domingo, 29 de março de 2020

A Peste. 2024. Parte 2.


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A Peste. 2024. Parte 2.
As ruas estavam semi desertas às 18 horas e Jorginho se estremeceu de frio e de uma crescente angustia: que teria acontecido com Roberta nesses quatro anos?

Como na velha história do telegrafista, violinista e poeta Gabriel Elígio Garciá, pai de Gabo G. Márquez, - que se apaixonou por Luiza Márquez, e enfrentou a oposição do pai da moça, que tentou impedir o casamento enviando a filha numa longa viagem, para enfrentar o qual, Gabriel montou, com a ajuda de amigos telegrafistas, uma rede de comunicação que alcançava Luiza onde ela estivesse- Jorginho sonhava com voltar a ver e conquistar de vez o seu amor, vencendo todas as dificuldades.

Já tinha lido um par de vezes "O amor nos tempos do cólera", e se identificava totalmente com a paixão do também telegrafista, violinista e poeta Florentino Ariza por Fermina Daza, ambos inspirados na historia dos pais do autor.

E não tinha parado de pensar em Roberta mas que em umas poucas circunstâncias ao longo desses longos quatro anos. Tinham se conhecido outros tantos, talvez mais, cinco anos antes. Ela o amou, ele tinha certeza disso, ou pelo menos lhe deu a melhor e mais intensa carga de ternura, carinho e sexo que ele tivesse tido nos sus 55 anos de vida.

Ele achou, pensava às vezes, mas talvez tivesse se enganado, que ela o havia amado. E se não? e se não tivesse passado tudo de uma simples ilusão? se apenas tivesse sido para ela uma mera aventura rápida, de um par de meses de cartas e mensagens trocados e tão só três dias de amor, passeios e noites apaixonadas? Por que ela o havia abandonado de repente? por que motivo havia pedido, tão clara e irrefutavelmente, "por favor, não escreva mais"?
Primeiro, talvez por orgulho, ou por simplesmente não querer ver a realidade, tinha pensado que o "não escreva" se referia aos seus longos e insossos contos e relatos; talvez "não escreva" significasse apenas "não escreva mais essa pretensa literatura boba". Claro, ela não podia rejeitá-lo assim: ela, que tinha insistido um par de vezes que o seu pior medo era justamente a rejeição; por que ela o rejeitaria assim, sem outra frase ou explicação a não ser aquela "não escreva mais"?



Em fim, não era hora de pensar nesses detalhes bobos e sim de sair atrás dela, saber se tinha sobrevivido em primeiro lugar, e se estava bem, corretamente alimentada, sã e de bom humor, depois de quatro anos de encerramento forçado.

Mas também não teve muito tempo de continuar com as divagações: uma moto com dos rapazes o abordaram, cruzando a máquina a poucos centímetros e apontando-lhe com armas longas que carregavam com a ousadia e a soberba de quem já se acostumou a impor aos outros suas vontades, sem limites nem lei.

Somos do Ministério, disse um deles, o mais alto e magro, mas não mostrou nenhuma identificação. Tem a mão seus documentos e os certificados e atestados de saúde? perguntou o outro, mais baixo e claramente mais violento. Sim, respondeu Jorginho, e estendeu os dois papeis: RG e atestado de saúde expedido pelo Ministério dez dias antes. E por que não está usando a máscara? exigiu em tom mais forte o primeiro. Bom, eu ouvi hoje de manhã que não era mais obrigatória, respondeu Jorginho. Ok, pode seguir, disse finalmente o mais baixo, não sem antes apontar a Itaka bem no centro do peito e empurrá-lo, para em seguida jogar o RG e o atestado no chão e sair acelerando a moto.

Sem sair ainda do estupor, mas sem medo, Jorginho recolheu tudo e voltou para casa.
Não seria essa noite que iria arriscar a sua vida atrás de Roberta. E isso ficou ainda mais claro quando passou um grupo de dez ou doze partidários do Pequeno Ditador derrocado. Vestiam camisas verde-amarelas e exigiam a viva voz a intervenção militar contra o Ministério da Saúde, "antro de comunistas do PT", segundo se podia ler nas faixas que carregavam.
Olharam para ele com rancor, e um par de rapazes se aproximou correndo, assim que perceberam que Jorginho vestia uma camiseta vermelha. A polícia do Ministério, por sorte, chegou de imediato, dissolveu violentamente a manifestação, prendendo seis ou sete homens mais velhos e salvando-o, mais uma vez na mesma noite.
Era demasiado. Decidiu voltar rapidamente para seu pequeno apartamento da Rua Major Quedinho.



Continuará.
JV. São Paulo, agosto de 2024.

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