Muçulmanos,
judeus e cristãos na santa paz
Em tempos
do domínio do Império Romano na região - 200 a. C a 400 d.C.-, a então
província chamada Hispânia era uma das mais florescentes. Os visigodos, um dos últimos povos bárbaros que invadiram o território e se implantaram em torno de 560 d.C.,
porém, foram um fracasso administrativo e quando os muçulmanos chegaram, em 711,
a península vivia um período de total desorganização e dispersão política,
assim como de aridez cultural e tecnológica.
A dinastia
Umayyad promoveu a partir desse momento uma verdadeira mudança nos territórios
conquistados. Os campos foram renovados com a introdução de novas culturas e
técnicas de irrigação. O comércio com o Oriente cresceu, e a arquitetura
conheceu então o seu melhor momento de transformação criativa com a construção da
mesquita de Córdoba; nela, os Umayyads reafirmaram sua tradição de uso e aproveitamento
criativo dos elementos que eram oferecidos pelas culturas locais dominadas.
A mesquita
que Abd al-Rahman levantou em sua nova capital tinha um estilo que lembrava
nostalgicamente à Síria, terra natal do príncipe exilado que ele jamais voltaria
a pisar. Mas também incorporava traços fortes da arquitetura romana e gótica.
Até os arcos de meio ponto, em forma de ferradura, que hoje são considerados
como protótipos islâmicos são na realidade também representativos da
arquitetura da Espanha romana e gótica - dos godos- pré muçulmana.
Mas essa
Espanha ideal, entre os séculos VIII e XV - onde a convivência pacífica entre
cristãos, muçulmanos e judeus criou uma sociedade avançada em plena Europa
medieval, chamada oelos árabes dos “povos do livro” - terminou abruptamente nos mesmos dias em que
Cristóvão Colombo se preparava para partir do Porto de Palos com destino a um
continente que não imaginava que iria a se atravessar no seu caminho às Índias.
Nesses
meses, um número enorme de pessoas chamadas de “sefaraditas” ou “sefardis”
(nome hebreu que davam a si mesmos os moradores judeus da Hispânia) corria em desespero
aos portos do sul da península em busca dos navios que os levariam a destinos
quase tão incertos como os do navegante italiano ao serviço da coroa
espanhola.
Os judeus
da Espanha – ou de Sefarad, como eles chamavam a nação em formação – ficaram
obrigados nesses dias, por meio de um decreto real (na realidade fala-se de
três decretos, um de Isabel de Castela, outro de Fernando de Aragão, e um
terceiro de ambos os monarcas), a escolher entre a conversão à “verdadeira fé’’
católica ou partir para o exílio.
O ano de
1492, que aparece marcado nos calendários como o da descoberta da América, representa também para os judeus da Espanha um triste
marco final. Isabel e Fernando, os mesmos monarcas que patrocinaram o marinho
genovês Cristóvão Colombo para encontrar uma rota alternativa para o Extremo Oriente, também
cortaram de vez uma das mais ricas experiências culturais e de tolerância
religiosa na história do ocidente.
O livro
"O ornamento do mundo – como muçulmanos, judeus e cristãos criaram uma
cultura de tolerância na Espanha medieval", de María Rosa Menocal,
detalha essa época crítica e fascinante e a reconstroi com saborosa precisão.
Professora
de literatura espanhola e portuguesa na Universidade de Yale, onde dirige o
Centro de Humanidades Whitney, María Rosa Menocal possui uma obra vasta
que inclui estudos que tratam da influência árabe sobre a cultura medieval europeia.
"O
ornamento do mundo" foi escrito com o objetivo de fazer mais acessível
ao leigo o mundo das suas pesquisas acadêmicas. A leitura leva o leitor ao
conturbado país conquistado pelos muçulmanos no que naquela época era o extremo
desconhecido da Europa Ocidental – o Finis Terrae-, durante a Idade Média. Um
mundo que teve tristes episódios de obscurantismo religioso e de forte intolerância
racial fundamentalista, mas que também brilhou de um modo ímpar nos claustros
da cultura e das ciências facilitados pelos árabes ibéricos.
É que a
Idade Média, sobretudo no território da Espanha atual, não se resume a senhores feudais, pestes mortais e cruzadas fundamentalistas. A Espanha islâmica –
chamada de al-Andalus em árabe, o que dá o nome da região sul do país,
Andaluzia – era a vanguarda cultural e científica da Europa na época. Sobretudo, era um
espaço de convivência pacífica e de intercâmbio criativo entre as três grandes
religiões monoteístas, o islamismo, cristianismo e judaísmo.
Para
melhor definir a Espanha medieval, a autora utiliza uma caracterização do
escritor estadunidense F. Scott Fitzgerald, o romancista autor de "O
Grande Gatsby", que escreveu que “o teste de uma inteligência de vanguarda
é a habilidade de ter em mente duas ideias opostas ao mesmo tempo”. Al-Andalus
teria sido, portanto, um “lugar de vanguarda”, que conseguiu conjugar não só
duas, mas várias ideias que até hoje se mostram aparentemente em conflito.
Um
exemplo é a combinação sincrética de estilos arquitetônicos do período de
dominação árabe na Espanha. Os palácios construídos por monarcas cristãos, como
o Alcazar (do árabe para palácio, "al-qasr"), de Sevilha, erguido por
Pedro o Cruel, no século XIV, mostram a influência da arquitetura e da
decoração muçulmanas, com os arabescos e arcos de meio ponto característicos.
Na mesma época, uma sinagoga levantada em Toledo, e transformada no convento de
Santa Maria La Blanca depois da expulsão dos judeus, tinha seu interior
decorado com frases em língua árabe, algumas delas extraídas do Al Corão, o
livro sagrado do islamismo. Mas esses são exemplos tardios, já próximos do
ocaso de al-Andaluz.
A saga do
sincretismo cultural começou muito antes, já no século VIII. Em 711, os
primeiros muçulmanos atravessaram o estreito de Gibraltar e entraram com
relativa facilidade no território até então dominado pelos visigodos, povo
germânico que saqueou Roma em 410. Teriam ido ainda mais longe, se não fossem
detidos pelos francos, ao norte dos Pirineus – lembrar do mordomo que, a falta
de um rei, parou sozinho na longa batalha de Poitiers em 732 a tentativa das
tropas árabes-. O domínio muçulmano concentrou-se na península ibérica, que ainda
assim, nunca chegou a ser completamente islâmica, já que algumas regiões mais
agrestes ao norte e noroeste montanhoso permaneceram baixo o domínio cristão.
Em 755 chega
a al-Andalus Abd al-Rahman I, que era o único sobrevivente da família Umayyad,
que até então ocupava o califado – o reinado político-militar e espiritual
sobre o mundo muçulmano. Os Umayyads haviam sido depostos e ainda assassinados
pela dinastia dos Abbasids, que em seguida levaram o califado para o leste, de
Damasco para Bagdá. Abd al-Rahman estabeleceu seu reinado em Córdoba, onde
depôs o emir governador provincial. O al-Andalus permaneceu como o emirado mais
ocidental do gigantesco império islâmico, embora que a autoridade dos Abbasids
não se fizesse ouvir no leste, onde realmente estava o centro do poder
islamita.
Continuará.
JV. São paulo, 22 de abril de 2018.
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