quinta-feira, 11 de junho de 2020

Crônica de um Genocidio anunciado em dois atos. A tragédia. 3ª parte. O desenlace.




Crônica de um Genocidio anunciado em dois atos.
A tragédia.
3ª parte. O desenlace.

O capitãozinho se considerava um atleta desde antes de entrar na academia militar, ainda no ginâsio: campeão de cuspe à distância, arrotos depois do almoço e concursos de ventosidades, além dos campeonatos de punheta livre, claro. Quando não levava medalha de ouro era prata, sempre.

Mas algo faltava na sua vida, e mesmo depois de ser expulso da corporação que tanto amava por insubordinação, ainda sonhava com ser um ditador fardado. Até que um dia aconteceu, de tanto chamar com extremo afinco o Satanás para pedir ajuda, que o Mau decidiu aparecer-lhe ao anoitecer, na solidão do seu quarto, bem na hora em que praticava sua sesão de fantasias guerreiras.

–– Eu posso te ajudar a resolver esses problemas todos que você tem, e a alcançar teus objetivos; rápido, muito rápido- trovejou a voz cavernosa, a poucos centímetros atrás do capitão-deputado. Valente, decidido, treinado para as duras batalhas contra as hordas populares e os prisioneiros amarrados, o futuro Pequeno Ditador escondeu bravamente seu pavor. 
Lúcifer nem notou a gota de suor frio que desceu pelo pescoço e humideceu a camisa branca, nem a poça amarelada que se formou no chão quando o capitão-deputado girou o corpo e o encarou com toda a firmeza marcial e o frio olhar de guerreiro que treinava a diário em frente ao espelho.

–– E quem é você? E o que vem me ofrecer assim, do nada? Eu o conheço?- tinha esquecido o capitãozinho-deputado da primeira aparição do Diabo na sua vida. Na realidade sempre pensou que tivesse se tratado de um mal sonho, algo a ser esquecido, um pesadelo indigno e nada mais.

–– Não se faz de macho comigo, que aqui quem manda sou eu, e eu mesmo faço as perguntas- respondeu num rugido feroz o Mau, enquanto que o levantava, mas uma vez, pelo pescoço até a altura do batente da porta do dormitório e lhe deixava a farda toda amassada e a gravata torta, afundando o orgulhoso capitãozinho no mais profundo rancor. Vermelho de vergonha e de ódio, pede o futuro Pequeno Ditador ao Diabo que lhe faça a sua proposta e que, por favor, o ponha outra vez no chão. 

–– Ok, vou te deixar baixar e pensar. Não demore demasiado. Vou te fazer uma oferta que não vai poder recusar. Mas não vai esquecer jamais, aqui quem dá as ordens sou eu- diz o Diablo e põe lentamente no chão o capitãozinho-deputado, que trata de se refazer, envergonhado mas aliviado porque comprova que não há testemunhas. Ninguém o viu, e sua imagen de militar reto, valente e decidido não sofrerá recortes, nem poderá ser manchada a sua honra pelo humilhante incidente.

–– Sou tudo ouvidos- diz com firme voz de mando, recordando a máxima preferida da sua brilhante, contudo curta, carreira militar: “subordinação e valor”...para servir à pàtria.

–– Vou a dar a você poder de mando. Todas as tropas da nação e seus grupos paramilitares, milicianos e parapoliciais. Além do mais, vou te presentear com o medo e a subservência de todos os políticos e caciques corruptos ou a serem corrompidos; bispos e pastores beija-mãos e cardeais genuflexos, gerentes e diretores de grandes empresas nacionais e de respetáveis oligopolios; jornalistas puxa-sacos e apresentadoras de programas do meio-dia; escritores que nunca verão um prêmio Nobel e, é claro,...até o mesmíssimo STF e o congresso, com os seus mafiosos arrogantes e ambiciosos. Todos vão te obedecer e temer- tirou o Demo um cigarro acesso do bolso e deu uma chupada longa e fedida, jogando devagarzinho toda a fumaça na cara do apavorado capitãozinho-deputado.

–– Mas exactamente daqui a quinze anos e uns poucos meses vou voltar para te levar- rugiu o Diablo, cobrindo-o com uma nuvem azulada de enxofre, e o capitão-deputado teve que fazer um enorme esforço para mantener firme os esfíncteres e não sujar de vez as calças da sua amada farda.

–– Aceito. Sim, subordinação e valor, para servir à pàtria- disse com voz firme e marcial o futuro Pequeno Ditador, já quase se imaginando na pele do Genocida que sempre sonhou ser; e sorriu com seu melhor sorriso de saruê, pensando nas glorias do futuro, e esquecendo por um momento dos problemas que seus filhinhos mimados lhe causavam, se concentrando apenas na pátria que dentro de muito pouco iria comandar com mão de ferro. Passou a mão pela testa, afastando a nuvem da incômoda lembrança e se concentrou no que interessava: o poder. Poder total e absoluto.

–– Daqui a quinze anos, e mais sete ou oito meses vou passar para te levar e cobrar tua dívida comigo. Não vai esquecer nunva: você é incoerente, grosso, contraditório e pusilânime; o que na linguagem popular se chama de cagão. Isso, você é um cagão, um inepto, um ignorante e um energúmeno. Mas vai servir direitinho aos meus designios. E lembra também, capitãozinho de meia tigela- largou sem pena o Diablo ao Pequeno Dictador, sem ninhuma ceremonia nem o menor respeito- lembra como é que vou voltar; eu sempre chego pelos esgotos, assim que vai me deixando o caminho livre.

Final

A enfermeira entrou na cela  viu a cama vazia. A porta do banheiro, entreaberta, deixava ver o corpo do ancião, sentado no seu penico, com a cabeça apoiada nos joelhos e a calça do pijama caído até os pés.
Desde o vão da porta a enfermeira viu, atônita, que a pele do ancião ex-ditador estava oescura, quartejada e seca como a de uma mumia. Imaginou em seguida que o velho ditador preso estivesse passando mal. Fue acercándose devagar ao penico e tocou no ombro com cuidado.

O que aconteceu então, nunca mais vai sair da memoria de Flor, a jovem enfermeira do sistema carcelário que recém havia começado a servir na penitenciária conhecida como Cadeia Pública Vidal Pessoa, de Manaus, no Amazonas, onde o ancião cumpria uma condena a prisão perpétua. 
Apenas apoiou a mão direita no ombro do ex-ditador, o corpo todo do prisioneiro se desfez, desintegrando-se em pouco menos de três ou quatro segundos. Uma nuvem de pó, fino como o talco, se levantou em direção à janelinha estreita do banheiro da celda.

Menos de um quilo de pequenos escombros –segundo a perícia policial e médica- sobrou em torno do penico. Esse era o triste fim del tiranozinho que tentou inaugurar uma dictadura que durante dois años, de 2019 a 2021, aterrorizou o povo brasileiro, permitindo que mais de 75 mil pessoas morressem sem a mínima assistência e solidariedade ou mera empatia da sua parte.

O Pequeno Ditador, o Grande Genocida, que nunca havia sentido a mínima empatia pelo seu povo, mesmo morrendo de a milhares, como numa guerra, no ápice da sua soberba decidiu um dia de agosto de 2020 viajar aos EUA visitar seu grande ídolo, Trump, antes que fosse derrotado nas urnas pelos democratas. 
Depois de uma espera de quase uma hora e quinze, sem café nem água numa salinha secundária da Casa Branca, e assim que lançou seu tradicional "I love you, Trump" para o mandatário norte-americano, dois oficias da Interpol lhe deram voz de prisão. O Juiz Baltazar Garzón, espanhol estabelecido na Argentina, tinha conseguido que o Tribunal Internacional de Haia o julgasse por crimes de lesa humanidade.
O julgamento foi rápido e definitivo, e a condena clara e unánime: cadeia perpétua no estado que mais tinha sofrido pelo descaso do Pequeno Ditador, a Amazônia.

Quinze anos depois, o Diabo cobrou sua dívida. E foi justiça.

JV. San fernando del Valle de Catamarca. Agosto de 2020.


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