sábado, 27 de junho de 2020

Ressuscita-me.

Resultado de imagen para indios habitantes de la patagonia ...


Ressuscita-me
Os dois primeiros impactos foram no ombro e no antebraço esquerdos. Foram de raspão e não sentiu muita dor. O braço direito segurava bem a metralhadora e descarregou um pente inteiro contra as sombras, apoiado numa árvore grossa.
O terceiro impacto foi no peito. Mas nem ouviu o barulho do tiro porque ficou surdo de repente. As luzes de dois holofotes se acenderam, deixando esse pedaço da floresta de um branco leitoso que não permitiam sentir a dor, nem pensar em mais nada.
Se deixou deslizar pra baixo e por atrás do tronco, e aí começou a viagem:
- Isso mesmo foi o que escrevi amanhã de manhã, repetia. Foi isso, sim, porque já tinha pensado nisso várias vezes o ano que vem. E se lembrava de Johnny, o personagem de Cortázar em "O Perseguidor", aquele que tocava o sax: -Já toquei isso amanhã, repetia Johnny, que dizia ter descoberto algo que ele -Juancito, agora no meio do tiroteio-, já sabia bem antes que Cortázar, que o tempo é elástico e tem rugas; o tempo tem uma quarta dimensão com dobras, e às vezes o passado se junta numa curva com o futuro, e então se produzem alterações que podem ser fatais.
E enquanto Juan caia e as luzes se aproximavam mais dele, e já ouvia as botas quebrando galhos secos a menos de cem metros, viu a tia Gringa cevando um mate doce e don Samuel oferecendo-lhe pão caseiro, e por fim chegaram as botas e sentiu o frio gelado da ponta de uma pistola apertando-lhe a témpora, e um estouro que esparramou suas ideias e lembranças pela floresta fria, e seus sonhos se espalharam entre as árvores, sua imaginação semeou as folhas amareladas e os cogumelos, seus melhores desejos de paz e amor viraram pó de estrelas que cobriram a relva entre as plantas, e suas fantasias lhe trouxeram de volta a Roberta, seu amor inconcluso, seu sonho recorrente.
Foram embora as fardas e as botas, mas antes soou uma voz marcial mandando cavar uma fossa e largar o corpo aí mesmo, que não se merece mais nada esse vermelho de merda.
Mas os pensamentos se rejuntavam aos pouco; as ideias refloresciam entre as árvores; a fantasia tomava corpo em meio aos pássaros selvagens
E lembrou direitinho de suas aulas de botânica e zoologia no Colégio Dean Funes, e do professor Rodríguez, que contava que, mesmo num território pequeno, o menor da Argentina, a província de Tucumán com menos de 1% da superfície do país, habitam nela mais de 50% da avifauna nacional, numa rica gama de ambientes, que vão das paisagens secas chaqueñas até a selva húmeda subtropical e da planície até alturas superiores aos 5000 metros.
Lembrou Juancito de cada aula, das suas notas nas provas, e do nome de cada pássaro que agora recolhia suas fantasias, e de cada bichinho que pegava seus pensamentos, seus ideiais e convicções mais profundas. E voavam as aves yungueñas, a paloma nuca branca, os guacamayos, o chiripepe da Yunga, o loro alisero, o picaflor de testa azul, o pijui alaranjado, e o mirlo das águas.
Alguns mamíferos das Yungas tucumanas corriam, levando cada um uma bandeira vermelha, voava alto o morcego hocicudo, o esquilo vermelho "nuecero", o agutí avermelhado, o cuis serrano e o huemul do norte. E numa manifestação barulhenta se juntavam às mulheres e homens do povo, aos índios e mestiços, aos netos e bisnetos de negros escravizados na cana de açúcar, aos netos e bisnetos dos Mapuches e Tehuelches roubados dos seus pais mortos na Patagônia, na chamada Conquista do "Deserto" e levados para cortar cana em Tucumán.
E dentre esses espíritos de carne e osso, apareceu seu bisavô José Jaime, filho de Mapuches e neto de Tehuelches, homem macho e educado, forte e gentil, capaz de quebrar o queixo de um atrevido que tentou se fazer de engraçadinho com a professora da escola de Piedra Blanca.
Apareceu o velho índio e lhe deu a mão, levantou o corpo sujo e ensanguentado de Juan e o limpou com toda a paciência. E Juancito, que também pensava e sonhava em português, em espanhol e em russo, começou a cantarolar baixinho, sem pressa: 

"Ressuscita-me
Ainda que mais não seja
Por que sou poeta
E ansiava o futuro
Ressuscita-me
Lutando contra as misérias
Do cotidiano
Ressuscita-me por isso
Ressuscita-me
Quero acabar de viver o que me cabe
Minha vida
Para que não mais existam
Amores servis
Ressuscita-me
Para que ninguém mais tenha
De sacrificar-se
Por uma casa, um buraco
Ressuscita-me
Para que a partir de hoje
A partir de hoje
A família se transforme
E o pai seja pelo menos o universo
E a mãe seja no mínimo a Terra
A Terra, a Terra"

J.V. San Miguel de Tucumán, agosto de 2024.
Minha humilde homenagem ao primo Jorgito Bustos e a tantos companheiros, certos ou equivocados, caídos em combate na luta revolucionária. E aos milhares de Tehuelches, Pampas, Mapuches e Ranqueles, que tiveram suas terras roubadas pelo exército argentino, seus chefes mortos, e seus filhos sequestrados e escravizados em 1879.

Nenhum comentário:

Postar um comentário