domingo, 14 de dezembro de 2014

Edson Costa, um revolucionário num rio que não é de esquecimento



Elson Costa nasceu em 26 de agosto de 1913, na cidade de Prata, estado de Minas Gerais. Era filho de João Soares da Costa e Maria Novais Costa, e casou com Aglaé de Souza Costa. Foi preso, sequestrado e desaparecido em 1975, em São Paulo. Era o responsável pela propaganda e agitação do PCB. Na manhã de 15 de janeiro de 1975, Elson foi preso no bar ao lado de sua casa, onde havia ido tomar café. 
Alguns vizinhos tentaram protestar contra a prisão efetuada por seis homens, pois, para eles, quem estava sendo detido era apenas um aposentado, o Manoel de Souza Gomes que vivia na Rua Timbiras,199, no bairro de Santo Amaro, em São Paulo. Mais um preso político torturado, morto e com o seu corpo sequestrado e desaparecido. Mais um crime da ditadura cívico-militar que arrasou o praís entre 1964 e 1985. (JV)

História
Por JOSÉ MIGUEL WISNIK *

O rio em que vivo não é o do esquecimento. Meu nome, e agora quem diz é meu afilhado, é Elson Costa. 

Tomava café da manhã num bar no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, quando fui abordado por um grupo de homens silenciosos. Não tive maior dificuldade para saber o que representavam, embora não adivinhasse a extensão do que fariam. Meus conhecidos em volta, frequentadores do bar, como eu, estranharam a cena, mas não acenei para eles. Sem maior estardalhaço, dado que sou um homem desarmado, fui levado a entrar no carro. Eles me queriam num lugar não muito distante, mas fora da cidade, num sítio em Itapevi.
Não é a primeira vez que sou conduzido para lugares apartados do mundo comum. Ao longo da vida já fui interpelado em xadrezes e xilindrós, delegacias e quartéis, onde me demorei tempos, às vezes anos. Eles querem saber coisas de mim, e de outros através de mim, e usam instrumentos de pressão. Conheci os métodos, as práticas e os estilos de interrogatório forçado em diferentes momentos do país, e em segredo me orgulho de suportá-los. Eles apertam, e eu aguento. Depois saio e continuo meu trabalho. Mas nunca tinha sido trazido para essa espécie de hotel-fazenda voltado a uma dimensão mais intestina dos interrogatórios.
Faço parte do Partido Comunista Brasileiro desde que me entendo por adulto. E de uma família numerosa do Triângulo Mineiro, cuja mãe gerou 24 filhos. Gosto da Humanidade. Minha irmã caçula nunca esquecerá a noite em que me converti ao socialismo, durante o diálogo febril com um companheiro, numa sala de casa, que ela entreouviu sobressaltada, percebendo, mesmo sem entender, que ali a minha vida tomava um rumo grandemente inesperado. Casei-me com Aglaé, doce e decidida companheira, que não saberá agora onde estou. Não tive filhos, e luto para que o legado humano não seja o da miséria.
Isso tudo que me acompanha como a luz, a nuvem e a sombra benigna que já entranhou a alma, não é o que eles querem saber. Aqui, onde acabamos de chegar, cavou-se um poço sangrento e mais obscuro, sobre o qual eles desejarão que paire a sombra eterna. Sabemos que dentro em pouco começarão os trabalhos. Trabalho que eles já tiveram com os que escolheram a luta armada contra a sua grande máquina. Vencidos estes na força desigual, agora é a vez dos que buscam mudanças sem derramamento de sangue, ameaçando a ditadura com qualquer coisa que abra nela rachaduras democráticas, como nós. Estamos em 1975. Com meus companheiros de direção do partido, estamos sendo varridos pela operação que chamam de Radar.
Mas poderia ser chamada também de Operação Extermínio, que é o que começa a intuir a minha carne. Nas tratativas da tortura, batalha sem vencedor, não há muita negociação. Sei, com sobriedade, que me acostumei a fazer do meu corpo o tira-teima da minha crença: ninguém se aproveitará dele para me voltar contra mim mesmo e contra os meus. Mas, e também meu corpo é quem percebe, esses homens não querem mais se submeter a antigos limites: insuflados pelas conquistas da treva, levados por um delírio de grandeza e de pequenez, lançam-se a desventrar o Bojador, a dobrar o Cabo das Tormentas Alheias e a circunavegar a Morte.
Um sargento do DOI-Codi, Marival Chaves, estará, daqui a anos, em melhores condições do que eu para descrever o que se passa: segundo relatará, fui interrogado durante 20 dias e submetido a “todo tipo de tortura e barbaridade”, meu corpo foi queimado vivo, banharam-no em álcool e tocaram fogo, recebendo ainda, depois disso, o benefício de uma injeção para matar cavalos de 500 quilos. Os corpos de todos os que se submeteram a tratamento semelhante na famigerada Casa de Itapevi, com requintadas variações a cada caso, relatadas pelo sargento, foram atados a pedaços de concreto e jogados no Rio Avaré.
As instituições envolvidas na história, incluídas no relatório da Comissão Nacional da Verdade, que arrolará nomes de responsáveis, se negarão tanto a reconhecer os fatos como a esclarecê-los, abrindo seus arquivos. Mas então, pergunto, onde estarei eu, e os outros desaparecidos que são eu, como eu? Não quererão os agentes da tortura e da morte, modestos, reconhecer seus feitos heroicos? Acreditarão por acaso que é infeliz o país que precisa de heróis? Ou se sentirão humilhados, com suas ralas duas centenas de desaparecidos, perante os militares argentinos, que foram a julgamento por suas dezenas de milhares?
Não sei o que eu mesmo pensaria do então para mim impensável, o futuro fim da União Soviética. Como parte de um partido dividido entre prestistas e antiprestistas, infiltrado por agentes inimigos e contaminado pelo clima de suspeita, eu estarei talvez no último estágio de uma nave descolada da base. Mas a tragédia da vida não valerá nada diante da doçura só de uns olhos, como os de Aglaé, que pronunciará ainda, com integridade, a palavra povo, para meu sobrinho e minha sobrinha, a quem entregará minhas fotos e se permitirá morrer, um dia depois disso e de meu aniversário de 100 anos, em 2013.
O rio em que vivo não é o do esquecimento. Meu nome, e agora quem diz é meu afilhado, é Elson Costa.
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