quinta-feira, 8 de julho de 2021

Guaicurus ou Kadiweu, os Índios Cavaleiros

 

Guaicurus ou Kadiweu, os Índios Cavaleiros


Ilustração de Carlos Fonseca (Revista Aventuras na História. Ed. Abril

Nos anos de 1950, havia na Argentina uma visão revisionista histórica de raiz populista e americanista da formação do estado e sobre a Guerra do Paraguai. Autores como José María Rosa, Milcíades Peña, e Scalabrini Ortiz, pouco conhecidos no Brasil, até negaram mais tarde a responsabilidade inglesa no conflito da Tríplice Aliança, culpando só ao Império e à Argentina mitrista, como fizera Milcíades Peña num texto clássico. Ele disse que “Nem a monarquia coroada brasileira, nem a oligarquia de Bartolomé Mitre fizeram a Guerra do Paraguay por encomenda da Inglaterra". No Brasil também essa historiografia foi desconhecida. Hoje há um terceiro tipo de releitura do conflito que, - voltando aos mitos dos adeptos de Mitre e Caxias sobre um  Solano López que teria provocado a guerra só pela sua ambição expansionista- invertem toda a perspectiva revisionista e retomam o vitimismo do Império e de Buenos Aires agredidos pelo Paraguai. Há ainda uma outra interpretação que, negando as antes mencionadas, afirma desde os anos 1960, numa visão mais afim à luta ideológica da época entre capital e socialismo, que o motivo do conflito teriam sido os interesses britânicos que queriam impedir a ascenção de um Paraguai poderoso, ecônomica e militarmente. Depois de 1980, novos estudiosos como Pomer sugerem que as causas seriam uma combinação das hipóteses anteriores, o que pinta melhor os processos contraditórios de construção de cada um dos estados nacionais dos países da região. Nenhuma dessas visões fala, porém, do papel dos povos nativos no processo.

Conheci o historiador argentino León Pomer em 1994, num curso em Assis, e ficamos mais de três horas falando sobre a Guerra da Tríplice Aliança e os Kadeweu, os Índios Cavaleiros. Pomer vinha de visitar o historiador guarani Ilfo Rivero, e falar com Próspero R. Garay, heroi da outra guerra, a do Chaco entre Paraguai e Bolívia.

Meu encontro com Pomer parecia continuar o que tive com o também argentino amante do Brasil, Caribé, quando inauguramos o Fondo de Cultura Económica do México em São Paulo, em 1991 e tive a honra de trazê-lo ao Memorial. Lembrei de Eric Hobsbawm, que dizia que alguns argentinos eram eternos êmulos de San Martín, cruzando cordilheiras e serras, atrás da integração e irmandade dos povos da nossa Ameríndia.

Eu nem imaginava que, 24 anos depois, numa viagem a Bonito, no MS, iria reencontrar o espírito, se não a presença viva, do Próspero R. Garay, homem de 103 anos que foi tema de longos papos na Casa da Memória Raída, de Bonito, um lugar de combate ao esquecimento e resistência ao descuido histórico na pequena cidade turística, bem na rota do avanço dos paraguaios por território brasileiro ao início da Guerra. Um paraguaio, que eu já tinha visto em Bodoquena, estava na Casa, e falamos sobre os Kadiweu e as línguas Guaicurus. Era sobrinho neto de Próspero R. Garay.

Parecia tudo coincidência mas, no dia seguinte, à porta do hotel, uma família sem-teto pedia comida e algum dinheiro. Eram Kadiweus, da outrora orgulhosa nação dos Índios Cavaleiros, hoje não mais de mil habitantes no do Pantanal Sul, entre a Bodoquena e os Rios Nabileque e Aquidavão, ao norte do município de Porto Murtino, MS, que numa época teve 1.629 assentados num território de meio milhão de hectáres, criado em 1903.

Nativo da velha nação, Santos, o pai do grupo de pedintes, é um dos últimos sobreviventes dos Guaikurú do Grande Chaco. Guaycurú em espanhol, ou Guaicuru em português, era nome ofensivo que os Guarani davam aos Mbayá do Paraguai. Guaicuru quer dizer "selvagem", um povo que, desde cedo, se tornou especialista em cavalos. Não se sabe bem quando o Guaicuru passou a domar o cavalo, que os espanhóis levaram ao Chaco no século XVI e grandes rebanhos cobriram os pastos. Já no fim do século capturaram e adotaram o cavalo, o que lhes deu uma mobilidade que provocou grandes mudanças na sociedade, na forma de caça, na guerra contra outros povos e os espanhóis, e ampliou seu território. Sua sociedade criou classes de nobres, guerreiros, servos vassalos -os Guará- e escravos cativos de outras tribos. Os Jesuítas tentaram uma missão com os antepassados de Santos em 1609 e outra em 1613, mas deixaram tudo em 1626 pela falta de resultados: a ausência dos índios, sempre em viagens nômades de caça, pesca e colheita. Os padres tentaram o cultivo, mas para os Guaicurus essa era atividade de cativos.

Quando atacaram as missões jesuíticas do Itatim e fizeram do lugar a Terra Mbaiânica, entre os rios Taquari e Jejuí, os Guaicurus já eram expertos cavaleiros. Bons vencedores, deram novos nomes à geografia. Os rios que os castelhanos chamavam Corrientes e Piray logo foram o Apa e o Aquidaban; o distrito de Pitun, Piray e Itati, foi o Aguaguigo. Isso, segundo alguns, embaralhou tanto a geografia e a demarcação de limites, que é uma prova do domínio territorial Guaicuru.

Falei também com a esposa de Santos, que dizia em poucas palavras em português, que na visão original do seu povo não havia o termo território. Isso só veio após o contato com o branco. Antes, o índio ia e vinha, e ele próprio definia sua vida e destino sem tutela e limitações. Depois do contato com o branco existe dominação, exploração e violência. Dizia Ana Santos que hoje o índio precisa afirmar-se; antes não, a natureza garantia isso. A terra garante; por isso terra é tudo.

Os Guaicurus-Kadiweu, numa longa faixa a ambos os lados do Paraná, fronteira com o Paraguai, viviam em grupos familiares. Seu território, rico de erva-mate, explorada na pós-guerra, era a principal fonte econômica. Quase todo o território original Guaicuru foi arrendado à Companhia Matte Larangeira. O avô de Santos, que trabalhou na Companhia Matte Laranjeira, dizia que ao fim da guerra e nos anos de 1930, com a decadência da empresa, as frentes agropastoris começam a ocupar o território.

Depois vêm a fazenda de gado e em 1970 a monocultura da soja e a derrubada sistemática da mata nativa, habitat dos Guaicurus. A família de Santos e outras que viviam nas fazendas, foram forçadas a ir para as reservas demarcadas pelo governo, criando superpovoamento dessas áreas. A investida final do agronegócio, me conta Santos, foram as usinas de álcool e açúcar, com extensas plantações de cana que usam mão-de-obra indígena para o corte. Nesses anos de perdas territoriais, o povo Guaicuru-Kadiweu e outros do Mato Grosso do Sul, na década de 1970, passam a exigir a devolução do território perdido.

Santos diz, orgulhoso, que os Guaicurus tem sua história guerreira, contada hoje por seus descendentes, os Kadiwéus de Mato Grosso do Sul. O Criador Gô-noêno-Hôdi tirou todos os povos de um poço e deu a cada um funções diversas. Uns pegaram na enxada e foram agricultores, outros artesãos. Só que o Criador esqueceu dos Kadiwéus, que saíram por último do buraco. Por isso, conta Santos, o Criador deixou que roubassem um pouco de cada povo.

Na Casa da Memória Raída, de Bonito, ouvi que os ancestrais dos Kadiwéus podem ter vindo da Patagônia argentina, parentes talvez de Tehuelches e Mapuches, e até dos extintos Charruas uruguaios. Outros acham que a origem é andina. O real é que a região ocupada por eles no centro da América do Sul, tinha influências amazônicas, dos Pampas e das grandes civilizações andinas dos Incas. Os vizinhos viraram lavradores sedentários, mas eles seguiram a vida errante, divididos em tribos sem unidade política, mas com uma língua e costumes bastante semelhantes.

O domínio da área era dos Guaicurus. Os relatos contam que mataram o português Aleixo Garcia em 1526, quando deixou Santa Catarina com uma tropa guarani, saqueou postos avançados dos Incas e na volta foi vencido pelos Guaicurus. Tratavam as outras tribos como os nobres europeus aos camponeses, pilhando seus bens e obrigando-as a tratar a terra para eles. Cobravam tributo, a troca de proteção, como os Astecas e Incas aos seus vizinhos. O poder dos Guaicuru formava os jovens em rituais de iniciação guerreira desde criança, usando  cavalos europeus, o que fez que os Mbayá-Guaikuru  ampliassem seu raio de ação.

A pintura de corpo dos Kadiwéus, diziam os avós de Santos, impactou o antropólogo Lévi-Strauss por sua complexidade e simetria. Darcy Ribeiro, que visitou os Kadiwéu em 1940, viu que os índios tinham interesse nulo pelos mais humildes. Ao contrário, "o seu património lendário", diz Darcy, era "a mentalidade de um povo cuja característica mais elaborada é o etnocentrismo, a idéia de predestinação de Kadiwéu para governar o mundo". "Adotando o cavalo, que para os outros índios era uma caça que crescia nos campos, se formaram como chefes pastoris, enfrentando com vigor o invasor, infringindo-lhe derrotas e perdas que ameaçaram a expansão européia. Um dos cronistas da expansão civilizatória sobre seus territórios nos diz, claramente, que “pouco faltou para que exterminassem os espanhóis do Paraguai”. Francisco Rodrigues do Prado, membro da Comissão de Limites da América hispânica e da portuguesa, avaliou em 4 mil o número de paulistas mortos por eles ao longo das vias de comunicação com Cuiabá" conta Darci Ribeiro em "O Povo Brasileiro".

A colonização ibérica se consolidou na região no Fuerte Burbón e Concepción no lado castelhano, e do outro, em Coimbra, Albuquerque e Miranda também se criaram condições para uma guerra tripartite entre espanhóis, portugueses e Guaykurus. Os ibéricos lutavam para expandir suas fronteiras, e os Guaykurus contra ambos para proteger seu território. A vitória só seria de quem pudesse aliar-se aos índios. Os Guaikurú foram muito astutos contra ambos os dois inimigos. Conta meu novo amigo Santos na pracinha de Bonito, que se aproximaram mais com os portugueses, o que finalmente culmina na paz e amizade firmada em 1791. Até 1826, não há mais violência entre os luso-brasileiros e os índios cavaleiros.

Com os castelhanos de Assunção os índios tinham um jogo duplo: fingiam aproximar-se, mas seguiam atacando a fronteira. Isso cresce depois da independência do Paraguai. O governo paraguaio desmata a floresta perto de Concepción, onde os índios anualmente colhiam cocos, e os índios aumentam os ataques contra o Paraguai. Ao mesmo tempo, crescia a relação com os brasileiros, que forneciam armas e munições, e compravam de seus botins de guerra.

Em 1850, Brasil e Paraguai negociavam a navegação dos rios da região, vital para o Mato Grosso, mas uma tropa de índios e brasileiros toma o Fuerte Olimpo, e o governo mato-grosense é forçado a castigar os Guaicurú.

Quando a ocupação do Mato Grosso pelas tropas paraguaias deu início à Guerra da Tríplice Aliança, a defesa do país exigiu o apoio dos índios do Pantanal, me conta Santos que relatava seu avô. Grande parte dos povos do Chaco foram pra luta contra o Paraguai a favor do Império do Brasil. Alguns, "voluntários da pátria", mesmo com recrutamento forçado, lutaram às ordens do Império por uma nação que nem sabiam o que era, porque tinham sua guerra particular dentro da grande guerra. Índios desse tempo depois de acabada a guerra, ainda mostravam prêmios de recompensa pelos seus atos de bravura, e passeavan com trajes da guerra que simbolizavam o orgulho da sua participação.

No Pantanal, contam Ana e Santos, os Gaiucuru atacavam os paraguaios por meio de guerrilhas. Em 1865, os Terena derrotaram os paraguaios, matando três índios e onze soldados de Solano Lopez e roubando munições. Mais tarde, sob fogo pesado, cercaram o inimigo até fazê-lo deixar os campos, levando muitos animais. Depois disso, já sem munição, correram às forças imperiais a pedir reposição. Segundo o avô contou ao amigo Santos, um oficial brasileiro disse que o pedido seria atendido "porque eles têm feito muito".

Na memória do seu povo, diz a mulher de Santos, a Guerra do Paraguai dividiu as águas. O fato - contava meses seu avô Victoriano - foi visto pela estudiosa Mônica Pechincha, que conheceu os Kadiwéu em 1992, e depois de ouvir dezenas de histórias concluiu que a guerra do Paraguai "é o evento que define a relação dos Kadiwéu com a nação brasileira. E é uma parte fundamental na reivindicação dos seus direitos territoriais".

A fim do século XVIII, os Guaikuru, mesmo próximos dos luso-brasileiros, e estabelecidos perto de Forte Coimbra e da vila de Albuquerque, não se deixavam seduzir tão fácil pelas propostas insistentes do estado brasileiro de concentrar-se em "reservas". Quem vai descrever os Guaikurus dizia Vitoriano Santos fala logo das traços mais visíveis: fortes, corajosos quase temerários; mas selvagens e violentos; traiçoeiros, embora bonitos, orgulhosos e vivos. A figura do Guaicuru impactava: "Seu tamanho, beleza e elegância de suas formas e sua força são muito superiores aos espanhóis, e eles consideram a raça européia muito inferior à sua" resume nos seus relatos o explorador Félix de Azara.

Quando em 1864 o exercito paraguaio invadiu Mato Grosso e quis levar os Guaicuru para seu território, a tribo recusou e a maioria morreu de varíola. Assim foi a guerra de seis anos. Os índios ajudaram os brasileiros a fugir para Cuiabá, cruzaram o Rio Apa e atacaram os paraguaios. Dom Pedro II deu um território na Serra da Bodoquena na borda sudoeste do Pantanal aos Kadiwéu em gratidao ao seu auxilio da Guerra do Paraguai. Mas não é suficiente para nós, não foi o que o rei prometeu, dizem Santos e sua esposa.

A guerra terminou no Tratado de Limites de 1872 e os Guaicuru se desintegraram rápido, por causa da mestiçagem intertribal, do alcool e as epidemias de varíola. As últimas décadas do século XIX, foi o tempo do crescimento artístico, da fabricação de cerâmicas e pinturas corporais complexas. Levi-Strauss fez uma coleção de 400 diferentes desenhos. Os assentamentos da época, semissedentários, em cabanas de palha e folhas de palmeira em semicírculo, em locais altos pelas inundações, e os acampamentos temporários de tapiri nas viagens de caça e pesca -contava o avô de Ana Santos-, se somavam aos engenhos e caldeiras para tirar o caldo da cana. Desde então os Kadiwéu fabricam cerâmicas e tecem panos coloridos de lã e algodão, com contas de vidro; e trançam esteiras, leques e outros artigos de junco. Nos anos de 1930 o SPI quis modernizar o povo, juntando-o em aldeias, com casas, escola e farmácia, mas as aldeias eram abandonadas. Em 1935 Levi Strauss os achou morando fora das casas em barracas, fabricando chapéus de palha para vender. O território cedido por Dom Pedro II aos Kadiwéu criou muitos conflitos. Em 1957 fazendeiros soltaram 15 mil cabeças de gado, mas o Supremo Tribunal favoreceu os índios. Mas durante outros 60 anos o SPI alugou as terras dos Kadiwéu e depois as vendeu aos fazendeiros por preços abaixo de 6% do valor. O povo usava só uma fração da terra. Nos 80 a FUNAI não tinha recursos para ajudar o povo. O comércio, ensino e assistência médica contra o sarampo, tuberculose e malária eram das missões evangélicas.

Primo de Ana, o líder Kadiwéu Ambrósio da Silva, acertou em 1985  com os fazendeiros, para pagar aluguel direto aos índios. A FUNAI levantou uma escola e uma clínica em Bodoquena, mas sem suficientes professores e enfermeiros. O povo quis ter uma escola própria com professores Terena, e a Missão Evangélica Unida e a SIL ajudaram a escola e deram assistência médica.

Santos e sua esposa Ana, pedintes sem teto onde morar, vagam pelas ruas de Bonito com as suas memórias embrulhadas nas sacolas pobres com seus escassos pertences.


Javier Villanueva, São Paulo, dezembro de 2018.

Este texto foi preparado a pedido da redação da Revista Nossa América/Nuestra América, do Memorial da América Latina. Acabou não sendo publicado, por isso a demora em oferecé-lo aqui, aos meus leitores.


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