“Todo preconceituoso é covarde. O ofendido precisa compreender isso. O preconceito tem duas fontes: a covardia e a tolice”, diz Mário Sergio Cortella
Por Patrícia Zaidan, do MdeMulher
A
sensação de desconforto atinge do mesmo modo os jovens e os mais velhos?
A
minha geração tinha uma causa: acabar com a opressão. Dos 20 anos aos 30, sob a
ditadura, queríamos democracia, liberdade de expressão e de culto, desejávamos
escolher os próprios caminhos, uma sexualidade nada amarrada, uma conduta
feminina que não fosse secundarizada. A geração atual não vive esses bloqueios
nem tem grandes batalhas. A maior das batalhas hoje é a ambiental. Mas não
interessa tanto aos novos, porque a minha geração não erotizou a ecologia.
Conseguimos erotizar um jeans, um carro, uma balada, uma cerveja… Mas não a
causa do meio ambiente. Ela não se tornou um desejo.
Por
que a juventude não se preocupa com o fim dos recursos naturais?
Eles
deveriam pensar nisso. Mas é uma causa abstrata. Ninguém via o problema da água
até poucos meses atrás. Agora temos que tomar providências. A ecologia fala de
algo que ao jovem não interessa, que é o futuro. Essa não é uma má geração, ao
contrário, tem censo de urgência, é criativa e disponível para uma série de
interfaces. Mas vive o dia como se fosse o único. Por quê? Os mais velhos
disseram a eles: “Vocês não terão futuro, não haverá emprego, ar puro,
segurança”. Os pais também vivem repetindo que os filhos não tiveram infância,
não souberam brincar e subir em árvores, como eles. Ora, quem acredita que não
tem futuro nem teve passado só enxerga a alternativa de viver o presente até o
esgotamento. “Aproveite o dia”, é o lema atual. Grandes causas, como o fim da
homofobia e da violência doméstica, demoram. Leva-se tempo para conquistá-las.
Em um
bairro paulistano, moradores fizeram refém um funcionário da Eletropaulo.
Disseram que ele só sairia dali se a luz voltasse. Em um condomínio, também da
capital paulista, moradores andam pondo o ouvido na parede para fiscalizar
quanto tempo demora o banho do vizinho, quantas vezes ele dá descarga ou lava a
roupa. Isso pode gerar truculência? Acirra os ânimos e cria um clima de
desconfiança? Ou é aceitável?
No caso do refém, é um esgotamento de paciência. O usuário diz à empresa, ali representada pelo funcionário: “Não aguento mais ficar no escuro. Não posso ouvir a mensagem gravada informando que o serviço será prestado em seis horas, depois em oito e, mais tarde, em dez horas”. O cidadão já foi enganado demais. A atitude é perfeitamente compreensível, embora possa caracterizar até cárcere privado. Quanto ao controle do banho, penso que a escassez deve se tornar um tema coletivo. Falta de água é grave. Isso é que acirra os ânimos. Num transatlântico, se a terceira classe afundar, a primeira afunda junto. Tomar conta do vizinho é o primeiro passo para organizar uma reação conjunta à falta de água. Se um denuncia o outro por desperdício – e deve haver multa para isso -, não está sendo dedo-duro, mas cuidando do bem de todos. A medida não pode, porém, se tornar uma atividade persecutória, na qual alguém assume uma autoridade que não tem e passa a fazer daquilo uma cruzada. Seria perigoso.
No caso do refém, é um esgotamento de paciência. O usuário diz à empresa, ali representada pelo funcionário: “Não aguento mais ficar no escuro. Não posso ouvir a mensagem gravada informando que o serviço será prestado em seis horas, depois em oito e, mais tarde, em dez horas”. O cidadão já foi enganado demais. A atitude é perfeitamente compreensível, embora possa caracterizar até cárcere privado. Quanto ao controle do banho, penso que a escassez deve se tornar um tema coletivo. Falta de água é grave. Isso é que acirra os ânimos. Num transatlântico, se a terceira classe afundar, a primeira afunda junto. Tomar conta do vizinho é o primeiro passo para organizar uma reação conjunta à falta de água. Se um denuncia o outro por desperdício – e deve haver multa para isso -, não está sendo dedo-duro, mas cuidando do bem de todos. A medida não pode, porém, se tornar uma atividade persecutória, na qual alguém assume uma autoridade que não tem e passa a fazer daquilo uma cruzada. Seria perigoso.
Os
autores das ações radicais, no terrorismo, têm entre 20 e 30 anos. Eram
crianças no atentado às Torres Gêmeas, em 2001, e, de lá para cá, enfrentaram
preconceito e islamofobia. Viram os muçulmanos se tornarem mal recebidos no
mundo, com dificuldade de entrar em diferentes países e as mulheres serem
proibidas de usar o véu nas escolas. Outro dado: na França, 70% dos presos são
muçulmanos. A maioria morava na periferia e, sem estudo e trabalho, cometeu
pequenos ou médios delitos. O Estado falhou com eles. Qual é a sua análise
sobre as duas coisas?
Não
estão presos por serem muçulmanos, e sim porque são estrangeiros pobres, de uma
minoria excluída, encostados nas bordas das grandes cidades da Europa. A cadeia
deve estar cheia de indígenas, em Dourados (MS); de mexicanos, na fronteira com
a Califórnia, nos Estados Unidos; e de sem-terra em áreas de conflito agrário
no Brasil. O problema é a exclusão. O jovem muçulmano na França é muito
assemelhado ao da periferia das nossas grandes cidades. A arma na mão, no nosso
país, é respeito e dinheiro imediato. Na França, é o terror que oferece
reconhecimento a esses meninos. Alguns islâmicos entendem o suicídio (caso do
homem-bomba) como martírio. Esses jovens se dão importância desse jeito. O
propósito dá sentido à vida. De certo modo, eles se ressentem do preconceito no
mundo todo, não só na Europa. O véu é problema aqui também. Em Foz do Iguaçu
(PR), quem estiver com ele não tira carteira de motorista. A rejeição, porém,
não é de natureza religiosa. Uma muçulmana da elite usa o véu onde quiser e é
até imitada. Outra coisa é a falta de trabalho para os garotos. Na Arábia
Saudita, por exemplo, a economia é restrita ao petróleo, não tem indústria,
comércio. Eles vão para o Exército ou cedem ao apelo de psicopatas que recrutam
para o terrorismo. Mas eu não tenho uma visão catastrófica do mundo atual. Há
muito mais estados com democracia do que antes. Na ausência dela, coloca-se um
nível de vitamina mais elevado no terror, caso do Irã e do Iraque, em
comparação com a França.
Na
democracia, a liberdade de imprensa é imprescindível. Debates após o atentado
ao Charlie se deram em torno do limite do direito de expressão. Pode-se ser
livre e causar dor no outro?
Não
deve haver limite para a liberdade de expressão. E ela não causa dor. Ali
ocorreu um excesso de sensibilidade. Quando eu era menino, meu pai dizia: “Se te
xingarem na rua e você for aquilo, então não é xingamento, é verdade. E, se
você não for, não é contigo”. Logo, se tenho uma religião e alguém tripudia com
meus símbolos, não levo em conta. Não tem a ver comigo, mas com quem fez a
piada. Pena dele. A grande encrenca do fanatismo é tomar como ofensa a postura
do outro. Se quer ser imbecil, seja. Eu não assinaria o Charlie Hebdo. Aquela
escatologia não interessa mais. O humor inteligente está na base da recusa ao
preconceito. Algo como: “Não ria de mim, ria comigo”.
As
pessoas estão agressivas na internet. Ali, há todo tipo de insulto, o que abala
os ofendidos. Reagir ao preconceito, dessa forma, não parece tão simples.
Todo
preconceituoso é covarde. O ofendido precisa compreender isso. O preconceito
tem duas fontes: a covardia e a tolice. O intolerante em relação a etnia, cor
da pele, orientação sexual, religião e extrato econômico tem medo de ser o que
é. Ele só se eleva quando rebaixa o outro. Necessita ver que o outro não serve
e não presta para ele poder valer alguma coisa. É um fraco que teme aquele que
não é igual e se sente ameaçado por ele. Além disso, ser preconceituoso é ser
burro e tonto.
Hoje,
há passeata para tudo. O psicanalista Contardo Calligaris escreveu que levar
crianças a uma manifestação de rua parece perigoso. Mas não levar o filho é
mais perigoso para o seu futuro e o seu espírito. Eles devem participar?
O
omisso é cúmplice. Os pais que escondem do filho temas importantes estão
furtando dele a completude na formação – e tendem a fazer da criança uma vítima
de um sistema que pode ser maléfico. A família deve discutir temas sociais,
sim. Se ela decide não ir à rua, deve explicar o porquê. Há pais que dizem:
“Não me meto em política”. Ao agir assim, já se meteram. Isso é nocivo.
Quando
símbolos fortes, que serviam de balizadores para a sociedade, se enfraquecem,
aumenta a sensação de impotência. Exemplos: a Universidade de São Paulo (USP)
vive uma crise financeira e científica e também moral, por ter abrigado o
estupro de alunas por colegas sem que isso fosse apurado. A maior empresa
pública, a Petrobras, está envolvida em escândalos e corrupção. Por que isso
mina nossas forças?
Mexe
com a gente porque são nossos símbolos de poder. Mas estão surgindo outros
ícones, como comunidades que se conectam em blogs para cooperar; dentistas que
se juntam para atender sem cobrar; instituições como Doutores da Alegria, que
vão brincar com crianças em hospitais. Conheço desembargadores, em São Paulo,
que saem do tribunal, colocam o nariz de palhaço e vão entreter doentes. São
novos marcadores.
O que
é preciso fazer para entender este momento da humanidade que vivemos?
Os chineses acham que devemos lidar com a história e não com o momento. Você só compreende o hoje se olha a história no seu desenvolvimento. É bom recordar o que falavam as avós: “Não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe”. Portanto, nada de desespero. Problemas agudos se dissolvem no tempo. Os efeitos colaterais não são insuperáveis; podemos lidar com eles. É bom lembrar que devemos ter cuidado num mundo multifacetado, multicultural e multidiverso. Por isso, não podemos nos fechar em grupos exclusivos – só católicos, só gays, só muçulmanos -, o que leva à política do gueto e dilui a ideia de humanidade. Acabar com hinos nacionais também seria bom. Em geral, dizem: “Pega, esfola, estripa, arranca, mete a espada”. Temos de enxergar uma sociedade global e interconectada. Não pelo digital e pelo econômico somente, mas pela antropologia. Ou seja, pela convivência humana. E que cada um seja capaz de olhar o outro como o outro, não como o estranho. Homens e mulheres são diferentes, não desiguais. Brancos e negros são diferentes, mas devem ter os mesmos direitos.
Os chineses acham que devemos lidar com a história e não com o momento. Você só compreende o hoje se olha a história no seu desenvolvimento. É bom recordar o que falavam as avós: “Não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe”. Portanto, nada de desespero. Problemas agudos se dissolvem no tempo. Os efeitos colaterais não são insuperáveis; podemos lidar com eles. É bom lembrar que devemos ter cuidado num mundo multifacetado, multicultural e multidiverso. Por isso, não podemos nos fechar em grupos exclusivos – só católicos, só gays, só muçulmanos -, o que leva à política do gueto e dilui a ideia de humanidade. Acabar com hinos nacionais também seria bom. Em geral, dizem: “Pega, esfola, estripa, arranca, mete a espada”. Temos de enxergar uma sociedade global e interconectada. Não pelo digital e pelo econômico somente, mas pela antropologia. Ou seja, pela convivência humana. E que cada um seja capaz de olhar o outro como o outro, não como o estranho. Homens e mulheres são diferentes, não desiguais. Brancos e negros são diferentes, mas devem ter os mesmos direitos.
O papa
Francisco tem opinado em conflitos entre judeus e árabes, entre nações fortes e
sociedades pobres, sempre na defesa da paz e da autonomia política dos povos.
Repudia o terrorismo, mas critica o insulto à fé. Denuncia que o mundo é
machista com as mulheres e prega respeito aos gays. Até provocou com a frase:
“Sejamos revolucionários”. Muitos dizem que é o maior estadista do momento.
Concorda?
Ele
cumpre uma grande tarefa. Traz à tona questões difíceis. Não mexerá na
doutrina, mas no campo da moral. Ele prega o acolhimento dos excluídos. Diz
“Seja revolucionário” no limite que o cristianismo romano entende como
revolução. A inspiração em Jesus ou São Francisco de Assis é boa para os
jovens. O papa é uma expressão de alegria. Trata temas sérios de modo leve, não
é carrancudo, não olha de cima. Assumiu o papel de defesa da paz onde há
conflito. Ele me faz lembrar Benedito Spinoza, filósofo judeu que propõe a
ética da alegria. É algo que precisa entrar na nossa rotina. Não quer dizer que
a sociedade deva seguir no vício do hedonismo, buscar o prazer em tudo o que
faz, seguir na lógica de que a vida é uma festa e não requer esforço. Isso
degrada nossa capacidade, que deixa de construir algo um pouco mais forte.
Tomado de:
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