sábado, 30 de julho de 2022

Benxamín, o último maqui galego.

 


Benxamín, o último maqui galego.

Uma história quase verídica

 

Era uma manhã fria de janeiro. Benxamín abriu a portinhola de madeira oculta no chão do galinheiro, e saiu rapidamente do esconderijo. Deslizou cuidadoso entre as plantas secas e geladas e caminhou os vinte metros até a casa.

Mas a surpresa quase o deixou tonto ao ver que, no mesmo local em que se levantara a velha casinha de aldeia de pedra e madeira que abandonara em 1947 quando se juntou à guerrilha dos maquis galegos, existia agora uma grande casa de dois pisos, com barras de ferro e cores vivas, como as que vira nas pinturas de Dalí na França.

Depois de fugir da sua pequena cidade, Benxamín de Jesús passou a maior parte dos anos 1949 e 1950 lutando no 2º Agrupamento do Exército Guerrilheiro Antifranquista da província galega de Ourense. Nascido em 1933, filho do fundador do PCE do povoado, aos doze anos já lidava, como a mãe e o irmão mais velho, com as tarefas de ligação com os guerrilheiros que se agrupavam para atacar o governo de Francisco Franco, após três anos de sangrenta guerra civil, no pequeno município de Sandiás.

Ao voltar para casa, pouco depois de que Carrillo desistisse da luta armada, e dos maquis partirem desapontados com o Partido Comunista rumo aos Pireneus, o menino de sobrenome messiânico cavou um buraco fundo sob o galinheiro da sua casa para guardar armas e mantimentos e se largou ao monte.

A verdade é que Benxamín veio ao mundo em um momento muito ruim: três anos antes do início da Guerra Civil. O pai morreu, e sua mãe e irmão se esconderam depois do fim trágico do conflito e a queda da 2ª República, em 1939.

A família tinha esperado, ao final da 2ª Guerra Mundial, uma invasão dos Aliados contra Franco, mas ao não acontecer nada disso, dedicaram seu tempo ao trabalho e à conspiração clandestina.

Depois que foram desmobilizadas as guerrilhas, Benxamín tinha voltado para casa algumas vezes para se esconder no buraco sob as galinhas de onde só saia à noite para comer. Ele se higienizava um pouco e usava o poço sanitário que chamavam de banheiro. Banhar o corpo todo, por outro lado, nem pensar; um pouco de água rápida no rosto e nas mãos, e novamente a voltar para baixo do galinheiro.


Benxamín de Xesús, a quem nem os céus nem o seu santo nome ajudaram mais do que a sobreviver, era agora o que anos mais tarde se chamaria de "toupeira", pessoas ligadas com a República derrotada, sindicalistas ou políticos, que deviam desaparecer -literalmente- debaixo da terra, ou esconder-se em sótãos, porões ou até em árvores, para não serem presos, torturados e fuzilados pelos franquistas no poder.

Na Espanha era chamado de "toupeira" aquele que, não conseguindo fugir para o exterior, permanecera oculto após a Guerra Civil para escapar da repressão. O nome "toupeira" vem da obra de Manuel Leguineche e Jesús Torbado, publicada em 1977, que conta a história de 24 pessoas que viveram em segredo absoluto, escondidas de todos.

Terminada a ocupação franquista da Espanha, ao longo de três longos e dolorosos anos de guerra civil, muitos dos que haviam apoiado a República e os partidos de esquerda que a defendiam se embrenharam nas montanhas, deixando suas aldeias. Outros se esconderam em suas próprias casas, em estábulos, entre telhados ou cisternas. A maioria deles foi descoberta, mas alguns ficaram escondidos depois que a guerra acabou. E embora não fosse o caso de Benxamín, ele mesmo um guerrilheiro, eram desprezadas pelos maquis por sua passividade perante o regime.

Embora muitos “toupeiras” tenham deixado seus esconderijos em 1969, quando Franco decretou a prescrição de todos os crimes cometidos antes do fim da Guerra Civil, alguns deles permaneceram escondidos por até 38 longos anos.

O caso de Benxamín foi diferente. Enquanto ele alternava sua vida entre as montanhas e seu retorno clandestino ao galinheiro de sua casa, sua mãe havia passado por cem peripécias e conseguiu esticar sua vida até os 97 anos, embora não pudesse cuidar de seu filho mais velho, Bruño, cujo corpo foi encontrado e desenterrado apenas quinze anos depois.

No Natal de 1951, quando Benxamín foi preso e mandado para o cárcere, sua mãe e seu irmão mais velho partiram para Madri disfarçados de lavradores, alheios ao sofrimento do filho mais novo na prisão. Foram acompanhados na estrada por dois outros guerrilheiros, Manuel Rodríguez - homônimo do herói lendário da guerrilha chilena que no século XIX juntou-se a San Martín para derrotar os espanhóis, cruzar a cordilheira dos Andes e seguir o caminho vitorioso para o Peru-, e Juan Luis Sorga.

Mas a Guarda Civil os deteve na cidade de Ávila quando tentavam chegar à França; Rodríguez, preso alguns dias depois, foi condenado à pena de morte por “garrote- vil”; Bruño, irmão mais velho de Benxamín, foi baleado e morto ali mesmo, no local onde foram detidos.

Sua mãe, em vez de fugir, pagou sua militância com treze anos de prisão. Benxamín só soube da morte de seu irmão e da prisão de sua mãe muitos meses depois.

A saga de Benxamín como guerrilheiro maqui foi interrompida em março de 1949 quando, preso junto com vários companheiros em Ourense pela Guarda Civil, já não saiu da prisão de Yeserías, em Madrid até 1961, após passar pelo cárcere em Ourense, A Coruña, Santander e Segovia.

Quando foi solto novamente, de imediato voltou à luta e começou a procurar pela mãe e pelo corpo do seu irmão.

Algumas das ações armadas mais notáveis ​​de Benxamín foram a tentativa, em 1948, de resgatar José Gómez Gayoso, secretário-geral do PCE na Galiza, e Antonio Seoane, chefe do Exército de Guerrilha da Galiza.

Saiu de Ourense e chegou a Ferrol, atravessando a montanha e depois embarcou para A Coruña para entrar imediatamente na prisão atirando com o seu velho Mauser. Fugiu em meio aos tiros, disfarçado com o uniforme que havia tirado de um guarda enquanto tentava sem sucesso libertar seus companheiros de armas e convicções revolucionárias.

 

1961

Voltemos ao momento em que, libertado da prisão, Benxamín regressa para sua casa e, por hábito e porque não tinha mais aonde ir, se esconde debaixo do galinheiro, como tantas vezes fizera antes.

Ele está disposto a continuar a luta, clandestino, e para isso precisa de novos documentos, e de disfarçar-se um pouco, mudando a cor do cabelo, tirando a barba e o bigode e acrescentando óculos que mudem totalmente sua aparência.

 Quando considera que já pode enganar a Guarda Civil, sai em direção da casa a buscar um passaporte em nome de um camarada francês que guardara sob as lajes antes de ir para a montanha. E é então que se assusta ao ver que a casa já não é mais a mesma. Mas a surpresa vai ser maior ao subir ao segundo andar e se encontrar numa cadeira uma velha senhora que ele reconhece como sua mãe.

A velhinha, sua mãe, parecia adormecida; a cumprimentou com um beijo na testa mas, apesar de seus esforços, não conseguiu arrancar uma única palavra dela. Embora de repente, um som quase vazio escapou da boca da anciã.

Benxamín se agachou para ouvir melhor; ela repetiu algo ininteligível e lentamente fechou os olhos até ficar imóvel e sem palavras.

Benxamín agachou-se e perguntou:

-Você está dormindo, mãe? Sente-se bem?

-Estou dormindo, mas estou morrendo-, a velhinha respondeu em um sussurro fraco.

-O que aconteceu com a senhora, e por que a nossa casa mudou tanto?

-Não me acorde, filho, deixe-me morrer dormindo! - respondeu a mãe.

-Algo dói? - perguntou Benxamín com insistência.

—Não sinto nada, estou dormindo; estou bem, mas vou morrer- respondeu a mulher, enquanto a sua tez fosca, queimada pelo sol e o frio dos invernos do norte da Galiza, ia ficando cada vez mais pálida.

-O que aconteceu com o meu irmão Bruño e Manuel Rodríguez, mãe? - insistiu. - E você, por que acha que vai morrer?

-Estou bem...- e o sussurro, de repente, tornou-se cavernoso, espesso, e fez Benxamín estremecer, dando-lhe arrepios.

-Está acordada, mãe? Ou você dorme? - disse ele, mais recuperado do terror.

-Eu estava dormindo e você me acordou, filho, mas agora estou ... morta- e a voz áspera, oca e estrondosa de sua mãe morta arrepiou os cabelos do pescoço do guerrilheiro.

Antes fracas e inaudíveis, as palavras da velha senhora agora pareciam vir das profundezas de uma caverna no fundo da terra.

E Benxamín, um homem forte e corajoso, sentiu que o pavor provocado por aquela voz o dominava. E desceu as escadas correndo, rumo ao seu esconderijo.

Aquela noite ficou no abrigo escavado sob o galinheiro. A Guarda Civil havia passado pela aldeia dois dias antes e não havia chegado aos campos ao redor dela. Benxamín adormeceu profundamente e só acordou um pouco antes do dia nascer, ouvindo um ruído na cavidade do tubo de respiro lateral que apenas sua mãe sabia que existia.

Era o barulho provocado por uma carta que alguém tinha acabado de colocar no tubo. A abriu e comprovou que era antiga, com pelo menos cinco anos, a julgar pela data em que fora postada na América.

 A carta de Ovexeiro, um velho amigo de seu pai radicado em Havana, falava de uma grande angústia que o oprimia e da urgência de vê-lo. Estava claro que dom Ovexeiro pretendia encontrar algum alívio para seus males na companhia de Benxamín.

Mas foi a maneira como lhe escrevia, o modo suplicante de expor os seus sentimentos, o que fez Benxamín pensar muito seriamente em cruzar o oceano para encontrá-lo, algo que a princípio podia parecer loucura naquelas circunstâncias, pela situação do país e a dele próprio. A atmosfera na Galiza já era irrespirável, com muitas pessoas ameaçadas, e mesmo muitos amigos e conhecidos desaparecidos. E foi então, pensando profundamente sobre isso durante o longo dia em que se manteve escondido no buraco do subsolo, que ele decidiu viajar e atender ao chamado do velho amigo do seu pai. Era uma loucura ou poderia ser uma solução possível para seu isolamento na Espanha?

A memória lembra do passado em partes, pensou Benxamín, deixando alguns tipos de rugas de esquecimento entre as dobras, ou fragmentos de um passado mais doloroso. É algo assim como um estômago que deixa o mais difícil de digerir entre suas dobras. E é o que leva alguns a pensar, erroneamente, que talvez seja melhor esquecer o que não pode mais ser resolvido, o que não pode ser assimilado. Pois bem, Benxamín não quer deixar a história de lado, mas precisa aprender a conviver com seus fatos, e talvez até deixar de lado as atrocidades para viver em paz com ela.

Saiu cedo do esconderijo, às duas da madrugada do dia seguinte, rumo às montanhas que o levariam para a França e dali para a América.

Caminhou cerca de seis quilômetros no escuro e começou a escalar os montes. A pouco de ter se internado no bosque e começar a sentir-se mais seguro, viu umas sombras a menos de cinquenta metros de onde estava.

Os três primeiros impactos foram apenas um arranhão no ombro direito e dois no braço, do mesmo lado. Não sentiu muita dor e, como era canhoto, conseguiu puxar a Lugger que tirara de um falangista e disparar dois tiros, mas ainda estava desorientado, sem saber exatamente para onde direcioná-los. Além disso, tinha pouca munição e precisava poupá-la. Com o braço esquerdo armado, se manteve nas sombras, escondido atrás de uma árvore mais espessa.

O quarto tiro foi no peito. Mas não ouviu o disparo porque ficou surdo de repente. Acenderam-se as luzes de um refletor, deixando aquele trecho de mata com um branco leitoso que o envolvia calmamente, numa sensação de paz que não o deixava sentir a dor, nem o frio da madrugada, nem pensar em outra coisa senão na frustrada viagem à fronteira. E em sua mãe. Sim, ele se lembrou da velha moribunda e se perguntou se ela realmente seria sua mãe.

Benxamín se abaixou e ficou atrás do tronco, e foi então que a jornada real começou para ele:

- Não poderei viajar, amigo, agora no meio do tiroteio me dou conta que não posso deixar minha mãe sozinha. Eu estou voltando para o galinheiro, amigo. Não poderei ir a Cuba-, Benxamín já sabia, ou suspeitava, que o tempo é elástico e enrugado; seu pai havia dito que o tempo tem uma quarta dimensão com dobras, e às vezes o passado se junta em uma curva com o futuro e, portanto, ocorrem mudanças que podem ser fatais. Talvez essa que estava vivendo era uma delas. Quem sabe isso explicasse o porquê da casa moderna que agora havia no lugar da sua velha casinha.

E enquanto Benxamín caía ao chão e as luzes se aproximavam, e já podia ouvir as botas dos falangistas quebrando os galhos secos a menos de cem metros de distância, viu sua mãe alimentando as galinhas, e a imaginou preparando uma omelete de ovo e cebola, e oferecendo-lhe pão caseiro, e por fim chegaram as botas e ele sentiu o frio de uma arma contra sua têmpora esquerda, e sentiu as águas subindo e cobrindo todas as casinhas pobres da sua Galiza alagada, e viu os caminhos inundados, e dezenas de peixinhos coloridos à altura dos seus olhos, fugindo assustados pela explosão que espalhou as ideias generosas de Benxamín, e esquartejou suas memórias mais íntimas por toda a floresta fria, alagada, espalhando seus sonhos entre as árvores, e a sua imaginação fértil semeou folhas e cogumelos amarelados, e seus votos de paz e amor transformaram-se em uma bela poeira estelar que cobriram as ervas, enquanto as suas melhores fantasias o levaram até Ximena, a quem nem teve tempo de declarar seu amor adolescente por ela.

Os uniformes e as botas partiram, mas antes, uma voz marcial mandou cavar um buraco e ordenou deixar o corpo ali mesmo, que nada mais do que isso merece esse vermelho de merda.

FIM

JV. Pontevedra, agosto de 1972.


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