagem a José Velo, penso com emoção e saudade no amigo, no patriota galego, no cavaleiro do sonho para quem o sentido da vida era inseparável do combate pela revolução social.
Após a entrega a Salazar do «Santa Maria», quando o governo de Jânio Quadros concedeu asilo político aos participantes no assalto ao barco, Junqueira - assim lhe chamei sempre - ficou instalado em minha casa.
Escreveu então artigos sobre a fracassada aventura e deu entrevistas a influentes órgãos da comunicação social. Nos contactos mantidos com intelectuais progressistas de São Paulo e dirigentes estudantis anti salazaristas , favoráveis à independência das colonias portuguesas, Junqueira rapidamente adquiriu popularidade e prestigio.
Intelectual culto, fora professar de Filosofia e Matemática em Caracas, onde residira anos como exilado. Era no grupo do «Santa Maria» o único que estudara clássicos do marxismo, embora Soutomayor tivesse militado no PCE.
Tinha lido milhares de livros. Mas Marx, Kant, Newton, Einstein não bastavam para saciar a sua fome de saber. A sua cultura desarrumada refletia o espirito de um cavaleiro andante fora do tempo.
Dizia ser marxista e leninista, mas não podia sê-lo. Paradoxalmente, desenvolvera uma conceção idealista da História, incompatível com o materialismo dialético.
Como nacionalista galego tinha uma admiração enorme por Castelao.
Na época, eu ainda não estava curado do esquerdismo, definido por Lenine de doença infantil do comunismo.
Os companheiros do «Santa Maria» estavam instalados numa quinta alugada, próxima de São Paulo, teoricamente disponíveis para empreenderem novas tarefas ao serviço do DRIL.
Concebi então um projeto louco. Iria à Guiné Conakry estabelecer contato com Amílcar Cabral, do PAIGCV, e os dirigentes do Movimento Popular de Libertação de Angola para oferecer a colaboração do DRIL na luta pela libertação da Guiné Bissau e de Angola.
Dediquei ao tema alguns capítulos de um livro. Fui muito bem acolhido e escutaram com atenção a minha proposta. O presidente SekouTouré, que me recebeu cordialmente, prometeu facilidades para a instalação no país dos combatentes do DRIL.
Mas o tresloucado projeto não tinha pernas para andar. De São Paulo recebi a notícia de que o grupo do «Santa Maria» tinha abandonado a quinta no Carnaval e se dispersara. O DRIL não existia mais.
Ao regressar ao Brasil, encontrei Junqueira amargurado.
Em Conakry eu tomara conhecimento pelo «Avante!» de que o PCP alterara a sua estratégia, criticando o desvio de direita, e defendia um «levantamento nacional e uma insurreição popular armada», ou seja uma linha revolucionaria que Álvaro Cunhal sistematizaria mais tarde no «Rumo à Vitória».
Essa inflexão estratégica entusiasmou-me e, ao regressar a São Paulo, informei o responsável do Partido de que podiam contar comigo. Não aderi logo ao PCP, mas já me sentia comunista.
Junqueira compreendeu a minha opção. Não ouvi dele uma censura ao adquirir a certeza de que eu não o acompanharia mais em aventuras utópicas. Mas, apesar disso, continuou a expor-me com frequência projetos fantásticos, miríficos, que concebia como concretizáveis.
Foi um amigo maravilhoso, e o afeto granítico que nos unia era mais forte do que o abismo ideológico que nos separava.
O PATRIOTA GALEGO
O conceito de pátria era nele revitalizado por uma aversão profunda por Castela e os castelhanos.
Recordo que, ao chegar a São Paulo, me confidenciou que ao ver nas ruas e nos jornais tudo escrito na «sua língua» se comoveu. Sentiu-se numa gigantesca Galiza.
Lamentava que a Galiza, em vez de se ter ligado a Portugal, caminhando fundidos pela História, tivesse sido conquistada, anexada e humilhada por Castela.
Não perdera a esperança de uma aproximação cada vez mais profunda, intima, dos dois povos irmãos, ramos de um tronco comum.
Permaneceu em minha casa até Xovita, a sua companheira, chegar ao Brasil, vinda da Venezuela. Vitor, o filho de ambos, participara, com apenas 15 anos, no assalto ao «Santa Maria».
Xovita era uma mulher galega que tinha os pés bem firmes na terra. Com o seu sentido prático convenceu-o a abrir uma pequena livraria. Eu visitava-o com frequência, discutíamos os grandes problemas da humanidade, e recordo que Junqueira, com os cotovelos apoiados no balcão, se inflamava quando principiava em voz baixa a dar-me notícias da Galiza, que o alegravam. Concluía que o espirito revolucionário do seu povo, segundo ele, se mantinha vivo. A imaginação e a fantasia suavizavam-lhe a tristeza de um exílio cujo fim não iria viver.
Não esqueço que vendeu dezenas de exemplares de um livro meu que foi proibido e apreendido em 1968 pelo governo do Brasil, então submetido a uma ditadura militar fascista.
Morreu aos 55 anos, apos uma doença prolongada que o fez sofrer muito e lhe destroçou o corpo frágil.
Não esqueci que na última vez que falamos, ao visitá-lo no hospital, se animou ao falar de um grande projeto revolucionário que tinha concebido...
Foi sepultado com a bandeira galega, como tinha exigido.
Escrevia um livro quando a morte chegou. O Vitor entregou-me o manuscrito. Transcorridos tantos anos ainda me dói o que aconteceu. Era uma reflexão sobre temas políticos e culturais. Não foi possível publicar no momento o seu trabalho porque estava redigido em galego, o que exigia adaptação ao português.
Guardei o manuscrito. Um dia verifiquei que, tal como livros e documentos meus, tinha desaparecido. Estávamos no auge do terror policial e eu era muito visado pelas polícias políticas da ditadura militar.
Hoje recordo-repito- com saudade e carinho o amigo querido, cavaleiro da utopia, mas um dos revolucionários mais puros que conheci.
Serpa, 23 de Fevereiro de 2016
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