As tristes histórias da pulpera, da escocesa e o Tehuelche loiro
Levantou-se devagar e do catre foi direto preparar o
chimarrão. Na curta caminhada da cama até o fogão, Bryan não tirava os olhos do
mar. Um mar quadrado, cinzento e agitado que a Baía de San Julián o autorizava
a observar de sua cabana Tehuelche.
E também não parava de pensar, enquanto olhava para o mar,
nela, sempre ela. Ou seriam elas? Em seus longos noventa e dois anos de vida, ele nunca soubera ao
certo se eram duas ou apenas uma.
Ele se lembrava bem de
Dionísia; e não era só ele, o escocês Bryan Hooks, o único apaixonado pela bela
loira de olhos azuis; uma cor de mar tropical, sim, ou talvez com matizes mais
claros, quem sabe como os seus, celestes. E enquanto preparava o mate, cantarolava uma musiquinha que, pensou, um dia alguém escreveria:
Era rubia y sus ojos
celestes
Reflejaban la gloria
del día
Y cantaba como una
calandria
La pulpera de Santa
Lucía
As memórias de Bryan sobre Dionisia se confundiam com as de
Molly, outra gloriosa dona de lindos olhos azuis. Corria agora o ano de 1874 e o
velho escocês, refugiado na Patagônia, amigo e protegido dos nativos Tehuelches,
recordava sua juventude distante, quando em 1807 participou da aventura das
tropas que desembarcaram em Montevidéu e Buenos Aires e lançaram as
malsucedidas invasões inglesas do Rio da Prata, ainda então, -e por um tempo
muito curto- sob o controle do decadente Império Espanhol.
É que a aliança entre a França de Napoleão e a Espanha
ameaçava os interesses da Inglaterra, que já era uma grande potência mundial.
A invasão do então Vice-Reino do Prata aparecia como
uma opção estratégica para os britânicos, mas também era uma escolha muito arriscada.
Em caso de sucesso, poderia nascer uma importante aliança com os habitantes do
Prata; em caso de fracasso, a liga franco-espanhola se tornaria ainda mais
forte.
Falharam na primeira tentativa, em 1806, mas persistiram e
voltaram um ano depois. Os ingleses, afetados pelo bloqueio imposto por
Napoleão, insistiram no controle do Rio da Prata, sob o comando do Tenente General
John Whitelocke. Junto com a frota de guerra, também enviaram navios mercadores
para negociar com os criollos, os
descendentes americanos dos conquistadores espanhóis.
Bryan vive agora, em 1874 -e quando a grande guerra que o exército
argentino vai lançar contra os povos nativos já está em curso-, nas tolderías ou barracas nativas do cacique Namuncurá. No início do
século XIX, o inglês, sendo um jovem de 25 anos, integrou o 71º Batalhão de
Infantaria Escocês na aventura inglesa da invasão de Buenos Aires, e teve que
enfrentar a corajosa reconquista dos criollos
que fundariam a nação que mais tarde seria Argentina. Bryan é feito prisioneiro
pelos patriotas naquela ocasião e, embora nunca se soube se ele tinha fugido ou
se fora banido para o interior, sabe-se que termina sua longa vida entre os Tehuelches
e Mapuches dos mal chamados “desertos” dos Pampas e da Patagônia.
Enquanto bebe o chimarrão e perde seu olhar azul nas águas
cinzentas da baía de San Julián, recorda aquele longínquo 28 de outubro em que as
tropas invasoras apareceram nas costas de Montevidéu e avançaram em direção a Maldonado,
que rapidamente caiu nas mãos dos ingleses após derrotar um pequeno grupo do
exército espanhol.
Mas o governador de Montevidéu emite naquela ocasião uma
proclama aos habitantes da cidade chamando-os a "morrer em vez de se
render" às tropas inglesas. Os invasores, então, cruzam o largo rio marrom
e cercam a cidade de Buenos Aires. Antes disso, uma junta de guerra processa o vice-rei espanhol
Sobremonte pela sua passividade, e o demite. Santiago de Liniers, que passou ao
Uruguai em direção a Colônia, enfrenta os ingleses, mas é derrotado e deve voltar
para Buenos Aires.
Os ingleses tentam ganhar seguidores e adeptos, mas percebem a feroz hostilidade da população a aceitar a bandeira
inglesa. Então decidem atacar Buenos Aires. Em 28 de junho de 1807, chegam a
Ensenada e conseguem eludir e escapar das tropas de Liniers. Fazem a travessia
pelo Pago Chico e a entrada dos britânicos na cidade é iminente.
O prefeito Martín de Álzaga convoca o povo à Plaza Mayor e recusa-se
a capitular. A resistência do povo nas ruas é amenizada com a chegada de Liniers
e os mil homens sob seu comando. Em 5 de julho, Bryan está entre os ingleses
que tentam entrar na cidade e recebem dos telhados todos os tipos de projéteis
com armas caseiras: pedras, água fervente e cargas de fuzil. O objetivo dos
invasores é chegar à Plaza Mayor e de lá tomar toda a cidade. Chegando em Santo
Domingo recebem o ataque do Exército dos Patrícios e os ingleses não conseguem resistir. Em
7 de julho, Whitelocke aceita a rendição e o jovem Bryan parte, junto com as tropas
derrotadas, para o exílio no interior de Buenos Aires e sul de Córdoba.
Conforme lido nos capítulos seguintes das Sessões da Câmara Municipal de Buenos
Aires:
“Dia 17 de agosto, o
índio Pampa Felipe se apresentou na Sala de Sessões com D. Manuel Martín de la
Calleja; e expôs aquele por um intérprete, que veio em nome de 16 caciques dos
Pampas e Cheguelches para fazer presente que eles estavam prontos para liberar
pessoas, cavalos e qualquer ajuda, dependendo do seu critério para que este
Ilustre Cabildo pudesse usar contra os Colorados, cujo nome eles davam aos
ingleses. Que faziam aquela oferta ingênua como um presente para os cristãos, e
porque eles viram em que problemas sérios eles estariam. Que eles também
franqueariam as pessoas para dirigir até o interior inglês, se necessário, e que
eles gostariam de que sejam usados contra homens tão maus quanto os Colorados.”
Corria o ano de 1807 e, prisioneiro das tropas espanholas e criollas, ainda pensa o jovem Bryan nos
olhos claros de cor de céu de Molly, de quem se dizia que era uma prostituta
encarregada de entreter os marinheiros da fragata Encounter. Mas Bryan, que era um mero tambor de infantaria ingênuo, não acreditava e pensava que a linda
loira de olhos azuis era, como em tantos outros casos, uma mulher rebelde,
aprisionada pelo autoritarismo inglês, que tão bem conheciam os escoceses. E
então ele começou a planejar todo tipo de loucuras mirabolantes para
resgatá-la.
Mas, se as ideias e memórias se confundem agora na cabeça do velho,
é porque entre as décadas de 1820 e 1840, perto da freguesia de Santa Lúcia
conhecera, -em um lugar onde se reuniam os carroceiros, carreadores, copleros, tropeiros de passagem às Minas
Gerais, e outros habitantes dessas áreas a meio caminho entre os pampas
próximos e a cidade- a filha do dono da loja de ramos gerais –a Pulpería-. Era uma jovem chamada
Dionisia Miranda, conhecida como "a
loira do saladero", e à qual um século depois, quando nem os ossos
nem a memória de Bryan permaneceram, passaram a cantar como “la pulpera de Santa Lucía”.
Continuará. JV.
Salsipuedes, Uruguay, janeiro de 2032.
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