sábado, 16 de julho de 2011

Os ETs e o ouro que nos deixaram, sem querer





Don Rodrigo:
Al conocer sus tesoros
despertó mi idea fija
y al final cambiamos oro
por baratijas.
Narrador:
¡Oro por baratijas! ¡qué abuso! ¡qué trueque tan desigual!
después del canje don Rodrigo guardó en un cofre
lo que había obtenido: montañas... de baratijas.
Don Rodrigo:
¡Tramposos! ¡Aprovechadores! ¡devolved el oro!
Nativos:
¡Minga! ¡Minga!           
(Cantata del Adelantado D. Rodrigo Díaz de Carreras, Les Luthiers)



Paris era uma festa!, e Madri, uma graça


Tem quem pense que se trata de outra das minhas histórias, uma crônica inverossímil dessas que às vezes gosto de escrevinhar.


Os amigos que não souberam dos fatos na época, até pensam que são mentiras deslavadas, apenas para chamar a atenção deles ou diverti-los um pouco—se queixa meu amigo o livreiro.
Mas não, juro que é a mais pura verdade— insiste.


O livreriro me conta que aconteceu quase onze anos atrás. —Nós já conhecíamos os espanhóis e, tirando um o outro episódio surrealista, a relação era até boa— diz. 
Conta que eram jovens e mais ingênuos; achavam que desde a meseta central -lá na altiva Ibéria- podiam até curtir alguma simpatia sincera pelos empreendedores sul-americanos.

Engano nosso: fidelidade sim, afeto pouco, amor nada— me confessa Anibal.


—-Mas enquanto a relação comercial ficou só com os da península, num clima de muitas transações alfandegárias, viagens de montão, e com uma moeda brasileira mais forte que a peseta- o simulacro de amizade corria solto— segue a história o meu amigo.


Ao final das contas, nós éramos pioneiros, desbravadores, abrindo caminhos ignorados até então pelo Grupo. Grupo, groupe? O que é isso? O que era isso que tanto soava e se parecia com engrupir?— me olha com perplexidade meu amigo. 
Sei lá, alguma confraria ignota e exótica, algo além dos Pirineus que em nada poderia afetar a amizade, o grande afeto, o quase amor entre brasileiros-argentinos e espanhóis, tão longe dos galos, tão perto de Deus—. 

Vamos, conta o livreiro, e dá-lhe a vender muitos livros, e ficar cada dia mais amigos, mais afetuosos, quase amantes corporativos. Corporativos? —Mais que corporação se o nosso corpinho era tão pequeno, tão latino-americanamente esquálido, tão sudacamente frágil?— ri o livreiro só de lembrar.


E de repente, pra lá dos Pirineus as nuvens começaram a ficar escuras, e o apetite dos galos ficou voraz: integra-te ou te devoro
—Não, obrigado. Não desejo me integrar. 
Groupe c'est le groupe, c'est la vie: y ya pá dentro y sin piar. 
—Ok, tá, vamos pra dentro do grupo, e o que é groupe mesmo? 
Nada, nada, só pequenas formalidades, tudo vai continuar igual, nós amigos: espanhóis e sudacas somos e seremos sempre um só coração; e eles, os gauleses à parte.


E de repente, como nas poesias de Neruda, bombas: um galinho (isto é, um galo pequeno, um gaulês baixinho) ruivo e branco como a coalhada desembarca assim, do nada, como quem não quer. 

Já conviveram com um ET alguma vez?— pergunta meu amigo, o livreiro. A sensação é semelhante: formas parecidas às dos humanos, uma língua quase igual, fácil de ser entendida e se fazer compreender. Mas algo não funciona: as piadas que eu acho engraçadas, o ET gaulês não entende. 
Enquanto isso, ele morre de rir de coisas que a mim me causam dor, insegurança, tristeza, ou apreensão.


Sei lá, deve ser coisa de caipira: ETs e sudacas somos todos iguais, né? Mas, ao final das contas e pelo menos, sempre seremos amigos dos da meseta central, não é? Os ibéricos são legaizinhos, né? 
E isso é bom, reconforta: eles, que saíram há três décadas da ditadura, da fome e do desarraigo da emigração já não se lembram, não sabem o que é inflação, dívida externa, crise social, governo petista, e essas coisas cafonas de sudaca mal adaptado ao mundo moderno. Eles podem até ter vindo junto a outros milhares, expulsos pela fome e o desemprego, mas agora são Primeiro Mundo. Uma democracia "à francesa", assim ordenada, organizada e progressista, onde cada pobre sabe qual é o seu lugar. 
Mas, sobretudo, isso sim, os ibéricos se põem em paridade com aqueles galos esquisitos de além dos Pirineus e eles, que falam a nossa mesma língua, se sentem bem à vontade, e até nos fazem sentir bem seguros no âmbito europeu: somos do Primeiro Mundo!! Mesmo que daqui a dez anos a bolha estoure, o desemprego vá para 40% entre os jovens e os velhos tenham que pegar a picareta e a pá até os 70 anos para sustentar a europeidade.


Bom, mas nós não nos deslumbramos— diz me amigo o livreiro e muda o tom. Europa é linda, Madri uma graça, Paris uma festa que nem se fala. Mas o capitalismo voraz é tão deselegante lá como na terra do Bush; e tão nefasto quanto as selvagerias das oligarquias sudacas. 

Nós não nos deslumbramos e nos preparamos. Enquanto na Argentina os estilhaços da política de um senhor, carnalmente unido ao capital e às ordens vindas do extremo norte afundava o país, no Brasil as propostas mais realistas dos socialdemocratas e dos socialistas da estrela vermelha -que assustavam aos gauleses e castelhanos- já começavam a dar frutos suculentos de prosperidade e estabilidade.


E de repente as bombas: como pode ser que se o Euro antes custava dois Reais e agora custa quatro, vocês decidam comprar a metade do que compravam antes? 
Bom, nas aulas de matemática, anos atrás eu aprendi que, se meu dinheirinho de sudaca agora vale metade do que valia antes, dificilmente vou poder comprar mais da metade do que costumava comprar. Fácil de entender, não?—.

—Não, não quero entender! Quero que comprem igual que antes, no mínimo!

—Não posso, desculpe, mas não dá pra fazer milagre.


Chega, a amizade acabou!— ecoavam por trás dos Pirineus os brados indignados -não, não essa Indignação de agora, não; outra, de signo inverso: vender, vender e cair fora rápido antes que cheguem ao Brasil os bárbaros barbados (Lula?, a estrela do socialismo que vai trazer desenvolvimento e estabilidade sem assustar demasiado ao grande capital?)
—Sim, esses mesmos barbudos. —Mas eu me assusto e quero ir embora, voltar para segurança do Euro e da democracia gaulesa. Quero vender!! Vão comprar??

—Não, obrigado, merci monsieur, no gracias, che loco, não queremos comprar nada não, assim estamos bem.

—Cooooomo assim? Não querem comprar? Que ousadia é essa? Vão perder tudo, seus subdesenvolvidos; ou compram agora, já!, ou quebramos vocês!!


E por trás das vozes gaulesas, que tristeza!, um certo sotaque da meseta central, um estranho e infiel acento castelhano. 
Vamos, alé, alé, pra fora do nosso Groupe! Já!—. E assim terminou tudo.


Mas não foi sem graça nem paradas cômicas; pelo contrário: o ET-gaulês experimentando comida japonesa no bairro da Liberdade à sua chegada em São Paulo, por exemplo, foi digno de ser visto: achou que a raiz forte fosse uma frutinha, e mandou fundo goela abaixo, ficando vermelho, verde cor raiz forte, lilás e alaranjado, tudo numa sequência rápida e fantástica. 
A mulher e a filha riam sem parar, enquanto nós, os sudacas, mais acostumados à solidariedade e à compaixão, nos desesperávamos de ver o gaulês-ET se afogando, esgoelando, esticando o biquinho para colher o máximo de ar possível, bebendo quantas coca-colas e águas havia à mesa. 

E semanas depois -quando o Big-Boss, gaulês também, mas passado por Harvard, se preparava para cortar o branco e avermelhado pescoçinho do ET- chegando de surpresa a São Paulo para avaliar como estava indo a recente aquisição do group, o ET não tem melhor ideia que convidar todo mundo, chefão, castelhanos e sudacas, a uma graciosa velada em casa, bem tarde, quando o fragor da vida corporativa poderia começar a dar uma trégua breve aos corpinhos dos humanos que lutam e se digladiam a favor de um Real que já não consegue comprar tudo o que o poderoso Euro quer vender-lhe. 
A velada vai bem, obrigado, até que a esposa do ET –ela não-gaulesa, africana das colônias- começa a rir à toa, do além, sem que nada justifique o ataque de hilaridade; o chefão olha pro Etezinho, como que exigindo uma explicação; celtiberos e ameríndios entrecruzam olhares assustados, risadinhas maldosas e mal contidas...ao final das contas seguimos sendo aliados, não é não, chefa? Nada, a mulher do ET-gaulezinho não pára de rir, racha o bico, e o Etezinho mais vermelho, mais verde que raiz forte, sua, sorri amarelo, tosse e tenta se desculpar misturando o francês, o inglês e o espanhol numa explicação insólita, que ninguém entende nem quer entender. E por fim convida: vamos nos sentar na sala? São quase 23:45 e o Big-Boss olha com fina e galaica ironia o relógio e diz: não vai querer tocar piano, não é? Sinal de que a velada tinha acabado.


Bom é lembrar que, horas antes disto tudo, em meio ao fragor das lides corporativas, o ET tinha querido entrar no carro da diretora que, é lógico, só podia levar o Big-Boss no banco da carona, deixando o humilde banco traseiro para o Etezinho. A má sorte do pequeno galo fez com que deixasse esquecida sua minúscula mãozinha branca bem na hora em que o grande chefão batia com ímpeto gaulês a enorme porta –também gaulesa- do Berlingó corporativo.


Coitado, a vida das grandes corporações, sobre tudo quando os grands groupes engolem as pequenas empresinhas familiares brasileiras, não é para qualquer Etezinho frágil. O pequeno etezinho galo logo fica doente, e é chamado de volta para a beleza parisina e defenestrado sem dor. E em seguida, como num pesadelo galaico-peninsular, a lo Un chien andalou, segue a sequência de palestras, balancetes, edições, vendas e reuniões sem fim, que se misturam a mais reuniões, balancetes, vendas, edições e palestras, numa voragine sem limite: vender é mais importante que editar, balancetes mais importantes ainda que as palestras, e as reuniões importantíssimas, mais urgentes que todo o anterior. 
E assim, aos poucos, o mundo vira de ponta cabeça, até que chegamos no final antes relatado: os gauleses querem vender logo e cair fora; vocês comprariam? —Não obrigado. —Então caiam fora! Rocambolesque.


Bom, mas fazendo os balanços necessários depois de oito longos, felizes e produtivos anos -sem gauleses, ETs, nem amigos que pareciam que eram, mas não eram- nada foi tão trágico assim, e sim bastante cômico, tanto quanto os pequenos lances acima detalhados. 

Casamento é bom enquanto dura, mas casório por interesse é melhor quando termina em divorcio. 
E não posso deixar de lembrar com carinho os índios da Cantata del Adelantado D. Rodrigo Díaz de Carreras, de Les Luthiers: índios malvados, devolvam o ouro e peguem os seus espelhinhos, espejuelos y baratijas, que o roteiro era outro: nós, conquistadores é que deveríamos sair ganhando, e não com as mãos abanando.


O ET coitadinho, não estava só; todos eram extra-terrestres, fora do seu hábitat europeu, acostumados a ganhar sempre, como nas antigas colônias na África. Pobres, sofrendo em seus países agora, dez anos depois, as mesmas malezas que os sudacas padecíamos por aqueles anos. 
Mas erraram ao pensar que nestas terras tudo seria fácil. Não é, a América segue exigindo trabalho duro, honesto, sem trapaças. 
Terra rica em que semeando, honestamente, tudo floresce. Vivendo e aprendendo. Nunca entenderam o Brasil: tentaram levar o ouro, mas o ouro da experiência que nos deixaram foi mais rico, mais valioso. E até que foi divertido. Obrigado! Obrigados, ETs!

JV. São Paulo, feveriro de 2012.

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