sábado, 19 de outubro de 2013

O roubo da jóia dos Romanov



Quem olhasse para mim, um senhor de meia-idade sentado num banco contemplando com tranqüilidade e um olhar absorto o infinito, neste magnífico lugar que é o Horto Florestal da zona norte paulistana, dificilmente saberia que até uns quarenta anos atrás, sem idéia de todas as sensações que uma atípica vida ainda trariam,  corria diariamente por mais de uma hora.  Havia já muito tempo que aquele tipo inocente de preocupação estética e de bem-estar de vida alcançável pelo cansaço foi dando lugar a uma postura sedento-filosófica, e este abdômen saliente foi deliberada e decididamente ganho através de anos levando a vida de forma displicente e alimentação auto-destrutiva, realizando apenas exercícios mentais, exercícios estes, alias, que insisto em executar até hoje, e de uma forma cada vez mais abstrata, como agora a pouco quando vinha me sentar neste banco e conclui, ao passar por trás de uma mãe fotografando sua filhinha, que naquela janela do tempo e de todo o entorno físico visível ou não, que acabava de ser congelado naquele momento, eu também fora capturado, embora estivesse fora do foco principal, pelo detalhe de estar atrás da câmera, imortalizado por aquela fotografia, refleti que em breve ela seria vista,  por centenas, talvez milhares de pessoas que sequer me conhecem, pelos anos afora e  talvez, algum dia venha a ter contato com alguma dessas pessoas sem que nenhum de nos saiba que já nos conhecemos por meio da contemplação daquela janela temporal... indo o pensamento então para a intrigante questão de perduração do tempo e sua correlação com a matéria, como a insignificância que pode ter um pedaço de papel comum, que quase com a mais absoluta certeza duraria poucas semanas após ser produzido, terminando em algum cesto de lixo e sendo reciclado (se tivesse sorte), mas poderia, em contrapartida, se possuísse em sua superfície esse maravilhoso registro de um instante exato e irrepetivel do tempo e do espaço (e de todo o entorno físico, visível ou não...) ter o fantástico direito de ser preservado por um período que pode superar não apenas o tempo que me resta de vida (que se analisado logicamente não pode nunca ser muito,  já que estou com 68) mas também o tempo de vida de meus filhos e netos.

-Quinze, Meidão!!!- o grito entusiasmado e impetuoso me arrebata de meus devaneios e me traz de volta ao planeta. Era mais uma volta que Rodrigo, meu neto, o Guigo, dava ao parque.
             Bem, eu sou Almeida, atualmente pouca gente ouviu falar em mim, mas fui um dos maiores detetives de São Paulo.
            A polícia deve o desvendamento de dezenas de casos ao detetive Almeida. Foram vinte e cinco anos dedicados a investigação até aquele episódio que me rendeu o melhor pagamento que já tivera como também a decisão de abandonar a carreira.

            Fora um erro de cálculo, achei que aquele dinheiro, se bem administrado, seria o suficiente para todo o tempo que me restasse, mas sobrou muito mais tempo depois do fim do dinheiro.
            Estive em muitos países, alguns por anos, outros por apenas alguns dias, quis ser escritor e insisti nessa idéia por mais de quinze anos, onde inclusive posso afirmar tive alguns momentos de gratificação, especialmente por concluir que se pode praticamente tudo aquilo que nos propomos realizar, desde que a vontade venha unida à um certo grau de teimosa insistência. Realmente o fator mais limitante é o tempo que nos é dado, que diga-se de passagem, é curtíssimo, mas talvez isso aconteça para que aprendamos o valor das coisas, e principalmente, o de nossas escolhas. 

             Passada essa fase de febre literária, que me manteve ocupado e distraído, ou melhor dizendo, tentando não aceitar o que sempre soube, a verdade, que a única função que me dá a sensação de focar toda minha energia de vida e onde verdadeira e unicamente sinto o maior rendimento de minha intelectualidade, é a investigação. É um dom que tentei renegar muito tempo, não queria passar mais por situações como as que tantas vezes ocorreram no passado, mas no íntimo, todos nós sabemos que o que tem que ser feito assim deve ser, e não podemos nos esconder de nós mesmos, do que somos, por muito tempo, logo sabia que agora estava chegando o momento de eclodir para minha nova fase, onde voltaria a ser eu mesmo, fase que durará ate quando, eu achar que estou deixando de ser eu novamente.
A vibração no meu bolso me tira de minhas conclusões de vida.

- Alô? Sim, é o Almeida... Como é?


Saí do parque no meu carro enquanto pensava na estranheza de tudo aquilo. Mais uma vez meu instinto, intuição, telepatia ou seja lá qual das dezenas de nomes que já deram a essa capacidade que tenho de prever fatos me avisou que estava próximo a um novo caso e da volta à ativa, mas estava muito mais próximo do que pensava. Também não poderia nunca imaginar que se trataria de um velho amigo sendo acusado de um crime.

O Pereira, que tinha colaborado comigo em diversos casos no passado, pessoa de um caráter admirável e que amava sua profissão de policial, mas que teve de dar baixa após ter levado um tiro no joelho, neste momento estava detido sob sérias suspeitas de ter cometido um roubo de uma valiosa jóia na joalheria onde trabalhava como segurança havia doze anos. O delegado Rosa, também conhecido meu de minha outra época de investigações (que já ficou algumas dezenas de anos para atrás), me ligou me perguntando se ainda estava em atividade -o que respondi prontamente que sim-, e me pediu que fosse até a delegacia, na mesma à qual ele já é delegado ha mais de quarenta e cinco anos, local onde se encontrava detido Pereira.
           
             
            - Boa tarde, delegado Rosa.
            - Almeida! Meu Deus quanto tempo uns vinte e... está diferente... por onde esteve?
-  Paulo, colega, realmente faz muito tempo...e estive por tantos lugares desde então que mesmo se me lembrasse de todos não gastaria seu tempo descrevendo-os, já que você, como pessoa inteligente que é sabe que as lembranças dificilmente tem valor para mais alguém além de para quem as viveu...mas você está muito bem, esta delegacia deveria ter o seu nome... mas me diga, como pode Pereira estar envolvido em algo assim?          
- É... entrei em contato inclusive porque você foi uma das primeiras pessoas que ele pediu pra falar, disse que você poderia provar a sua inocência, que tinha certeza disso.
            - E onde ele está agora?
            - Na sala de interrogatório.
         
Entramos em uma sala escura na qual podíamos ver o Pereira na sala bem iluminada contígua através de um espelho translúcido para apenas um lado. Ele estava sentado e em uma mesa à sua frente havia algumas fotos da cena do roubo e reproduções de digitais suas achadas no local.

         
O delegado Rosa me explicou que, nas circunstâncias do caso, o único suspeito era o Pereira.
            
A joalheria onde o crime aconteceu, a que Pereira trabalha, fica na Av. São João e é uma das mais importantes do país, e a jóia que foi levada pertencera a um czar russo do inicio do século vinte. Ele seria exposto no museu de uma importante faculdade em uma mostra com inicio marcado para hoje. A joalheria intermediou a exposição e assumira a custodia e segurança da jóia, um ovo em ouro com incrustes em rubis avaliado em trinta e cinco milhões de euros, naturalmente o fato gerou uma imensa tensão de vários setores, o dono da joalheria, a companhia de seguros que tentava se esquivar por meios burocráticos e de cláusulas de contrato da indenização e finalmente a maior e mais preocupante, se analisada a possibilidade de uma crise diplomática com o governo de Rússia, que tem o ovo como um tesouro e patrimônio insubstituível.

Esses fatores pediam uma rápida solução e a situação de Pereira não era nada boa, já que existia nada menos que um vídeo, de uma câmera cuja existência só era conhecida pelo proprietário da joalheria registrando o exato momento em que Pereira, ou pelo menos umas costas e andar manco muito parecidos com o de Pereira retiravam o ovo russo do compartimento protegido com senhas e alarmes.
           
              - Todas as outras câmeras que registraram corredores, salas e elevadores foram desligadas durante três minutos, entre às 23:51 e 23:54, que foi o momento do crime, Almeida, o Pereira não contava com aquela câmera secreta, ele era de total confiança do Sr. Costa, o proprietário da joalheria e sabia todas as senhas de bloqueio das salas seguras, eu sei, também estou chocado, conheço o Pereira há mais de quarenta anos, assim como você, mas tudo indica...
             
            - Não demos o veredicto de nosso colega e meu amigo antes do tempo, Paulo.
             
              Depois que o Del. Rosa se retirou a seu gabinete, ainda fiquei mais uma meia hora olhando para o Pereira através daquele vidro. Ele tinha mudado muito também desde a última vez que nos vimos, a exatos trinta e oito anos. Via-se com algumas rugas, além das normais de alguém da nossa idade, havia aquelas que são mais características de pessoas que não receberam um tratamento tão suave da vida, estava muitos quilos acima do peso, a gravidade de uma situação como essa evidentemente se reflete na expressão de quem a sofre, portanto era de se esperar que sua aparência fosse triste, mas conclui que não deveria estar muito mais abatido do que normalmente. Continuava casado, ao menos conservava a aliança. Praticamente não restavam fios de cabelo na parte superior de sua cabeça e os da lateral eram quase como algodões colados à pele, acho que ele deve ter se dedicado à pesca quando se aposentou da policia, coisa que ele já gostava, notei isso pela diferença na cor de seus braços e mãos em relação ao rosto, característico de quem fica horas de chapéu embaixo do sol. Finalmente entrei e o cumprimentei, conversei com ele tentando reconforta-lo me lembrando de tempos passados, recorrendo a meu velho hábito de falar do passado, ao menos ele tinha também sido protagonista de muitos daqueles momentos, o que devia deixar meu relato um pouco menos cansativo a seus ouvidos, sou assim, quando quero animar alguém falo demais, o que muitas vezes acaba por desanimar ainda mais meu interlocutor, então percebendo seu cansaço lhe disse que voltaria no dia seguinte quando tivesse mais informações.

            Fui pra casa com uma copia do depoimento de Pereira que o Rosa me deu,  e somente no trajeto de casa já o tinha lido umas dez vezes.
           
           “Estive o tempo todo na cabine de monitoramento, quase à meia-noite houve uma queda forte de tensão, coisa que dois ou três segundos, talvez uns cinco... quando a energia dos equipamentos voltou, graças ao gerador, estive alguns momentos regulando as câmeras quando olhei para traz havia uma pessoa me apontando uma arma, me obrigou a desligar todas as câmeras dos corredores e salas seguras e depois me fez pôr minhas mãos atrás da cadeira e me algemou com minhas próprias algemas, me disse que haveria uma arma apontada para mim o tempo todo, então pôs um saco preto em minha cabeça. Tive de dar a ele todos os códigos de desbloqueio do cofre e entregar minhas chaves. Não vi ou ouvi mais nada até a chegada da polícia minutos depois.

- Você chegou a ver como ele era?
- Me disse que não olhara para ele, mas vi que estava de óculos e gorro...”

Também tinha comigo o DVD com a copia do vídeo que o del. Rosa me deu e ainda fiquei umas duas horas olhando para aqueles quinze segundos de filme.
Sempre tive o hábito de olhar os locais e as provas de crimes exaustivamente, sentia que a cada nova inspeção me aproximava de um estado diferente de consciência e coisas simplesmente começavam a saltar aos meus olhos de uma forma quase mágica. Mas isto não estava acontecendo agora, tinha mapeado cada centímetro quadrado daquela sala, observei todos os detalhes do uniforme de vigia dessa pessoa, o jeito como se aproximava do compartimento, como pegava a chave do sinto e abria a porta e retirava o ovo, o colocava em uma pequena mala, dessas de viagem (um pequeno emblema na mala dizia oito ), a colocava no ombro, virava e saía por onde veio, a câmera que gravou a fita havia sido  instalada de maneira que pelo angulo de visão o boné que o ladrão uniformizado usava cobria totalmente o seu rosto. Tinha que haver algo, era uma situação extremamente ambígua, ao mesmo tempo que era quase notório que era Pereira quem fazia aquilo, nenhuma evidência irrefutável havia de que realmente era ele. E eu me decidi a ser esse elo entre o suposto e o provado, tinha que encontrar o elemento chave que faria concreta qualquer certeza, para o bem ou para o mal de Pereira. Fui à delegacia na manhã seguinte acompanhado da incômoda angustia de não ter avançado em nada na investigação.

Enquanto conversava com o del. Rosa, um policial bate na porta:

-O suspeito Pereira não está se sentindo bem, pede pela esposa.
           
Pereira tem problemas de pressão alta, teve que ser medicado e sua esposa foi autorizada a ficar uns minutos com ele. Tinha realmente muita pena de vê-lo nessa situação, mas não podia deixar isso comprometer o meu pensamento, era uma situação das mais complicadas para mim, tanto pela tão evidente culpa, como uma câmera escondida que flagra um roubo sequer bem planejado,  como a sensação que algo não estava bem nessa historia e que ele não foi, inclusive achei no começo ser minha recusa em aceitar uma conduta assim do Pereira, mas era mais do que isso, sabia que não foi ele, só precisava provar, mas por enquanto o que se tem é um vídeo com uma pessoa mancando com a mesma perna esquerda que Pereira manca e, apesar de uma imagem ruim, aparência de Pereira, cometendo um roubo milionário.

         Liguei e marquei para falar com o senhor Alberto Costa, dono da joalheria. Não foi muito fácil conseguir que ele me recebesse, me pareceu haver nessa conduta agressiva uma antipatia por saber de meu vinculo de amizade com Pereira (a quem ele aparentemente atribuía toda a responsabilidade do roubo), provavelmente por imaginar  minha intenção de provar sua inocência.

         Da suntuosa sala de espera de seu gabinete no andar superior loja cêntrica, onde estive quase quarenta minutos esperando ser atendido pelo Sr. Costa, me distraí em meus pensamentos e acabei lembrando uma vez em que Pereira salvou a minha vida, na década de sessenta. Uma investigação tinha me levado a me esconder por três dias no porto de Santos para flagrar uns contrabandistas, Pereira, então um novato na polícia, estava na equipe da policia que iria invadir o local quando fosse dado o aviso, e eu me encontrava quase no centro do perímetro criminoso escondido atrás de uns barris, porém acabei sendo visto por um dos bandidos, que no momento em que ia estourar meu cérebro levou um tiro do Pereira, que havia penetrado sem autorização de seus superiores no perímetro dos criminosos para me dar cobertura  sem eu nem mesmo saber. Por uma fração de segundo não esmagaram minha cabeça com uma barra de ferro. É claro que o alarme dado pelo disparo quase fez com que se arruinasse o flagrante, já que o barco ainda não havia ancorado com a mercadoria contrabandeada, mas o bando do píer foi prontamente dominado e obrigado a proceder como se tudo estivesse correndo normalmente até que pudesse ser registrado o ato em flagrante e realizada a prisão de toda a quadrilha. A operação terminou um sucesso, e foi naquele momento que notei naquele rapaz magro e com aspecto tímido, uma centelha de coragem espantosa. Tivemos muitos casos em que trabalhamos em parceria dali pra frente, realmente um policial muito devotado à sua profissão, daqueles que você tem certeza ser incorruptível, aquele que está longe da banda podre da polícia . Me tornei seu amigo. Mas essa agora... seria o tempo capaz de mudar alguém tanto assim? Ou a necessidade muda a forma de pensar de alguns? A forma de ver o bem em relação ao mal, o certo ao errado, quebrar a barreira dos pontos de vista, tudo isso pode acontecer? Quem sabe a resposta...e quem garante que não sejamos um dia vitimas de nossos pensamentos atuais..?

Osenhor Alberto ira recebe-lo agora. A voz da secretária me tira do transe memorial e me conduz à sala contigua. Após me cumprimentar, (sem sequer olhar a meus olhos e com a mão flácida de quem quer deixar patente um desprezo aflorando um insondável complexo de superioridade que também poderia ser de inferioridade camuflado atrás de uma magnífica mesa de madeira de lei entalhada com tampo de mármore e sentado em sua desproporcionalmente grande cadeira apoltronada para seu corpo franzino envolto em terno fino italiano) foi logo atacando quem estou certo sempre foi um de seus mais fieis funcionários:

- Ele tinha a minha total confiança, nunca imaginei que seria capaz de fazer algo assim.
- Quanto tempo antes foi feita a instalação daquela câmera?
- Foi feita por mim mesmo uma semana atrás, logo após a confirmação da tutela do ovo.
- E o senhor viu as imagens antes de entregá-las à policia?
 -Sim, quando cheguei, que a policia já estava lá e se encontrava investigando, fui à sala do cofre, retirei a câmera de seu esconderijo no forro do teto e chequei pelo visor se ela havia gravado algo. Quando cheguei na parte do roubo, vi com espanto que se tratava do Pereira, inclusive se via claramente como mancava, com a esquerda, não? Espero que realmente consiga descobrir alguma coisa, detetive, o delegado Rosa, a quem conheço há muito tempo, esta pondo todos seus esforços também na solução desta situação, inclusive ele sente um especial compromisso por haver-se oferecido para reforçar a segurança pessoalmente, quando conversávamos no coquetel que ofereci a todos os envolvidos com a exposição e meus colaboradores... e no mesmíssimo dia... veja só! Se não for encontrado este ovo, terei sérios problemas em continuar com meu negocio, a seguradora não esta bem intencionada, querem pagar uma indenização num valor escandalosamente inferior ao que deveria ser, não vou poder bancar esse prejuízo. Estou em uma encruzilhada. Preciso de uma solução, se foi ele, que a devolva ou diga a quem a vendeu.

-Bom Sr. Costa, não vou mais tomar o seu tempo, aqui esta meu telefone, se lembrar qualquer outra coisa que ache que possa ajudar, ou mesmo que não ache isso, me ligue. Estarei esperando.
-Boa tarde detetive Almeida.

Passei o resto da tarde olhando aquelas imagens, em câmera lenta, para traz, congelada, de todas as maneiras que se me ocorreu. Não tinha nada, somente uma vaga esperança de obter uma lista de pessoas que tenham recentemente comprado uma mala da marca OITO, do modelo que aparece sendo usada pelo ladrão. Telefonei a alguns distribuidores e a algumas das principais lojas do ramo, e, para minha surpresa todas me disseram que não somente não trabalharam com essa marca como sequer a conheciam.

Fiquei preocupado, o único elemento que tinha até então começava a ficar cada vez mais insignificante. Então pensei que pudesse se tratar de uma marca importada, o que reduzia o número de locais onde ela pudesse ter sido comprada, se foi mesmo comprada no Brasil.
Fiz uma pesquisa na Internet (Tecnologia a qual acabei me rendendo depois de anos de resistência) mas o nome não apareceu em nenhum momento vinculado a alguma marca de malas ou artigos de couro. Seria uma antiguidade?

Na manhã seguinte fui falar com o Pereira. Ele me contou que a policia tinha apenas pego seu depoimento, pouco depois do ocorrido naquela mesma noite, me disse que tinha inclusive falado com o Sr. Alberto, que ele se encontrava muito nervoso e o olhava como se já tivesse certeza de sua culpa.

-Ficou, inclusive, o tempo todo por perto, até um momento que o vi saindo apressadamente.
- Você se lembra em que momento foi isso?
- Não precisamente, mas foi enquanto os policiais coletavam dados que poderiam ser importantes, por exemplo me perguntaram se tinha algum problema de saúde, e lhes disse que o único que me incomodava era o problema de hiper tensão e a minha perna esquerda, com a que mancava.
Voltei de novo à minha casa e meu vira lata Zorriglio me olhava com olhos entediados de reencontro em uma rotina doméstica. Deitei no sofá e pus o CD para ver, mais uma vez, as imagens do roubo.
Pereira era canhoto, mas na imagem o ladrão abre o compartimento, usa a chave, pega o ovo com a mão direita. Isso não significa absolutamente que não poderia ser o canhoto Pereira, usando a outra mão. Mancava claramente com a perna esquerda, o que sim é uma característica de Pereira. O que mais havia ali.

De manhã fui a delegacia. O delegado Rosa chegava naquele mesmo momento então fomos tomar um café.

- Aquele CD que eu tenho é uma cópia feita por vocês?
- Isso mesmo, a partir do original foram feitas algumas cópias para arquivar.
- A câmera está aqui?
- Sim, quer vê-la?

Olhamos a câmera, uma portátil do tipo que filma em VHS em mini-fitas.
 Falei a Rosa que a investigação seguia de uma forma inconsistente, sabia que com as provas encontradas, as digitais e tudo mais, Pereira poderia ser realmente acusado com serias chances de condena e precisava encontrar algo rápido, se realmente existissem provas (de sua aparentemente por mim e somente outros poucos acreditada inocência), elas teriam que aparecer rápido. Enquanto falava Rosa me ouvia com uma atenção alternada, enquanto tragava grossas baforadas de seus Imparciales 30, cigarro de tabaco preto importado das regiões rioplatenses que Rosa fuma desde que o conheço. E muito curioso como a memória olfativa é algo quase indestrutível, bastou sentir o cheiro daquele tabaco que por aqui não se vê para me remeter uns quarenta anos atrás, quando ia conversar com esse mesmo delegado a respeito de casos que eu investigava, e pensava como ele poderia gostar de algo tão ruim.

-Como foi o momento em que o Sr. Costa entregou a câmera?
-Ele nos entregou essa prova pouco depois de sua chegada, e nos já estávamos há um tempo no local, porque do momento do sinal do alarme à nossa chegada se passaram poucos minutos, não sei se você sabe, mas assumi um compromisso pessoal com Alberto naquela mesma noite, na festa à que fui gentilmente convidado, disse a ele que poderia contar comigo para o que fosse necessário, e que estaria, inclusive, me mobilizando em beneficio da segurança do tesouro que estava custodiando. Temos ao menos que desvendar o esquema em que esta jóia foi vendida, se ela já foi vendida, não posso permitir que Alberto tenha que fechar suas portas em parte por minha incompetência...
-Não se culpe delegado Rosa, tentemos resolver o caso...mas me diga, então foi à alguém de sua equipe a quem ele levou a câmera?

-Sim, foi a mim que ele entregou a câmera e a fita, eu vi as imagens logo guardei a câmera na delegacia sob a custodia dos policiais de plantão para ser analisada pela perícia na manha seguinte.

 Enquanto saia da delegacia dava uma volta pensando em todas aquelas circunstancias, soubemos que a mulher de Pereira  estava muito doente e precisava de um tratamento no exterior que custaria centenas de milhares de dólares, que Pereira havia tentado junto ao Sr. Costa e este lhe havia negado alegando falta de dinheiro, e ainda por cima havia sido encontrado nos pertences de Pereira os telefones de diversos compradores de obras de artes, alguns deles tinham ate sido investigados no passado sob suspeita de interceptar arte roubada, mas Pereira ao ser indagado a respeito disse que aqueles telefones tinham sido dados a ele pelo Sr. Costa, que depois lhe daria instruções do que fazer com eles e que isso resolveria o problema de todo mundo, com isso aumentava uma vaga na lista de suspeitos, ao menos ate que os dois sejam postos cara a cara para ver se alguém mente. E isso seria em meia hora.

-É mentira, eu não dei telefones a ele, este homem quer desviar a atenção de sua culpa!

Isso foi basicamente tudo o que o Sr. Costa declarou, seu advogado não o deixou falar mais, disse que seu cliente estava sob muita pressão e que não podia dar prosseguimento a essa acareação, que ele se manteria a disposição da policia mas que agora precisava ir para casa descansar. Notava mesmo assim uma expressão de intranqüilidade como de estar cometendo uma injustiça, seria o Sr. Costa uma pessoa capaz de semelhantes sentimentos ou seria a preocupação caso não reapareça a jóia e haja que pleitear o ressarcimento da seguradora na justiça...não sei, também tenho dormido pouco o que afeta meu raciocínio, talvez não esteja conseguindo ver as nuances das situações como normalmente.

Enquanto me confundia em minhas conclusões conflitantes recebi um telefonema de meu amigo Javier Villanueva, querido e admirado ser de espírito misterioso e livre, feliz e possuidor de uma deliciosa e nostálgica personalidade vinda diretamente das frias terras do sul. Me convidava a tomar uns mates, habito que trouxera consigo da Argentina.

 Mora agora há uns sete anos na serra da Cantareira, em uma linda casa de campo onde se dedica a produzir sua divagante literatura. Engraçada a sensação que me causa este amigo, passam-se os anos e eu não posso deixar de admirar a sua tenacidade, sim, porque este homem bem mais jovem que eu, de traços não tão claros quanto à origem, mas decididamente latinos, com seu infaltável bigode, que notei de uns tempos pra cá tornara-se levemente grisalho, começou a escrever muito antes de mim, inclusive já o fazia quando nos conhecermos, em ocasião de sua recente chegada a este maravilhoso pais. Viera de moto no fim dos anos setenta comemorando sua formatura da faculdade de arquitetura de Buenos Aires, profissão esta, aliás, que nunca chegou a exercer, e isso se deve em parte por ter se apaixonado por este pais e suas nativas que tanto o inspiravam em suas novelas e contos, que de tão bons teve editores interessados e publicou logo de cara, mesmo mantendo-se humildemente desconhecido durante anos, até seu primeiro grande sucesso editorial, o que o projetou à zona de conforto material, mas isso é apenas um detalhe e um reflexo do inevitável, o realmente invejável e que, de uma forma ou de outra, desde o primeiro momento, ele sempre viveu de seus textos. Admiro muito sua obra, mesmo o mais prematuro e inocente em relação à forma, mas que já mostrava uma fortíssima pulsação literária. Um acido critico social, bem-humorado e devasso, tecia seus contos e crônicas com uma habilidade estonteante. E como pessoa, ao contrario do que pode se pensar de alguém capaz de gerar tão complexos pensamentos, é de uma simplicidade em seus conselhos e conclusões que não posso deixar de me surpreender pelo menos duas ou três vezes por visita que faça a ele. Um grande amigo.

Conversamos muito e contei todo o caso a ele,brincou comigo, meio falando serio, que já registrara essa historia em sua memória para um bom policial que escreveria em forma de roteiro, me disse também que tinha certeza que solucionaria o caso, e ele, por sua parte, escreveria a historia inventando um final para que depois os dois comparássemos o que ele criou com o que eu descobri. Ele sempre tinha essas idéias maravilhosamente malucas. Também abrira a minha mente para outros pontos de vista que talvez não tivesse notado por estar vendo a situação tão de dentro. Me despedi de meu amigo, peguei o caminho rumo à estrada da Roseira para descer a serra e voltar à delegacia, meu celular tocou;

-Detetive, aqui quem fala é Alfredo...Alfredo Costa...estou sentindo um forte peso na consciência e preciso falar com o sr...veja não sou uma má pessoa, simplesmente a minha empresa esta passando por uma situação critica... praticamente não tinha outra saída...estou na falência, os telefones... fui eu quem dei sim. Por favor venha para cá e eu vou contar tudo- desligou.

Demoraria ainda pelo menos meia hora em chegar ao centro, quis então ligar de volta ao numero de onde ele tinha chamado, imaginando ser o da joalheria, mas ninguém atendeu, liguei ao delegado Rosa e informei o que acontecera, passei a ele o telefone de onde o sr. Costa telefonara para que ele o rastreasse e fosse até lá, e que me desse o endereço também assim nos encontraríamos lá, vinte minutos depois ele me ligou me passando o endereço, era no bairro do Morumbi, e eu estava ainda no centro, a delegacia ficava na Santa Cecília, portanto chegaríamos praticamente juntos, em uns quinze minutos.

Cheguei ao endereço que me foi dado, ninguém atendia meu chamado à campainha, o portão estava apenas encostado, dando acesso ao enorme jardim da entrada, fui ate a porta de entrada e ela se encontrava trancada, me dirigi então em direção à garagem, que estava com o portão meio levantado, me aproximei e chamei pelo sr. Costa, ninguém atendeu, então fazendo um pouco de força comecei a levantar o portão, foi só quando o tinha na altura do peito que pude ver um par de sapatos que iam e vinham em movimento pendular, olhei um pouco mais para cima e vi um par de meias pretas seguidas de um terno italiano e um rosto roxo e inerte no topo do conjunto, corri em sua direção mesmo já tendo quase certeza que era inútil, e infelizmente estava certo, o sr. Costa já não estava mais entre nos quando consegui soltá-lo daquela forca feita com uma mangueira laranja de jardim. Me chamou a atenção um cheiro distantemente familiar. 

Nesse exato momento entrou o delegado Rosa e veio me ajudar a colocar aquele corpo no chão e a dividir comigo um pouco daquele mau momento, segundos depois irromperam também outros policiais. Bom, se este suicídio se devia ao peso na consciência de vir vendendo peças de arte sem declarações ao governo, coisa que eu já tinha descoberto dias atrás, devia haver mais por trás disso, talvez os telefones dos interceptadores que estavam com Pereira dados pelo sr. Costa ainda viriam a comprar a jóia, ou já a tinham comprado, mas qual deles, e Pereira, sabia ou não de tudo? No meio de toda aquela incerteza, o delegado Rosa me deu uma noticia inesperada, a jóia tinha sido recuperada, ela havia sido localizada no aeroporto de Guarulhos tentando ser levada à Europa, por um jovem rapaz inglês, uma mula paga apenas para transportar a carga que provavelmente nem imaginava ser tão valiosa, conseguiu-se através dele chegar ao comprador, que havia pago vinte milhões de euros pelo ovo a uma pessoa que ele disse ser incapaz de reconhecer.

-Bom Almeida, agora somente nos resta verificar se Pereira também esta envolvido, porque o peixe maior já esta na rede, ele provavelmente foi avisado sobre a descoberta do ovo e portanto, já sabendo que não poderia escapar de ser descoberto, se matou. Estranho, mas é o que temos.

 Com a chegada da perícia, que vasculhou todos os cantos do local, tomou o depoimento de todos aqueles relacionados ao encontro do cadáver, ou seja, eu e Rosa, e depois de fotografar absolutamente tudo, levaram o gélido corpo do sr. Costa. Entrei em meu carro e fui dirigindo em direção ao velho parque de minhas meditações, o Horto, com a esperança que ele me inspirasse alguma conclusão ainda eclipsada pela bruma da dúvida.  No caminho entre o lugar onde estacionei e a entrada, passei do lado de um morador de rua que perambulava sempre por ali, um rapaz jovem que sempre me surpreendia com alegações transcendentais de uma enigmática e lucidez impressionantes, ele olhou para mim, segurando em uma das mãos um enorme bloco de seus cabelos que não deveriam ser lavados há anos, verdadeiros dreadlocks dignos de inveja a qualquer rastafari, e na outra uma garrafa de aguardente quase findada, e disse:

-Ei detetive, acabei de receber uma mensagem pra você vinda diretamente do cosmos, com o qual mantenho contato a traves disto que todo mundo acha ser cabelo, mas na verdade são tentáculos que se projetam perpendicularmente à curva do tempo e do espaço...eles querem que você abra sua consciência para a reversibilidade, pare de olhar as coisas pelo espelho, rompa-o...- então começou a cantarolar uma canção de uma banda que eu costumava ouvir muitos anos atrás “break on through to the other side...break on through to the other side...”- para em seguida cair em profundo sono etílico. Me sentei frente ao lago e acabei mergulhando em meus pensamentos, até o momento que um guarda do parque me puxou pelo cordão de prata, tirando-me da estratosfera e trazendo-me de volta ao meu corpo para me avisar que o parque já fechara havia mais de duas horas. Aquela viajem astral foi realmente produtiva, como mostrarei amanhã quando expirava o prazo da defesa e Pereira seria definitivamente condenado.

Na manhã seguinte, já com todo o material compilado, fruto de vinte dias de investigação e principalmente da noite passada inteira, que passei desvelado mas com a certeza da conclusão, me preparava para ir ao julgamento de pereira quando chamaram à porta, era Rosa em uma inesperada visita.

-Então Almeida, mais um caso quase resolvido, infelizmente, nosso amigo não dispôs de provas que o inocentassem, logo as que o incriminam são mais do que suficientes para condena-lo a uns quinze anos, pelo menos evitamos o conflito com o governo russo ao recuperar a jóia, e o dinheiro da compra, que não foi encontrado, tem uma procedência certamente criminosa, portanto pode-se dizer que o desfecho foi feliz, não acha?

-Realmente Rosa, tudo seria feliz e perfeito, se não fosse isso- Puxei de meu bolso uma sacola com um pequeno cilindro de papel branco, quase tão branco quanto ficou o rosto de Rosa ao perceber que se tratava de uma bituca de Particulares 30. –Você acabou esquecendo isso em sua última visita em vida ao senhor Costa, antes de minha chegada.

 -Você é realmente o melhor que conheci, Almeida, não se conformou em deixar tudo como estava, agora vai levar a verdade consigo - Dito isso pôs a mão dentro de seu paletó e puxou sua niquelada calibre 45, e nessa fração de segundo que levou o trajeto do cano entre o coldre e eu vi toda a minha vida passar em uma dimensão de tempo que nunca antes tinha experimentado, estava certo que tudo acabaria em poucos instantes, fiquei com os olhos abertos em um ato de coragem do qual não me imaginava capaz, e quando ouvi o estalo, só me restou esperar cair...mas quem caiu foi Rosa, com uma expressão de dor e surpresa, sem entender nada, olhei à frente e lá estava meu salvador, Guigo segurando meu revolver que ainda esfumaçava, ele tinha passado a noite em casa e eu não tinha notado, às vezes fazia isso quando saia e voltava tarde demais para acordar a sua mãe.
questão era simples, naquela noite, depois da revelação de meu amigo dos tentáculos, tive a idéia de pegar o vídeo e reproduzi-lo ao contrario, não de traz para a frente, mas olhando a tela pelo reflexo de um espelho foi então que vi que ao pessoa que se passou pelo Pereira tinha se confundido e mancado com a perna direita e não com a esquerda, coisa que chamou a atenção do sr. Costa, inocente ao menos dessa falcatrua, que foi o primeiro a ver o vídeo original antes de entrega-lo ao del. Rosa, e foi tirar essa duvida ao ouvir o Pereira dizendo aos policiais que mancava com a esquerda, ao ser avisado pelo pobre sr.Costa, Rosa dirigiu-se ao laboratório de vídeo da própria delegacia e digitalmente reproduziu o vídeo ao inverso, para que parecesse que a pessoa mancava com a esquerda, isso explicava o registro de entrega da prova quase uma hora depois da que o sr. Costa relatara. Isso explicava também a mão o porquê da mão esquerda que segurava o ovo não tinha aliança de casamento, e não era a de Pereira sem ela porque quando pedi a ele que a tirasse um instante na frente do juiz, todos puderam ver que a marca branca formava uma aliança de pele, pelo contraste com sua mão bronzeada de pescador. Com esses elementos, já sabia que não tinha sido Pereira, e o que me ligou ao nome de Rosa foi o suave cheiro que senti ao chegar à casa do sr. Costa, tabaco preto, a bituca que mostrei a Rosa fora um blefe, e ele se encarregou de assumir sua culpa, agora, quando encontraram em seu armário da delegacia uma mala da marca OTIO, que era o nome original, e não OITO, não restavam duvidas, e os vinte milhões apareceram escondidos num piso falso da garagem de sua casa, tantos anos que conhecia Rosa e nunca imaginei que fosse capaz de ir tão longe em sua sede de dinheiro que sabia ele tinha.

Quanto à execução do roubo, foi fácil para Rosa se esconder em um dos banheiros da joalheria durante a festa que aconteceu na mesma noite, para perto da meia-noite causar o pequeno apagão que deixaria duvidas quanto à versão de Pereira, colocando-o como o principal suspeito, e em segundo lugar cairia o próprio sr. Costa, que não brilhava pela sua honestidade e seria facilmente ligado ao roubo, mas nunca ninguém suspeitaria do desolado e preocupado em solucionar o caso delegado Rosa. Claro que tudo tinha sido muito bem planejado, somente esse detalhe da perna que estragou os seus planos.

 Uma semana depois, enquanto pescava com meu amigo Pereira recebi dele uma comovido agradecimento, pisquei para meu sobrinho que estava a seu lado e disse:-esse é o nosso trabalho, meu amigo.

Nos dias subseqüentes não pus o pé na rua, fiquei vendo filmes e comendo bobagens. Adoro a vida sem preocupações.


FIM
Luciano Barrionuevo, São Paulo, abril de 2013.

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