domingo, 29 de março de 2020

A Peste. 2022. Parte 5. A Insurreição Popular em tempos de vírus.

A imagem pode conter: fogo e atividades ao ar livre


A Peste. 2022.
Parte 5.
A Insurreição Popular em tempos de vírus.

Depois que o Ministério virou Da Saúde Pública, com fortes influências da Revolução Francesa na sua fase mais radical, e tirou do poder o Pequeno Ditador, um bloco bonapartista uniu os partidos da direita liberal com o minguado grupinho da centro-direita, que buscava com urgência uma saída à crise da falta de mão de obra nas fábricas, o comércio e a banca.
Ao ponto do próprio capitalismo central -os EUA e a Europa do norte- buscar desesperadamente uma solução neo-keynesiana, ou "keynesiana de guerra", a lo New Deal ou ao estilo Plano Marshall, o que fez que em menos de dez dias todo liberal de ontem virasse distribucionista hoje.
A volta da economia keynesiana de guerra foi a derrota de Trump e uma vitória do Pentágono, farta do discurso guerreirista contra a China e ávido de novas taxas de crescimento.
A pandemia da Corona trouxe um novo cenário: era urgente alimentar o povo trabalhador e facilitar o crédito às empresas falidas depois de meses de quarentena e inatividade.
Passados quatro anos, o resultado era melhor do que poderia ter sido sem ajuda estatal, mas mesmo assim, a anarquia e a desobediência civil tinham se instalado em vastas regiões do planeta.
Pouco antes de começarem as maciças tarefas de distribuição de alimentos para as famílias mais pobres e insumos e crédito para as empresas, já milhares de trabalhadores pobres saqueavam supermercados -abertos ou fechados ao público- e criavam milícias populares para atacar de frente a fome e o desabastecimento.
Jorginho e seus colegas no apartamento morriam de medo de ter a casa invadida, mas nada disso aconteceu nos quatro anos e três meses de quarentena.
Quando por fim Jorge teve coragem de sair outra vez às ruas, depois de cinco dias de decretado o fim da quarentena, as coisas tinham melhorado um pouco. Não deixava de pensar em Roberta, mas agora teria mais cautela.

Porém, o que Jorginho ignorava e Júlio, seu companheiro de apartamento ficou sabendo e lhe contou ao dia seguinte, foi que em vastas áreas da cidade de São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, grupos armados de operários desempregados haviam estabelecido um poder paralelo:
- Durante seis meses, os combates na escuridão total permitiram que os grupos de trabalhadores e estudantes sublevados capturassem das mãos da polícia do Ministério cada vez mais armas pesadas, uns seis carros de patrulha da PM, e até mesmo dois caminhões militares cheios de FAL que os soldados tinham largado quando viram os manifestantes chegando feito um maremoto.
Muitos recrutas se dispersaram, mas muitos mais foram os que se somaram às barricadas e ocuparam três delegacias da polícia da Zona Leste de São Paulo, o plantão central da Polícia Federal na marginal do Rio Pinheiros, e dois destacamentos da aeronáutica no centro e em Santana.
Os oficiais capturados em combates foram desarmados e liberados imediatamente, mas dois agentes de inteligência e um delegado da Polícia Federal permaneceram como prisioneiros na sede do sindicato dos Metroviários.
Quando o Ministro quis contra-atacar ao dia seguinte, já não tinha jeito, teve que negociar a libertação dos reféns em troca de uma trégua de 72 horas, o que foi suficiente para que os sublevados pudessem entrar nos estúdios das rádios CBN e Jovem Pan, e nas redações da Folha de SPaulo e chamassem os repórteres e diplomatas de todos os países representados em São Paulo - tem uma voz cada vez mais emotiva, fala bem alto, faz gestos e pulam as lágrimas dos olhos do Júlio.

- Bem, o fato é que a ONU enviou oito caminhões com alimentos e medicamentos, a Cruz Vermelha conseguiu entrar com uma dúzia de ambulâncias e tratar dos feridos, que eram mais de trezentos, e foi ai que a revolta popular escapou por completo das mãos da ditadura do Ministério- completa Júlio.
Jorginho ainda não entende muito do que ouve, mas pensa que está sonhando, e corre para ver, da janela estreita do quarto, uma barricada alta de madeiras e arame farpado, e as heras, as samambaias do ar e outras plantas trepadeiras que subiram ao topo das varandas, e agora o conjunto parece mais uma colina ou uma montanha luxuriosa, verde e florida, que atravessa a calçada, bem enfrente à boca do metrô Anhangabaú.
Jorginho olha para as barricadas e lembra-se de novo, obsessivamente, do medo que sentiu quando saiu pela primeira vez para uma ação de rua no centro da cidade. Era junho de 2013 e os ecos das bombas lacrimogenas chegavam até ele pelo entusiasmo de uma menina, Roberta, jovem militante de 29 anos, pioneira dos Comandos da Resistência Armada, ainda totalmente clandestinos até para os centros de inteligência do estado. E mesmo que ele quisesse impressioná-la, Jorge não teve coragem suficiente para carregar as bombas molotov, e a deixou esperando por mais de meia hora na esquina da Consolação com a Caio Prado. Nunca mais a viu, até que um dia retomaram o contato por cartas.
Finalmente, Jorginho só sai do sonho das memórias quando volta a ouvir a voz profunda do Júlio, que continua o relato:
- E depois de passar meses sem lutar, com uma ou outra escaramuça dispersa de vez em quando, esquecidos pelo poder central de Brasília, e lembrados vez ou outra ao longo do tempo pelos gestores do saneamento, ou pela Eletropaulo que eventualmente cortavam o abastecimento de água ou de energia elétrica, as organizações revolucionárias foram estruturando melhor os bolsões com os governos de auto-gestão das vizinhanças, armando e treinando diariamente os guardas das auto-defesas e a assistência sanitária, até finalmente chegar a um acordo e criar várias instâncias de um governo popular.
Jorginho ouvia, mas continuava pensando em Roberta.


Continuará.
JV. São Paulo, agosto de 2024.

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