sábado, 3 de dezembro de 2022

As tristes histórias da pulpera, da escocesa e o Tehuelche loiro

 




As tristes histórias da pulpera, da escocesa e o Tehuelche loiro


Levantou-se devagar e do catre foi direto preparar o chimarrão. Na curta caminhada da cama até o fogão, Bryan não tirava os olhos do mar. Um mar quadrado, cinzento e agitado que a Baía de San Julián o autorizava a observar de sua cabana Tehuelche.

E também não parava de pensar, enquanto olhava para o mar, nela, sempre ela. Ou seriam elas? Em seus longos noventa e dois anos de vida, ele nunca soubera ao certo se eram duas ou apenas uma.

Ele se lembrava bem de Dionísia; e não era só ele, o escocês Bryan Hooks, o único apaixonado pela bela loira de olhos azuis; uma cor de mar tropical, sim, ou talvez com matizes mais claros, quem sabe como os seus, celestes. E enquanto preparava o mate,  cantarolava uma musiquinha que, pensou, um dia alguém escreveria:

Era rubia y sus ojos celestes

Reflejaban la gloria del día

Y cantaba como una calandria

La pulpera de Santa Lucía

As memórias de Bryan sobre Dionisia se confundiam com as de Molly, outra gloriosa dona de lindos olhos azuis. Corria agora o ano de 1874 e o velho escocês, refugiado na Patagônia, amigo e protegido dos nativos Tehuelches, recordava sua juventude distante, quando em 1807 participou da aventura das tropas que desembarcaram em Montevidéu e Buenos Aires e lançaram as malsucedidas invasões inglesas do Rio da Prata, ainda então, -e por um tempo muito curto- sob o controle do decadente Império Espanhol.

É que a aliança entre a França de Napoleão e a Espanha ameaçava os interesses da Inglaterra, que já era uma grande potência mundial.

A invasão do então Vice-Reino do Prata aparecia como uma opção estratégica para os britânicos, mas também era uma escolha muito arriscada. Em caso de sucesso, poderia nascer uma importante aliança com os habitantes do Prata; em caso de fracasso, a liga franco-espanhola se tornaria ainda mais forte.

Falharam na primeira tentativa, em 1806, mas persistiram e voltaram um ano depois. Os ingleses, afetados pelo bloqueio imposto por Napoleão, insistiram no controle do Rio da Prata, sob o comando do Tenente General John Whitelocke. Junto com a frota de guerra, também enviaram navios mercadores para negociar com os criollos, os descendentes americanos dos conquistadores espanhóis.

Bryan vive agora, em 1874 -e quando a grande guerra que o exército argentino vai lançar contra os povos nativos já está em curso-, nas tolderías ou barracas nativas do cacique Namuncurá. No início do século XIX, o inglês, sendo um jovem de 25 anos, integrou o 71º Batalhão de Infantaria Escocês na aventura inglesa da invasão de Buenos Aires, e teve que enfrentar a corajosa reconquista dos criollos que fundariam a nação que mais tarde seria Argentina. Bryan é feito prisioneiro pelos patriotas naquela ocasião e, embora nunca se soube se ele tinha fugido ou se fora banido para o interior, sabe-se que termina sua longa vida entre os Tehuelches e Mapuches dos mal chamados “desertos” dos Pampas e da Patagônia.

Enquanto bebe o chimarrão e perde seu olhar azul nas águas cinzentas da baía de San Julián, recorda aquele longínquo 28 de outubro em que as tropas invasoras apareceram nas costas de Montevidéu e avançaram em direção a Maldonado, que rapidamente caiu nas mãos dos ingleses após derrotar um pequeno grupo do exército espanhol.

Mas o governador de Montevidéu emite naquela ocasião uma proclama aos habitantes da cidade chamando-os a "morrer em vez de se render" às tropas inglesas. Os invasores, então, cruzam o largo rio marrom e cercam a cidade de Buenos Aires. Antes disso, uma junta de guerra processa o vice-rei espanhol Sobremonte pela sua passividade, e o demite. Santiago de Liniers, que passou ao Uruguai em direção a Colônia, enfrenta os ingleses, mas é derrotado e deve voltar para Buenos Aires.

Os ingleses tentam ganhar seguidores e adeptos, mas percebem a feroz hostilidade da população a aceitar a bandeira inglesa. Então decidem atacar Buenos Aires. Em 28 de junho de 1807, chegam a Ensenada e conseguem eludir e escapar das tropas de Liniers. Fazem a travessia pelo Pago Chico e a entrada dos britânicos na cidade é iminente.

O prefeito Martín de Álzaga convoca o povo à Plaza Mayor e recusa-se a capitular. A resistência do povo nas ruas é amenizada com a chegada de Liniers e os mil homens sob seu comando. Em 5 de julho, Bryan está entre os ingleses que tentam entrar na cidade e recebem dos telhados todos os tipos de projéteis com armas caseiras: pedras, água fervente e cargas de fuzil. O objetivo dos invasores é chegar à Plaza Mayor e de lá tomar toda a cidade. Chegando em Santo Domingo recebem o ataque do Exército dos Patrícios e os ingleses não conseguem resistir. Em 7 de julho, Whitelocke aceita a rendição e o jovem Bryan parte, junto com as tropas derrotadas, para o exílio no interior de Buenos Aires e sul de Córdoba. Conforme lido nos capítulos seguintes das Sessões da Câmara Municipal de Buenos Aires:

“Dia 17 de agosto, o índio Pampa Felipe se apresentou na Sala de Sessões com D. Manuel Martín de la Calleja; e expôs aquele por um intérprete, que veio em nome de 16 caciques dos Pampas e Cheguelches para fazer presente que eles estavam prontos para liberar pessoas, cavalos e qualquer ajuda, dependendo do seu critério para que este Ilustre Cabildo pudesse usar contra os Colorados, cujo nome eles davam aos ingleses. Que faziam aquela oferta ingênua como um presente para os cristãos, e porque eles viram em que problemas sérios eles estariam. Que eles também franqueariam as pessoas para dirigir até o interior inglês, se necessário, e que eles gostariam de que sejam usados ​​contra homens tão maus quanto os Colorados.”

Corria o ano de 1807 e, prisioneiro das tropas espanholas e criollas, ainda pensa o jovem Bryan nos olhos claros de cor de céu de Molly, de quem se dizia que era uma prostituta encarregada de entreter os marinheiros da fragata Encounter. Mas Bryan, que era um mero tambor de infantaria ingênuo, não acreditava e pensava que a linda loira de olhos azuis era, como em tantos outros casos, uma mulher rebelde, aprisionada pelo autoritarismo inglês, que tão bem conheciam os escoceses. E então ele começou a planejar todo tipo de loucuras mirabolantes para resgatá-la.

Mas, se as ideias e memórias se confundem agora na cabeça do velho, é porque entre as décadas de 1820 e 1840, perto da freguesia de Santa Lúcia conhecera, -em um lugar onde se reuniam os carroceiros, carreadores, copleros, tropeiros de passagem às Minas Gerais, e outros habitantes dessas áreas a meio caminho entre os pampas próximos e a cidade- a filha do dono da loja de ramos gerais –a Pulpería-. Era uma jovem chamada Dionisia Miranda, conhecida como "a loira do saladero", e à qual um século depois, quando nem os ossos nem a memória de Bryan permaneceram, passaram a cantar como “la pulpera de Santa Lucía”.

 

Continuará. JV. Salsipuedes, Uruguay, janeiro de 2032.


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