O
cachorro grande olhou para mim com olhos líquidos. E para aqueles que
nunca ouviram a expressão, aviso que os escritores (os mais populares, pelo menos) gostamos de usá-la para dizer "olhos ternos, tristes, ou lacrimejantes".
Mas
toda a ternura dos olhos e o olhar do cachorro que estava diante de mim, a
menos de um metro de distância, eram negados pelo seu conjunto de músculos, patas, garras
e presas.
A
verdade, confesso, é que não vi as presas em nenhum momento, mas logo as imaginei.
Eu
estava suando muito, mesmo que fosse agosto, só pensando no que poderia
acontecer comigo se o grande cachorro preto decidisse avançar mais meio metro.
E
enquanto isso, continuava dividido entre o susto, a paralisia de origem canina e
a vontade louca de chegar até a janela de Roberta.
Sim, porque ela me
disse que poderia vê-la naquela noite, depois das duas da manhã, mas é claro, eu não contava
com o cachorro.
Contava, isso sim, com a enorme capacidade de Roberta de me surpreender. Tinha me dado três fabulosas
noites de amor e depois não me olhou mais na cara. Ainda pediu que eu não mandasse mais nenhuma carta, e anos depois voltou para me procurar para me oferecer uma conversa
de madrugada e, ainda por cima, convidando-me a pular de uma janela que ele deixaria
entreaberta para que seu tio não me ouvisse entrar. Ela sempre, sempre, me
surpreendeu, e foi isso o que mais me prendeu a ela: suas decisões
repentinas.
Então, devagarzinho, me
mexi pouco mais de um centímetro e o cachorro não tirou os olhos de mim, mas também não rosnou
nem nada. Aproveitei a minha audácia para avançar mais quatro ou cinco centímetros de
uma vez, e o musculoso cachorro preto continuou igualmente indiferente.
Por
fim, sem olhar para ele, me atrevi a dar dois ou três passos em direção à janela. E o
cachorro deu um bocejo profundo e entediado, esticou-se o quanto pôde sobre
as patas dianteiras e sentou-se para morder uma pulga que o incomodava mais do
que eu.
Aproveitei
e fui devagar em direção à casa, direto para a janela que me esperava
entreaberta.
Mas
quando estava a dois metros de minha Meca, vi que as duas folhas estavam
firmemente fechadas.
Então, instintivamente, me virei aos poucos e vi que o cachorro grande agora estava bem ali, me
mostrando os dentes.
Essa
Roberta tem cada uma!
O hermoso Javi nos brinda com um pequeno conto, no qual o desejo de amor se transmuda para puro terror, e o cao negro definitivamente nao se chama Eros, mas sim, Cerbero.
ResponderExcluirÉ o famoso cão cervero, que broxa qualquer levantamento amoroso. Você captou a mensagem, velho mestre.
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