terça-feira, 26 de janeiro de 2016

De utopias e amores. De demônios e heróis da pátria.




De utopias e amores,
de demônios e heróis da pátria.
Javier Villanueva

Introdução
As vicissitudes de um editor

A verdade é que estava ansioso.  Fui o editor do Paco Navarra faz alguns anos, publicando-lhe obras pouco importantes para o grande público, alguns contos ou crônicas para leituras escolares. Mas agora Paco tinha me pedido que lesse o seu primeiro livro em formato de novela. Li, mas não quis editá-lo; ele não insistiu, mas me rogou que o mandasse para alguns leitores críticos. Fiz o que me solicitava, e passei o original a uma conhecida professora de literatura da Universidade de Córdoba. E Paco Navarra gostou: foram muitos comentários interessantes, que melhoraram bastante o original; mas ele ainda queria uma crítica forte, e me pediu que intermediasse uma leitura de H. Estévez, um especialista brasileiro em letras latino-americanas, destacado entre os hispanistas do país e conhecedor dos temas pelos que Paco Navarra se aventura ao longo do seu texto.

Assim começava o meu compromisso com o livro de Paco, ao que hoje faço esta apresentação, apesar da minha negativa a editá-lo. Mas ainda houve alguns passos mais, antes de chegar à antessala na qual espero agora, nervoso, quem foi em outras épocas o diretor do meu principal cliente, a editora paulistana que fundara Monteiro Lobato.

Os detalhes sempre me pareceram importantes, por isso vesti para a ocasião a melhor roupa que tinha no armário. Tomava já o terceiro cafezinho no pátio lateral do escritório enquanto esperava ansioso o “pode entrar” do jovem secretário que se concentrava no seu i-pod, a léguas de distância das minhas inquietudes literárias. Enquanto isso, os meus pensamentos percorriam obsessivamente o itinerário que tinha me trazido até aqui. Recordei como começara tudo, dois meses atrás, naquela quarta-feira em que o telefone me acordou cedo; era o Nico, meu amigo da produtora de cinema:

Um dos diretores gostou da sua ideia para o filme. Deixe o roteiro amanhã no meu escritório, e daqui a uma semana voltamos a conversar–.  No dia seguinte deixei o original com outra funcionária indiferente e entediada, que por toda resposta disse:     

Aqui está o comprovante da entrega. Faça o favor, chame-nos na semana que vem, ou daqui a 10 dias, mais ou menos–.

Assim chegava até este momento em que me sentia ansioso como um adolescente, esperando ser recebido para o seu primeiro trabalho. O rapazinho teve que insistir:

Senhor, por favor, pode entrar–. No despacho estavam o meu amigo e outros dois homens.

Embora gostasse da ideia de ver a novela de Paco Navarra no cinema, seguia com um dilema que me partia ao médio entre a fidelidade aos seis ou sete conhecidos e críticos que leram os originais antes que por fim me animasse a levá-los até o editor J. Maldonado em Córdoba e sugerir que pensasse em editar e publicar o livro do meu amigo. 
Sim, porque, embora durante anos o Paco e eu não tivéssemos sido mais que autor e editor, sem demasiados vínculos, de repente o seu novo livro nos criou certos laços de amizade e camaradagem. E eu até imaginava por que, ao ler parte das suas memórias, que se camuflavam na novela que agora me dispunha a promover para uma versão cinematográfica.
Mas, voltando outra vez ao tema dos leitores críticos, acontece que Paco Navarra gostou da análise do livro que fez Estévez, e que era bastante dura:

Recorte e reorganize tudo, tire metade dos adjetivos, ou não publique. Releia e recorte tudo de novo antes de voltar a montá-lo. Pendure cada parte do livro no varal, como os que se usam para secar a roupa, ou como nos contos de cordel do nordeste– foi o que lhe aconselhou o professor e hispanista, e o Paco gostou. Recortou a novela de cima abaixo e reordenou tudo após outro longo ano de investigações e leituras paralelas. E quando parecia que já “quase” estava pronto, entregou o novo texto a Raúl Sánchez, o ator cordobês, que o leu e criticou duramente. Tudo de novo. E outra vez, com paciência, Paco Navarra refez cada texto, realinhou todos e cada um dos diálogos, agregou correções e recortou mais ainda.

Porém, Paco teve ainda o cuidado de fazer uma última busca na internet sobre a vida de um dos personagens que ele mais critica em seu romance, e então todo mudou de novo ao se encontrar-se com Pili Roca. Também hispanista e linguista, Pili tinha estremecido os alicerces da obra do Paco, dizendo-lhe que essas bases talvez se assentassem no terreno pantanoso da cegueira para criticar o passado e analisar com a alma desarmada os momentos históricos que o romance queria resgatar.

A partir desse momento, Paco Navarra tinha se afundado em um limbo de indecisões, como se se partisse ao meio, porque ao final tinha passado quatro anos metido nesta obra, pesquisando mais de duzentos textos; havia incomodado os quatro ou cinco parentes próximos mais dedicados à literatura e à história, e procurado a três dos melhores críticos que tiveram a paciência de ler a obra, analisá-la e criticar os seus temores e incertezas como autor.

Ocorreu então – repito- que quando já parecia que Paco Navarra conseguia por fim equilibrar textos – além da arquitetura do romance, a veracidade histórica e outro mundo de detalhes- um pudor desmedido o leva a pedir mais uma  opinião, não de toda a obra, senão de uma peça-chave da mesma. É que um dos personagens, – que parecia sinistro para muitos, enigmático para outros, sedutor e valiosíssimo para uns quantos mais- passeia ao longo do texto como um “convidado de pedra”, um crítico dos erros que toda uma geração de jovens cometeu, no meio da soberba juvenil de querer um mundo melhor. Personagem controvertido e conquistador se há, na novela que agora apresento é o único ao que se critica desde vários ângulos; e por isso é que o tal personagem se diferencia do grupo dos outros, os que saem vitoriosos da prova dos trinta e cinco anos de memórias do autor, porque morreram jovens, heroicos e generosos, enquanto o sedutor pertinaz sobrevive, e por algum motivo impossível de avaliar, escapa da crítica e do julgamento improvável de uma justiça impossível.

A dúvida que corroía Paco Navarra era simples: era justo condenar – 35 anos após alguns dos feitos que narra o romance-, um homem velho que começa a se  despedir do mundo sem conseguir fazer o seu espaço na história? Pili, a quem Javier consultara após a referida procura em internet, diria que não. Diria que o meu amigo autor continua sendo estreito e sectário. Que mede com a regra dos anos de 1970 um homem que fez as suas contribuições importantes e depois foi engolido pelas sombras, e agora já está velho demais para se defender.

Ao final, o dilema que dividia a Paco Navarra não se resolveu, e apenas conseguiu, e nada mais, que Pili lhe dissesse que tinha liberdade absoluta para transformá-la em um personagem literário junto aos outros que povoam o seu livro, “todos riquíssimos”, segundo ela. Já disseram a ela que a sua vida bem valeria um romance, enquanto ela mesma se via absolutamente prosaica e rotineira. Mas isto é algo que vai se ver melhor depois, no livro que vou apresentar.

No fundo, não me surpreendeu também o que ouvi no escritório dos produtores. Eu não resolvia o conflito moral que me transferia Paco Navarra, o de ser justo com a história e com as suas convicções, e ao mesmo tempo poupar amarguras ao tal personagem que, não nos enganemos, já está esquecido pela grande maioria dos protagonistas da sua época e não passa de ser um fantasma triste e a salvo de qualquer julgamento porque, afinal de contas, não há justiça revolucionária dos anos setenta que o atinja, como diria o nosso autor, “porque aquele momento histórico e os seus protagonistas já não existem – não existimos- como revolucionários, transformadores radicais da realidadeE nem sequer a justiça da democracia que soubemos conquistar poderia por nosso personagem em um banco de réu num julgamento: qualquer delito extingue-se após três décadas como as que sobrevivemos e vivemos desde então”.

No fim, o filme não vai sair. Seria muita ingenuidade pensar que os produtores iriam aceitar tudo, sem impor condições, uma vez que a Paco Navarra empacou em que não vai deixar que tirem nem uma única vírgula do seu texto original.

Posto tudo isto, vamos à apresentação prometida. Dizem que a memória é um tesouro falso que se guarda no mais fundo da consciência, para nos auto-enganar e ser complacentes com os nossos erros; por isso, quando o Paco me pediu uma introdução a este livro, lhe disse que só iria fazer à condição de ser independente nas minhas opiniões, poder criticar os seus pontos de vista, e que o seu editor não me recortasse nada. Ele aceitou e aqui vão os meus comentários:
A memória de Paco Navarra é complacente, mas com dúvidas e vacilações. Apoia-se em uma leitura histórica parcial ou com simpatias duvidosas. A Guerra do Paraguai, por exemplo, ou as vidas de Felipe Varela, Luis Carlos Prestes, Severino de Giovanni, Carlos 
 e outros tantos personagens e episódios reais brasileiros e argentinos, com os que ele joga como tela de fundo do texto, são quase mitos ou ao menos, são referências questionáveis, emotivas, mas que propõem uma linha que às vezes é equívoca.
Sobre a Guerra do Paraguai, ou Guerra da Tríplice Aliança, por exemplo, Paco Navarra aponta as suas dúvidas, mas não as confirma: o ditador do Paraguai era autoritário e atrasado, e levou o seu povo a um sacrifício cruel e desnecessário? O seu orgulho de tirano isolado do mundo o fez atacar aos dois países mais poderosos de América do Sul, que se uniram para destruir ao vizinho presunçoso, e finalmente conseguiram impor a política das suas respectivas oligarquias? A Inglaterra tirou grandes vantagens dos resultados mas, não se dedicou a incentivar o conflito bélico?
Paco Navarra conta as tentativas de paz britânica e norte-americana, mas não deixa claro que isso mesmo é o que afasta a Grã-Bretanha da responsabilidade direta o quase total da guerra, mais do que o seu relato deixa entender. Houve um genocídio? Sim, porque uma enorme parte do povo paraguaio foi exterminada pelos imperiais brasileiros, secundadas pelos batalhões portenhos. Mas quem levou 90% da população masculina à guerra? foi o ditador paraguaio? Ao final, até o mesmo Marx diria que um sistema político e social quase missionário, herdeiro dos relacionamentos jesuíticos coloniais, não poderia senão cair baixo o jugo do proto-capitalismo liberal que se impôs em Rio de Janeiro e Buenos Aires.
E Prestes? Era um herói para valer? Um militar “tenentista” que depois se transforma em um fiel representante do estalinismo soviético, pode ser levantado à categoria de Cavalheiro da Esperança? E as suas confusões com relação à ditadura de Getúlio Vargas?

Paco Navarra me confessou que, durante os seis anos que passou pesquisando e escrevendo rascunhos, de 1999 a 2005, estava muito influenciado por algumas personalidades às que admirava. Todos eles eram convencidos de que só com que certos grupos sociais e políticos, ou alguns indivíduos ou núcleos dirigentes atuasse de modo diferente nos seus momentos históricos chave, o destino da Argentina e do Brasil – os dois países que mais lhe importam a Paco Navarra, sem dúvida- poderia ter sido completamente diferente. Vários pensadores – e não só Israel Vilhas que pouco parece ter influenciado Paco Navarra e os seus colegas entre 1974 e 1976- como Indalecio Prieto, líder da República Espanhola, ou inclusive os argentinos Milcíades Peña, Osvaldo Bayer, David Viñas ou Félix Luna, todos o levavam a pensar que, aparte das forças econômicas e sociais profundas, ou das grandes tendências de uma época, o que importam são os homens e mulheres da cada período, as suas ações em favor ou contra o seu povo.
A polémica que este livro de Paco Navarra vem gerando pela Internet, através do seu blogue e o de alguns dos seus ex parceiros, fez com que se lhe conteste às vezes com mesura por parte de gente como Vilhas, ou os editores que publicaram as suas obras anteriores em São Paulo, embora em outras ocasiões seja atacado violentamente pelos conservadores que não querem ver a história recente, a dos últimos 35 ou 40 anos, e o que dirá analisar a grande história, com H maiúsculo, como diz o autor. São os revisionistas do revisionismo, os que querem, por exemplo, que a Guerra do Paraguai tenha como único culpado o ditador Solano López e como vítimas aos exércitos vencedores do Brasil e Argentina. Esses escritores medíocres e mal informados são os que mais atacaram Paco Navarra e seu livro. As memórias mais recentes, as das últimas quatro décadas, que ao dizer de diversos historiadores, já merecem entrar nas páginas dos estudos e investigações acadêmicas, são poucas vezes atacadas pelos críticos de Paco Navarra. É que ficar do lado das ditaduras de Videla ou dos generais brasileiros não é fácil para os seus opositores. Mesmo assim insinuam-se de um modo morno os comentários críticos, e sempre o que reaparece é a velha história dos dois demônios: a ditadura era um dos eles, o outro era a insurgência que teria “provocado” os militares.
 Como em Noite dos Tempos, romance que pinta o primeiro ano da guerra civil espanhola de 1936, pelo que transitam personagens da vida real, como Negrín, ou Moreno Vila, e outros de ficção, que vão tecendo uma rede que põe em contexto a vivência pessoal e converte a narração em uma sequência de associações e sugestões, o livro de Paco Navarra se apresenta como uma caixa de ressonância na que soam épocas passadas, e também os tempos que ao autor lhe tocou viver.
Paco Navarra me disse que, acima das polêmicas que o livro gere, ele queria, sobretudo homenagear aos seus muitos fantasmas, os pro homens da pátria, os heróis da sua infância e juventude. E pôr à mesma altura também outras figuras, escurecidas pelas sombras da história, pouco conhecidas, pela época convulsionada que viveram.  Paco Navarra de fato faz isso, e leva vários dos seus colegas às dimensões exatas de um momento histórico em que só poderiam ter feito o que fizeram, com a melhor boa vontade, com o máximo de entrega pessoal pela causa que naquele momento era a mais justa. E se entre os heróis mais conhecidos, os que já chegaram às páginas dos textos escolares e à literatura, não há anjos nem demônios, também não pode havê-los entre as mulheres e homens dos anos de 1970.
Paco Navarra não deixa de analisar o momento, e ver quem eram os grandes demônios. Seriam os que rodeavam ao homem que comandou diretamente três décadas da vida política argentina? O seriam também os generais e oficiais que, antes e após a curta passagem de Perón na volta ao poder, prepararam com luxos de detalhes e depois executaram o extermínio de toda uma geração de argentinos?

Por outro lado, há algo que nenhum dos críticos mais ferozes, nem os aduladores mais obsequente de Paco Navarra comentaram. É que, aparte do fio condutor que alinhava as partes do relato -o do social, da luta revolucionária ou contestatária na América do Sul dos séculos XIX e XX-, existe um outro eixo  que se enrola como em uma trança com o da luta social ou política. É o fio dourado dos sentimentos, o do amor de mulheres valorosas, comuns ou incomuns, que ao lado ou por trás dos seus homens, deram exemplos heroicos, que Paco Navarra resgata ao longo do livro.
Não são só as mais conhecidas, como a Manuelita de Bolívar, dona Josefina Scarfó de Di Giovanni, a “Tigra” de Felipe Varela, as lanceiras de Artigas, ou a Elisa Lynch, a irlandesa formosa de Solano López, ou Olga Benário de Prestes, ou Iara, colega de lutas e de amores de Carlos Lamarca.

Paco Navarra recorda sobretudo a outras mulheres, mais de carne e osso, contemporâneas e muitas delas, levando ainda a vida que seguiu à derrota e à volta à democracia na Argentina; como a Negrita do Chacho Loiro, ou a mulher do Pelado Rafa, e a Negra de Juancito, sobreviventes, com filhos, netos e lembranças a carregar nas costas. Pensa em Cristina de Carlitos, ou na “Petisa” do Gordo Lowe, mortas em combate lado a lado com os seus maridos. Pensa nos filhos de todos eles, jovens, e carregando o fardo de um mito, enquanto sabem que os seus pais lhes diriam que não deve ser assim, que eles não foram heróis, senão mulheres e homens que fizeram o que deviam e o que podiam, em uma época maravilhosa e terrível, difícil pelo menos.

Dizem que há instantes da história em que alguns ou muitos homens e mulheres, em um rapto de lucidez, compreendem e propõem as suas ações sabendo que o correto e o lícito só são tais nesse determinado contexto. O livro mostra essas boas intenções da sua geração e as de outras que a precederam na tentativa de fazer um mundo melhor. E embora às vezes pareça pessimista, o romance também resgata o amor como outra força da vontade, que às vezes também move as montanhas.

VB, ex Editor de J. Paco Navarra. São Paulo, 22 de agosto de 2009.

JV. São Paulo, 2007 e Catamarca, 2009.

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