Poco a poco, Paco Peco, poco pico.
Ontem víamos em Buenos Aires, num dos bairros da classe média
da capital portenha, como o governo argentino começa a perder a sua base social
e a enfiar os pés pelas mãos. Matar mapuches parecia ser mais fácil que
meter-se com os aposentados, que incluem todas as classes trabalhadoras.
Enquanto isso, no Brasil, uma nova leva de carpideiras – são muitas,
as da direita que choram pela ditadura, as da “esquerda traída pelo PT”, que
chora pelos sonhos que tiveram de umas promessas de revolução que o Lula nunca
fez, e que agora engrossam o coro da direita ou dos “sem partido”; e ainda as
carpideiras bicho-grilo que acham que são de esquerda, mas cultuam a síndrome do vira-lata
que inveja “a raça (espanhola?) dos argentinos”.
A suposta “espanholidade” dos argentinos que viria a explicar sua
decisão de luta é um mito, dos mais infames. Mais um dos tantos mitos vira-lata. Só que
dessa vez gerado em certa parte da esquerda, aquela em que convive o pensamento
liberal individualista do bicho-grilo, aqueles que os velhos da luta armada dos anos 70
chamavam de “desbundados”, talvez exagerando um pouquinho nas tintas.
Vejamos: um 54,5% dos eleitores que votaram em Dilma em 2014 são
menos de 25% da população. E com certeza que os 2 milhões que saíram às ruas
contra ela e o PT (um 1% da população ou 2% dos eleitores) estão mais ativos e
decididos que o 25 a 35% histórico da esquerda. O povo trabalhador não liga
para estas estatísticas, claro, porque já sabemos que as crises são momentos em
que sobem à superfície de um modo mais explícito todas as contradições sociais.
É durante essas crises que as pessoas percebem mais claro o que antes estava tapado pela manipulação dos
meios e pelo capuz ideológico das
classes dominantes, e às vezes pelas próprias capas médias, como acontece
agora com esse 48% que votou no Aécio e aplaudiu em grande parte o golpe. Nas
crises os trabalhadores aprendem em alguns poucos dias de luta muito mais que
em anos de calmaria, de refluxo ou de reação; as manifestações, as greves, as
batalhas cotidianas nos locais de trabalho, bairros, escolas, igrejas e clubes
ensinam muito mais que o aprendizado formal de toda uma vida.
Desculpem, mas não aceito mesmo o tal mito de “o argentino é
mais lutador”, e menos ainda quando vem salpicado do viralatismo “genicista”
que repete a velha ladainha de "portugueses preguiçosos" e "espanhóis lutadores e
valentes".
Por ser argentino e sabendo o que foi a luta contra duas
ditaduras, não concordo com o tema do componente étnico ou genético em relação
à capacidade ou velocidade para reagir social e/ou politicamente. Os argentinos
somos mais índios e italianos do que espanhóis, que eram muito pouca gente na
época da colônia e ainda menos na enorme imigração de 6 milhões de europeus
entre 1850-1955. Ou seja, o "sangue quente" não se sabe de onde poderia vir, se esse fosse um motivo.
Pode-se alegar que dentre a massa enorme de italianos (mais
de 3 milhões) havia mais anarquistas e socialistas que nos 1,5 milhões que
aportaram no Brasil; assim como muitos comunistas entre os poloneses e judeus,
também em maior número lá do que aqui nos trópicos. Sim, isso deve fazer alguma
diferença, claro. Mas não é pela composição étnica que se definem as
capacidades de um povo para reagir à exploração, e sim por um conjunto de
fatores históricos e políticos.
O povo brasileiro tem uma coleção até maior que
a do argentino na lista de revoltas, revoluções, levantamentos e lutas de
resistência (*) que a dos povos argentino, uruguaio ou chileno. Poderão me
dizer que muitas dessas revoltas foram religiosas, ou reacionárias, como a da
Vacina e a do Juazeiro. Não importa, até agora não se lutou aqui pelo
socialismo, nem ao votar o PT e o Lula, e sim por reformas possíveis dentro do
capitalismo, como a Reforma Agrária.
O que sim é diferente é o histórico das
guerras da independência, onde o povo participou ativamente nesses países
hispânicos contra o dominador espanhol, coisa que quase não houve no Brasil. Ou
da diferente história de resistência dos povos nativos, posto que os índios
patagônicos - Pampas, Tehuelches e Mapuches- resistiram até hoje aos avances da
"civilização", primeiro a espanhola, e depois a chilena e argentina.
Fato explicado até porque nos pampas extensos, os espanhóis, distraídos eles, "esqueceram" algumas vacas e
cavalos que, reproduzidos de a milhares, deram armas e cavalgaduras de guerra e alimentação extra
e inesperada aos Patagônes, que resistiram mais e melhor que Astecas e Incas.
Mas a luta dos quilombolas, por exemplo, já de por si seria um elemento de
compensação enorme a isso que comentei antes sobre os nossos indígenas
patagônicos. Não, nem o sangue lusitano é ruim, nem o espanhol - o pouco que
corre nas veias argentinas- é explicação e sim os momentos sociais e políticos
que cada povo vive.
As épocas de reação e refluxo como a que sofremos hoje registram
diversos motivos, que tem a ver com esse 40% das classes médias aplaudindo à
direita, e com o desconcerto das classes trabalhadoras mais pobres pela rapidez
das manobras e chicanas “legais” que arrancaram seus direitos, assim como a falta de vanguardas sociais e políticas
aguerridas, que também não nascem em provetas nem chocadeiras. Em fim, não é a
etnia dos povos o que marca sua capacidade de lutar: o Brasil, repito, tem uma
lista mais longa e sofrida de revoltas, levantamentos e guerrilhas populares do
que a do povo argentino, que sofreu seis golpes militares no século XX, cada
vez mais sangrentos, justamente porque havia - e ainda há- uma classe média confundida,
torcendo contra os trabalhadores e uma classe operária cansada e desiludida,
como em meados de 1975, antes do golpe genocida de 1976. Já aguentamos Menem e
De la Rua até estourar em desespero em dezembro de 2001. Quando os deputados
argentinos da oposição dizem "não somos Brasil", estão se referindo
ao golpe, ao governo usurpador, e não tirando sarro do povo brasileiro.
JV. Dezembro de 2017.
(*) Para mencionar apenas as mais conhecidas: Revolta da
Armada, e Revolução Federalista de 1893, migrando do Brasil ao Uruguai e
implicando mais de mil marinheiros e soldados. A Guerra de Canudos, de 1896 a 97, com mais de 25
mortos do povo mais miserável. A Revolta da Chibata, de 1910, semelhante à do
Encouraçado Potemkin na Rússia revolucionária. Revolta do Juazeiro, em 1914. Guerra
do Contestado, entre 1912 e 16. Movimento Tenentista, em 1922 e Coluna Prestes,
até 1927. Guerrilha do Araguaia, entre finais da década de 1960 e a primeira metade da década de 1970.