terça-feira, 8 de maio de 2012

A Escadinha e o Metrô. Parte 2.



- O guarda voltou a olhar para mim no dia seguinte, mas a abordagem foi tranquila - conta Luciano.

- Você é filho do Víctor, né?- perguntou o guarda e Luciano respondeu com calma, ainda pensando se o rapaz não teria notado que ele surgira do nada, o melhor, do lado contrario, do que se chama a ponta morta, onde não há escadas rolantes do metrô.

- Sim, sou; e você, de onde o conhece?- devolveu a pergunta Luciano, de olho no trem que estava chegando da otra ponta da plataforma.
- Trabalhamos juntos no Yázigi e no CCAA faz muito tempo atrás, e eu vi vocês dois aqui, semana passada-
-Ah! legal. Ok, olha, outra hora a gente conversa, eu já vou nessa - disse Luciano e pega o metrô, outra vez na direção da praça da Sé.

Durante duas semanas tudo transcorreu na maior calma. Nos dias seguintes, ainda sem se dar conta de que estava deixando de pagar a passagem, mas entusiasmado com a novidade, Luciano continuo descendo pela escadinha da garagem do prédio e pegando o metrô um par de vezes por semana.
Até que uma manhãzinha leu no jornal Metrô News algo que lhe chamou a atenção: as estações Santana e Jardim São Paulo estavam sofrendo um fenômeno estranho de queda abrupta da arrecadação. O fluxo de passageiros não tinha diminuído, pelo contrário; mas a receita nas catracas caira quase um 40% na última quinzena.

Passou o final de semana intranquilo, preocupado com o que lera, e na segunda feira decidiu esquecer o metrô e sair de carro; desceu até o subsolo para entrar na garagem e nessa hora viu o faxineiro do prédio abrindo a portinhola da escadinha para uma fila de umas sete ou oito pessoas. O Zé tinha descoberto a passagem secreta para o metrô e estava explorando no seu benefício. 
Deixou que a fila inteira entrasse, e mais outros quatro que chegaram depois, e quando o Zé se afastou, Luciano abiu a portinhola e se deslizou escadas abaixo. Foi devagar pelo longo corredor; deixou a turma do Zezinho se adiantar bastante, e quando passou frente ao guarda, o rapaz o cumprimentou, distraído. 

A uns dez metros das catracas, uma turma de dez ou mais funcionários, todos vestidos de preto, pediam um passes aos que estavam entrando. Outros oito ou dez homens de uniforme, do outro lado das catracas, distribuíam as senhas aos passageiros, depois de eles comprarem os tickets nas bilheterias.
Luciano entendeu que a brincadeira do Zé -e a travessura dele próprio- tinham ido longe de mais e devia terminar de uma vez. Tentou voltar por onde tinha vindo, pelo longo corredor que levava até a escadinha, mas outro grupo de funcionários bloqueava a passagem.

- Assustado, entrei pelo primeiro corredor que encontrei, à minha direita, me afastando das plataformas e das catracas. Mas foi então que notei que tinha me perdido. Andei uns quinze ou vinte minutos à toa. O celular não tinha sinal e eu não via uma viva alma por perto. Todo o murmúrio das pessoas tinha sumido- conta Luciano, pálido, ainda estremecido pela estranha experiência.

- Passei enfrente a um par de cadeiras e sentei para descansar e colocar a cabeça em ordem. Onde foi que me extraviei?- pensava Luciano. 

Conta Luciano que foi então que um homem velho, alto e magro, vestido com um longo cassaco preto, e um rosto de garoto perverso, chegou e sentou ao seu lado. 
- Tinha o misterioso ancião uns olhos grandes, infantis, muito separados, como os de um novilho; e eram tão oblíquos e diáfanos que bem poderiam ter sido os olhos do diabo - me conta, ainda agitado e tenso, Luciano.

Quando passou a seu lado um cronópio, com uma mangueira amarela enrolada nas costas e cantarolando “que belíssima cidade”, já não demorou mais o Luciano para se dar conta que quem tinha acabado de encontrar, perdido nos túneis do metrô, não podia ser outro que Cortázar, ou então o avô de Cortázar. Luciano conta que lhe aconteceu o mesmo que a aquele escritor peruano, o Bryce Echenique, que acreditou ter  visto o pai ou o avô de Cortázar, porque o argentino não representava nunca mais do que uns 28 anos, e quando por fim foi apresentado a ele, pensou que não, que quem ele tinha  visto antes, na realidade só podia ser o filho de Cortázar. 

- Você é o Luciano, né? perguntou Cortázar ao Luciano, desviando o olhar bovino para que não notara seu cansaço e desencanto – me conta Luciano, e acrescenta que o velho com cara de menino estava feito uma desgraça, sujo e derrotado, uma vez que levava semanas perdido nos túneis do metrô, entre a estação da Luz e o Jardim São Paulo.

- Entrei na boca norte do subterrâneo na estação Federico Lacroze, na Chacarita de Buenos Aires, e tive a péssima idéia de perguntar a um cronópio que ia passando onde deveria descer para ir até a praça do Congresso. Sabe? Faz muito tempo que não venho a Buenos Aires – Luciano explicou que algo muito estranho deveria ter acontecido, porque ele não estava mais na Argentina agora, mas no metrô paulistano; e se ofereceu a leva-lo até o consulado na Avenida Paulista, para ver se lá podiam resolver o seu problema. Mas o Luciano também estava perdido.

A solução veio do modo mais inesperado: um professor de línguas sentou na outra ponta dos bancos. Era um inter-vida e evidentemente dominava abstrações tais como as relações entre o espírito e a consciência, e não demoraram demasiado -Cortázar, um velho professor aposentado e o Luciano, um jovem mestre de idiomas- a se entender com o recém chegado.

 Olha só o que acontece quando você confia demasiado nos cronópios – se queixava Cortázar, e o professor de línguas recém chegado explicava que o problema de ter-se perdido era motivado pelos mesmos cronópios argentinos que tinham traduzido todas as indicações do metrô para o romeno, língua quase desconhecida pelos brasileiros, sobre tudo em São Paulo, onde as pessoas focavam mais no entendimento dos sotaques mineiros e nordestinos, e pouco tempo tinham para andar decifrando os cartazes em língua romena que agora inundavam os túneis intrincados do metrô.

 É verdade – respondia Cortázar ao professor de idiomas, e o Luciano o olhava calado. 
– Já me aconteceu um dia, em Buenos Aires, de encontrar os vagões do subterrâneo cheios de rosas, e os campos da Chacarita cheios de vagões   .

 Sim, e o mesmo fenômeno foi registrado com um olhar certeiro pelo meu amigo Vila-Matas, quem também observou ocasionalmente nas linhas de ônibus da periferia, entre Lomas del Mirador e Ramos Mejía, mais de um motorista contando como um passageiro retrasado no último banco se esfumava, como por arte de mágica, ao virar na curva que era a fronteira virtual entre os mundos urbanos e os restos dos pampas que cercam a cidade de Buenos Aires – divagava Julio Cortázar, e o Luciano olhava disfarçadamente o seu relógio de pulso, porque tinha uma aula antes do meio dia, e não podia se atrasar mais.

Por fim, depois de algumas horas de exaustiva tarefa de tradução do romeno para o português de uns vinte e poucos cartazes, Luciano, Cortázar e o professor de línguas inter-vida, conseguiram sair à superfície, a uns cem metros da estação Parada Inglesa.

O Luciano decidiu voltar para casa, caminhando pela Avenida Nova, e Cortázar e o seu salvador tomaram o rumo da Serra da Cantareira, esquecidos já do tema da ida ao consulado. Falavam sobre os estranhos fenômenos da anulação e o desgaste físico, que muito provavelmente não deveriam ser um produto exclusivo dos vagões do metrô e dos ônibus; opinava o professor inter-vida que o atrito cotidiano nas ruas, seja na frente das vitrines ou na entrada dos cinemas, também poderiam gastar a matéria e concluir com a desaparição periódica de algum pedestre, consumido pela eterna erosão dos anônimos que passam a diário pelas ruas das cidades como São Paulo ou Buenos Aires.

––“Las historias verdaderas se nos mezclan con las de los escritores que nos habitan y siguen su recorrido perfecto, rotundo, perplejo”me disse o ancião escritor antes de se despedir, e eu penso que ele tem razão–– lembra Luciano e entra no seu apartamento. 

FIN. JV, inspirado em uma história verídica –ou baseada em fatos reais- de Luciano Barrionuevo. São Paulo, 8 de maio de 2012.

Nenhum comentário:

Postar um comentário