Elson
Costa nasceu em 26 de agosto de 1913, na cidade de Prata, estado de Minas
Gerais. Era filho de João Soares da Costa e Maria Novais Costa, e casou
com Aglaé de Souza Costa. Foi preso, sequestrado e desaparecido em 1975,
em São Paulo. Era o responsável pela propaganda e agitação do PCB. Na manhã de 15 de janeiro de 1975,
Elson foi preso no bar ao lado de sua casa, onde havia ido tomar café.
Alguns
vizinhos tentaram protestar contra a prisão efetuada por seis homens, pois,
para eles, quem estava sendo detido era apenas um aposentado, o Manoel de Souza
Gomes que vivia na Rua Timbiras,199, no bairro de Santo Amaro, em São Paulo.
Mais um preso político torturado, morto e com o seu corpo sequestrado e
desaparecido. Mais um crime da ditadura cívico-militar que arrasou o praís
entre 1964 e 1985. (JV)
História
Por JOSÉ MIGUEL WISNIK *
O rio em que vivo não é o do
esquecimento. Meu nome, e agora quem diz é meu afilhado, é Elson Costa.
Tomava café da
manhã num bar no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, quando fui abordado por
um grupo de homens silenciosos. Não tive maior dificuldade para saber o que
representavam, embora não adivinhasse a extensão do que fariam. Meus conhecidos
em volta, frequentadores do bar, como eu, estranharam a cena, mas não acenei
para eles. Sem maior estardalhaço, dado que sou um homem desarmado, fui levado
a entrar no carro. Eles me queriam num lugar não muito distante, mas fora da
cidade, num sítio em Itapevi.
Não é a primeira
vez que sou conduzido para lugares apartados do mundo comum. Ao longo da vida
já fui interpelado em xadrezes e xilindrós, delegacias e quartéis, onde me demorei
tempos, às vezes anos. Eles querem saber coisas de mim, e de outros através de
mim, e usam instrumentos de pressão. Conheci os métodos, as práticas e os
estilos de interrogatório forçado em diferentes momentos do país, e em segredo
me orgulho de suportá-los. Eles apertam, e eu aguento. Depois saio e continuo
meu trabalho. Mas nunca tinha sido trazido para essa espécie de hotel-fazenda
voltado a uma dimensão mais intestina dos interrogatórios.
Faço parte do
Partido Comunista Brasileiro desde que me entendo por adulto. E de uma família
numerosa do Triângulo Mineiro, cuja mãe gerou 24 filhos. Gosto da Humanidade.
Minha irmã caçula nunca esquecerá a noite em que me converti ao socialismo,
durante o diálogo febril com um companheiro, numa sala de casa, que ela
entreouviu sobressaltada, percebendo, mesmo sem entender, que ali a minha vida
tomava um rumo grandemente inesperado. Casei-me com Aglaé, doce e decidida
companheira, que não saberá agora onde estou. Não tive filhos, e luto para que o
legado humano não seja o da miséria.
Isso tudo que me
acompanha como a luz, a nuvem e a sombra benigna que já entranhou a alma, não é
o que eles querem saber. Aqui, onde acabamos de chegar, cavou-se um poço
sangrento e mais obscuro, sobre o qual eles desejarão que paire a sombra
eterna. Sabemos que dentro em pouco começarão os trabalhos. Trabalho que eles
já tiveram com os que escolheram a luta armada contra a sua grande máquina.
Vencidos estes na força desigual, agora é a vez dos que buscam mudanças sem derramamento
de sangue, ameaçando a ditadura com qualquer coisa que abra nela rachaduras
democráticas, como nós. Estamos em 1975. Com meus companheiros de direção do
partido, estamos sendo varridos pela operação que chamam de Radar.
Mas poderia ser
chamada também de Operação Extermínio, que é o que começa a intuir a minha
carne. Nas tratativas da tortura, batalha sem vencedor, não há muita
negociação. Sei, com sobriedade, que me acostumei a fazer do meu corpo o
tira-teima da minha crença: ninguém se aproveitará dele para me voltar contra
mim mesmo e contra os meus. Mas, e também meu corpo é quem percebe, esses
homens não querem mais se submeter a antigos limites: insuflados pelas
conquistas da treva, levados por um delírio de grandeza e de pequenez, lançam-se
a desventrar o Bojador, a dobrar o Cabo das Tormentas Alheias e a circunavegar
a Morte.
Um sargento do
DOI-Codi, Marival Chaves, estará, daqui a anos, em melhores condições do que eu
para descrever o que se passa: segundo relatará, fui interrogado durante 20
dias e submetido a “todo tipo de tortura e barbaridade”, meu corpo foi queimado
vivo, banharam-no em álcool e tocaram fogo, recebendo ainda, depois disso, o
benefício de uma injeção para matar cavalos de 500 quilos. Os corpos de todos
os que se submeteram a tratamento semelhante na famigerada Casa de Itapevi, com
requintadas variações a cada caso, relatadas pelo sargento, foram atados a
pedaços de concreto e jogados no Rio Avaré.
As instituições
envolvidas na história, incluídas no relatório da Comissão Nacional da Verdade,
que arrolará nomes de responsáveis, se negarão tanto a reconhecer os fatos como
a esclarecê-los, abrindo seus arquivos. Mas então, pergunto, onde estarei eu, e
os outros desaparecidos que são eu, como eu? Não quererão os agentes da tortura
e da morte, modestos, reconhecer seus feitos heroicos? Acreditarão por acaso
que é infeliz o país que precisa de heróis? Ou se sentirão humilhados, com suas
ralas duas centenas de desaparecidos, perante os militares argentinos, que
foram a julgamento por suas dezenas de milhares?
Não sei o que eu
mesmo pensaria do então para mim impensável, o futuro fim da União Soviética.
Como parte de um partido dividido entre prestistas e antiprestistas, infiltrado
por agentes inimigos e contaminado pelo clima de suspeita, eu estarei talvez no
último estágio de uma nave descolada da base. Mas a tragédia da vida não valerá
nada diante da doçura só de uns olhos, como os de Aglaé, que pronunciará ainda,
com integridade, a palavra povo, para meu sobrinho e minha sobrinha, a quem
entregará minhas fotos e se permitirá morrer, um dia depois disso e de meu
aniversário de 100 anos, em 2013.
O rio em que
vivo não é o do esquecimento. Meu nome, e agora quem diz é meu afilhado, é
Elson Costa.
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