A chave no contato
"Coloquei a chave no contato e encostei no banco. Estava muito cansado. Tinha corrido mais de 400m sem parar, justo naquele dia em que fazia um calor infernal.
Abaixei o vidro com a manivela da porta do motorista e tentei
relaxar um pouco antes de pensar o que faria daí em diante.
Tinha saído, apenas vinte minutos atrás, pela porta da frente
do sindicato quando vi os dois carros e os três homens a menos de trinta metros;
olhavam para a outra direção da rua e aproveitei para sair pelo lado direito e
alcançar a esquina. Mas, um segundo antes disso, eles me viram. Virei a rua e comecei a
correr. Por sorte, a menos de 15m uma ruazinha lateral, quase da largura de uma
porta, se abria à direita e me dava a chance de encurtar caminho.
Cheguei pela porta dos fundos do prédio, desci até a garagem
sem que ninguém me visse e entrei no carro. Minutos depois, continuava pensando o que fazer enquanto o
calor aumentava. Girei a chave no contato mais um ponto, de modo de ligar o
ventilador.
Acho que um par de minutos depois apareceram dois dos homens,
já com as armas em mão e me procurando, ainda sem me ver.
Não pensei duas vezes e liguei o carro na clara intenção de fugir ou pelo menos de atropelar um ou dois deles.
Mas assim que dei partida aconteceu a explosão. E foi tão grande que voei pelos ares pelo menos quatro ou cinco metros, até cair numa pilha de caixas, papelões e jornais velhos que o sindicado acumulava num canto da garagem.
Olhei para atrás: os dois homens estavam no chão, imóveis, e eu agradecia ao meu amigo
Pedro, o velho metalúrgico da Materfer, pela dupla placa de aço que soldara debaixo do carro,
blindando a estrutura para o caso de um atentado.
Pressinto que os homens da Operación Cóndor não vão me deixar em paz tão cedo.
Um grande abraço, Santiago"
Foi apenas isso que me deixou Santiago como lembrança da sua passagem rápida por São Paulo: um relato breve do que tinha acontecido um par de meses antes da sua saída da Argentina. Apenas uma meia página rabiscada numa folha de agenda com a data em cima, 2 de agosto de 1980.
O papel ficou dentro da orelha do "Los conceptos elementales del materialismo histórico, de Marta Harnecker". Santiago foi preso pouco depois e desapareceu na fronteira entre Uruguaiana e Paso de los Libres.
JV. Curuzú Cuatiá, enero de 1981.
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