domingo, 16 de agosto de 2020

Medo, frio, fome, sono e vontade de fazer xixi.

 

 Pastor Aleman - Aperrados.com


Medo, frio, fome, sono e vontade de fazer xixi.

O cachorro grande olhou para mim com olhos líquidos. E para aqueles que nunca ouviram a expressão, aviso que os escritores (os mais populares, pelo menos) gostamos de usá-la para dizer "olhos ternos, tristes, ou lacrimejantes".

Mas toda a ternura dos olhos e o olhar do cachorro que estava diante de mim, a menos de um metro de distância, eram negados pelo seu conjunto de músculos, patas, garras e presas.

A verdade, confesso, é que não vi as presas em nenhum momento, mas logo as imaginei.

Eu estava suando muito, mesmo que fosse agosto, só pensando no que poderia acontecer comigo se o grande cachorro preto decidisse avançar mais meio metro.

E enquanto isso, continuava dividido entre o susto, a paralisia de origem canina e a vontade louca de chegar até a janela de Roberta.

Sim, porque ela me disse que poderia vê-la naquela noite, depois das duas da manhã, mas é claro, eu não contava com o cachorro.

Contava, isso sim, com a enorme capacidade de Roberta de me surpreender. Tinha me dado três fabulosas noites de amor e depois não me olhou mais na cara. Ainda pediu que eu não mandasse mais nenhuma carta, e anos depois voltou para me procurar para me oferecer uma conversa de madrugada e, ainda por cima, convidando-me a pular de uma janela que ele deixaria entreaberta para que seu tio não me ouvisse entrar. Ela sempre, sempre, me surpreendeu, e foi isso o que mais me prendeu a ela: suas decisões repentinas.

Então, devagarzinho, me mexi pouco mais de um centímetro e o cachorro não tirou os olhos de mim, mas também não rosnou nem nada. Aproveitei a minha audácia para avançar mais quatro ou cinco centímetros de uma vez, e o musculoso cachorro preto continuou igualmente indiferente.

Por fim, sem olhar para ele, me atrevi a dar dois ou três passos em direção à janela. E o cachorro deu um bocejo profundo e entediado, esticou-se o quanto pôde sobre as patas dianteiras e sentou-se para morder uma pulga que o incomodava mais do que eu.

Aproveitei e fui devagar em direção à casa, direto para a janela que me esperava entreaberta.

Mas quando estava a dois metros de minha Meca, vi que as duas folhas estavam firmemente fechadas.

Então, instintivamente, me virei aos poucos e vi que o cachorro grande agora estava bem ali, me mostrando os dentes.

Essa Roberta tem cada uma!

 

 

 


2 comentários:

  1. O hermoso Javi nos brinda com um pequeno conto, no qual o desejo de amor se transmuda para puro terror, e o cao negro definitivamente nao se chama Eros, mas sim, Cerbero.

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  2. É o famoso cão cervero, que broxa qualquer levantamento amoroso. Você captou a mensagem, velho mestre.

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