quarta-feira, 12 de agosto de 2020

O cactus gigante e o atestado de óbito.

 

Cemiterio da Consolação São Paulo #cemetery #gothic #esculpture ...


 O cacto gigante nas Salinas e o atestado de óbito

Ecce homo

Sim! Eu sei de onde venho!

Insaciável como a chama

Eu queimo, queimo e me consumo.

Luz se torna quando eu toco

e carvão quando abandono:

chama sou, sem dúvida.

Friedrich Nietzsche

 

Pego o meu obituário na mão e já começo a sorrir. A ata de defunção, então, é uma gargalhada só. Tento me segurar, penso em coisas abstratas, como fazia o Marito da Tia Julia e o Escrevinhador tentando abaixar a ereção: "em um triângulo retângulo a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa". 

Mas não consigo: explode a risada e meio cemitério acorda. Peço desculpas e volto às abstrações: "O amor é a força mais abstrata, mas também a mais potente que há no mundo". "Nosso amor se supera, é constante e é de pedra", etc. 

Besteiras, vou apertar o nariz com o polegar e o indicador e pensar nas minhas lembranças; afinal, tenho algum futuro? Não, então, vamos curtir o passado. Tenho, perdão, tinha até ontem, 109 anos. Morri de múltipla falência dos órgãos, mas ainda dei banana pra todo mundo. Meu atestado de óbito foi assinado em 3 de março de 2060, e o último relatório médico, que eu levei para casa, a pé, depois de dois dias de ir e vir do Hospital das Clínicas dizia: “saúde excelente, sem problemas cardiorrespiratórios nem renais ou de qualquer outro tipo”. O envelopão com os trocentos exames ainda está aí, ao lado da ata de defunção e do obituário que me presentearam netos e bisnetos -os filhos já se foram faz tempo-.

Mas, como diria meu avô, sou meio azarado -la yeta puta, que ele denominava em espanhol-, e em seguida lembro de quarenta anos atrás, quando por causa de um desgosto, uma crise emocional, digamos, entrei em coma leve. Foram 149 dias, bem no meio da pandemia e de uma suposta quarentena fajuta que nem os governantes fizeram cumprir e ainda menos a maioria da população quis cumprir. A pandemia durou três anos no Brasil, dois nos Estados Unidos e apenas quinze meses no resto do mundo. Bom, mas já pulei de galho e perdi o fio da meada.

Ah, sim. Contava que sou azarado porque a única lembrança que me veio à mente foi a dos cinco meses deitado numa cama, ouvindo todos falarem, contando verdades, mentiras e fofocas, e eu duro como uma pedra, amarrado na cama como um salame, e sem poder me expressar nem demonstrar o mais mínimo sentimento, movimento e, muito menos, pensamento.

O mundo lá fora se debatia entre cuidar das vidas -a morte, que não é outra coisa que o último segundo dessa famosa vida, já superava os mil por dia, como se toda noite caíssem três aviões transcontinentais-, ou retomar a economia. Mas, que caralho é a economia? O trabalho? O capital? O comércio? O agro? O que é, afinal, o mercado, que em 109 anos não entendi?

Bom, mas também não é esse meu objetivo nestas breves memórias. Não vou fazer como Brás Cubas, contando quem veio e quem não veio para meu funeral, mas sim, sem dúvida, vou relatar os melhores momentos da minha vida:

 

A viagem numa kombi, de São Paulo até Tinogasta, Catamarca.

Mortos não sonham, já sei. É o que dizem, pelo menos. Defuntos não tem fantasias nem menos ainda alucinações; perfeito. Mas juro que isto que vou contar agora eu vivi - ou melhor, “vivi”, assim entre aspas - nessas últimas horas, desde que sai do Hospital e vim parar aqui, desse outro lado da Avenida Dr. Arnaldo, neste simpático e tão bem ornamentado cemitério da Consolação.

Bem, voltando ao relato, lembro que entrei na minha kombi azul clarinha um final de tarde quente de 1972. Era sábado e estava a 60 km ao norte de Dean Funes, quase nas portas das Salinas Grandes.

Tentei dar partida uma, duas vezes e nada. Na terceira tentativa, a bateria arriou de vez. Chamar um mecânico a essa hora, no meio da estrada? Como? Sem um orelhão por perto? Uma hora depois já estava cochilando, resignado, quando passou um Gordini e pedi carona. Era vermelho e branco. Um luxo, lembro bem. Que ano é o carro, amigo? perguntei. 

– É modelo 1958- respondeu com orgulho o motorista.

Mas, lindo e tudo, o carrinho furou um pneu um par de horas depois, e na escuridão da noite era impossível trocá-lo. Sentamo-nos à beira da estrada, sem asfalto ainda, e preparamos uma fogueira.

– Sou escritor- me disse o dono do Gordini. – Quer que conte um conto? perguntou meu carona. Claro, topei na hora:

– Minha amiga Penélope, começou a história, – aquela que esperava sem grandes expectativas, mas sempre com a esperança secreta de um dia voltar a dormir com o marido- me disse um dia, bem cedinho de manhã, ao chegar ao escritório:

– Olha só o que sonhei ontem: na minha casa havia vinte galinhas que se deliciavam comendo o trigo macerado em água; e eu, por minha vez, me divertia, feliz, olhando para elas; mais eis que, de repente, do alto do Aconquija, - aqui pertinho, em Catamarca, aponta o escritor-, desceu um condor e, rompendo o pescoço de cada uma das minhas lindas aves, matou todas elas, sem dor-. E corre uma lágrima lenta pelo rosto de Penélope, a paciente esposa.

– E eu, no meu sonho, contava Penélope, chorei e gritei, lamentando a sorte das minhas galinhas– mas acrescenta minha amiga que o condor voltou, pousou na calha do telhado, olhou fixo nos seus olhos e disse, com a voz mais doce e grave que ela tivesse ouvido antes, para não desanimar, para seguir tendo esperanças.

– Anima-te, muchacha formosa- disse Penélope que falou o condor, devolvendo-lhe aos poucos a calma- porque isto que estás vendo não é exatamente um sonho, mas sim uma profecia, uma visão autêntica e verdadeira do que vai acontecer.

As galinhas, me contava Penélope que lhe disse o condor do Aconquija, eram os seus pretendentes. E ainda acrescentou a ave enorme e majestosa: 

– E eu, que vim aqui na forma do grande predador dos Andes, sou teu esposo, que voltou e vai dar a cada um desses intrusos a morte que eles se merecem-, sempre segundo o relato da minha amiga Penélope.

Sim. Acontecem coisas incríveis na região de Las Chacras, em Catamarca- comenta o escritor, dono do lindo Gordini que me dera a carona salvadora. Acende um cigarro de chala nas brasas da fogueira e acrescenta:

– Mas este relato, que a primeira vista parece um espelho da Odisseia, na realidade não é um conto, nem uma fantasia. Fiquei sabendo mais tarde que aconteceu mesmo com a minha amiga Penélope, e hoje está entre os mais fantásticos acontecimentos que os habitantes do vale encantado de Fray Mamerto Esquiú já testemunhamos. Vivendo e aprendendo.

E eu aqui, na paz do cemitério da Consolação, ainda me lembro que a viagem de ida e volta para Tinogasta foi tranquila, sem grandes novidades. Mas ao chegar a San Antonio e passar em seguida por Piedra Blanca, e novamente em Fray Mamerto Esquiú, os eventos fantásticos voltaram a acontecer.

Lembro bem que as curvas da estradinha de Piedra Blanca para a capital provincial retiveram essa manhã a névoa da noite anterior. Eu tinha me despedido da vovó Rosa – na realidade minha bisavó- e saído da casa dos Jaime um pouco antes das oito da manhã. Dirigia a Kombi azul, já em boas condições, com muito cuidado, pois um cavalo ou um moleque de bicicleta sempre poderia aparecer de repente.

E assim mesmo, de repente, tive que pisar nos freios para não bater com um sulky que estava parado, a uns cinco metros de distância, com o homem que o conduzia e o cavalo, ambos imóveis, olhando para algum lugar indefinido nas encostas da Cuesta del Portezuelo.

Sou um cara tranquilo e mais bem valente, mas fiquei com medo e gritei para o homem se mexer, avisando que não conseguia passar. Mas o homem nem piscou, e tanto o animal quanto o ele estavam tão duros e imóveis quanto eu tinha notado antes de chegar à curva. Saí com a kombi pela calçada e me apertei contra as cercas dos "ovos de galo", até poder passar ao lado da charrete imóvel.

Na curva seguinte, a cerca de vinte metros de distância, um dos caminhões dos Jaime estava atravessado quase de um lado a outro da pista. Outra vez buzinei e de novo tive a surpresa de ver que Júlio Jaime, meu primo, ainda estava muito quieto, segurando com força o volante. Saí para ver o que estava acontecendo, mas ali mesmo notei que outros dois carros, a menos de cem metros da curva, também estavam parados, estáticos, com seus motoristas imóveis e silenciosos.

Cheguei até a caminhonete de Julio, subi no estribo e fiquei paralisado ao ver que o primo ainda olhava para o horizonte, o queixo levemente erguido para o retrovisor, mas duro, mudo e sem fôlego. Toquei, pensando em uma síncope, uma parada cardíaca, um derrame repentino. Mas não, Julio estava morno, normal, nem quente de febre, nem frio de morto. Ele parecia apenas um homem adormecido, só que no meio da estrada, com a caminhonete cruzada de ponta a ponta no asfalto, impedindo totalmente o trânsito.

Virei-me rapidamente para o sulky e o homem ainda estava do mesmo jeito! Corri para o cavalo e até o condutor do veículo: os dois estavam rígidos como Júlio Jaime. A cabeça do cavalo estava ligeiramente voltada para trás, mas os olhos eram duas bolas brilhantes e duras, o focinho sem fôlego e o corpo quente, como se tanto o cavalo quanto o cocheiro da charrete tivessem acabado de morrer sem cair, sem perder o seu fulgor vital, nem as cores, assim como Julio, como se estivessem simplesmente adormecidos, mas de olhos abertos.

Dei marcha ré, e voltei o caminho até achar outra saída. Acelerei e cheguei em vinte minutos até San Fernando de Catamarca. Desesperado, driblei com a kombi todos os corpos sem movimento, congelados, que pareciam ter querido cruzar a rua San Martín em algum momento. Desviei de dois carros e um ônibus que ficaram largados e não parei até chegar na Plaza San Martín.

Mais o que vi foi mais do mesmo panorama desolador. Não pensei duas vezes e entrei no primeiro posto de gasolina; enchi o tanque, e ainda peguei duas latas de vinte litros cada uma com combustível extra - não houve movimento algum para impedir que o fizesse, e não havia ninguém a quem pagar -, antes de iniciar uma corrida louca para ou sul, em direção a Córdoba ou até Buenos Aires se fosse necessário, ou para qualquer lugar onde encontrasse um ser humano que falasse comigo e pudesse me contar o que havia acontecido.

Mais uma vez nas Salinas Grandes, e ao longo do caminho, não havia cruzado com ninguém, exceto um carro parado, também com três pessoas duras e mudas dentro.

Ao chegar ao cruzamento da Chumbicha, um condor em posição de levantar voo, mas como grudado no asfalto, bloqueou minha passagem e tive que descer do acostamento. Ao lado do condor, uma mala aberta no meio da estrada chamou minha atenção. Saí da kombi, enxuguei a transpiração e limpei a poeira da estrada. Com o sol já atingindo seu zênite, calculei que o calor seria de cerca de 45 graus Celsius, pelo menos.

Debaixo de um arbusto espinhoso, quase sem sombras sob o raio do sol selvagem do meio-dia, um velho de barbas compridas e uma bengala retorcida olhou para mim. Ele não estava duro e não parecia adormecido, mas não consegui arrancar uma única palavra dele. Dentro da mala, um tubo de alumínio atraiu minha curiosidade. Abri, junto com duas notas de cem dólares de um verde desbotado, um pedaço de papelão, fiquei mais curioso e pensativo. Em letras vermelhas, uma longa frase:

          “Chegará o dia em que vocês falsos profetas, seus falsos moedas e seus ditos mentirosos que hoje enchem os ouvidos de todos, calarão; um dia em que todos se tornem mudos, fiquem parados, petrificados, sonhando com girassóis, com campos amarelos e laranjas, onde a ganância dos poderosos não os afetem".

Uma voz quase inaudível saiu nesse instantaneamente da boca do velho de bengala e barbas compridas. Abaixei-me para ouvi-lo melhor e o velho repetiu algo que não compreendi; e ele fechou lentamente os olhos até ficar imóvel e mudo, assim como a multidão de manequins que vira pela cidade e os campos. Dobrei meu corpo sobre o dele e perguntei:

– Você está dormindo ou se sentindo mal? -

– Eu estou dormindo, mas também estou morrendo- respondeu o velho com um sussurro quase inaudível.

– O que aconteceu com todas aquelas pessoas duras e mudas? E você se sente bem? - insisti.

– Estou dormindo, não me acorde, deixe-me morrer assim! - O velho respondeu, largando o cajado comprido e nodoso, que me lembrou o cajado de Abraão que eu havia visto em uma Bíblia ilustrada.

– Você sente alguma dor? -, continuei insistindo.

– Não sinto nada, estou dormindo e me sinto bem, não há dor.

- Mas estou morrendo-, respondeu o velho, cada vez mais pálido, apesar de sua tez fosca queimada pelo sol de Chumbicha e pelo frio do inverno nas Salinas.

– Responda senhor, sabe o que aconteceu com todos? O que houve com você? Por que você estava bem até agora mesmo e agora está morrendo? -.

– Estou bem-, e a voz do velho passou de um sussurro inaudível para um som cavernoso, espesso e estrondoso que me fez estremecer e me deu arrepios por todo o corpo.

– Você está acordado ou dormindo? - disse a ele, recuperando-me do terror.

– Eu estava dormindo, você me acordou, mas agora estou ... morto-, e a voz, cada vez mais áspera e forte, oca, retumbante do velho, fazia arrepiar todos os cabelos da minha nuca.

A voz do velho, que antes era fraca e inaudível, agora parecia vir de longe, como de uma caverna no fundo da terra. Sempre me considerei um homem forte e corajoso, mas não pude reprimir um quase desmaio causado pelo medo que essa voz do além-túmulo me causou.

Aterrorizado, deixei o velho agachado e sai correndo, mas logo depois me arrependi; voltei e o estiquei na grama esparsa e salgada. O corpo do velho ainda estava quente e sem a crescente rigidez do cadáver que já era.

Um carro passou nesse momento a mais de 180 por hora, e demorei um pouco para perceber que aquele era o único sinal de vida ativa, além do velho e de mim, é claro, que eu havia notado nas últimas cinco horas.

Até parecia lembrar, antes de voltar para a kombi e ir para o sul, em direção a Córdoba ou Buenos Aires, que pintado no porta-malas do carro que passava se via um girassol amarelo. É a última coisa que lembro antes de desmaiar.

 

Tudo isso aconteceu há cerca de oitenta e oito ou noventa anos atrás, mas me pergunto se não foi um sonho recente. Um retalho das minhas memórias que passou pela cabeça nas últimas dez ou doze horas desde que morri. Ou não será, talvez, um vislumbre da minha última consciência, algo perfeitamente explicável fisicamente? Não estarei um pouco vivo ainda? Não estará minha mente, ou meu cérebro, trabalhando ainda, em algum pequeno lugar escondido que os médicos não viram quando assinaram o atestado de óbito?

Sou testemunha de como a ciência avançou, é claro, para o bem e para o mal durante os anos da minha longa vida. Mas, terá resolvido o mistério da morte? Saberá o cientista o que acontece nos últimos minutos de uma vida?

Mas escuto um barulho da multidão chegando ao cemitério. Vêm sozinhos e sem os seus mortos. Estou totalmente morto? Será que não existe ainda uma projeção da minha consciência que abra uma fenda nas veredas da morte? Será que não tenho direito à ressurreição?

 FIM

P.S.

Entre as muitas variedades das Salinas catamarqueñas, e entre todos os cactos do planeta, nenhum fica maior do que o cacto-elefante. Conhecido no México como ‘cardón gigante’, essa espécie cresce até uns 20 metros e uma única planta pode pesar até 25 toneladas, com seus troncos grossos e muitos galhos. Apesar do seu tamanho, o cacto-elefante é muito sensível ao frio, especialmente às geadas, uma característica que limita o território onde ele é encontrado. A região onde ele mais cresce, além do sul de Catamarca, é a península mexicana da Baixa Califórnia, onde suas flores que abrem à noite e atraem uma espécie de morcego polinizador. Seus efeitos narcotizantes também são notáveis.

 

 

Homem! Presta atenção!

O que a meia-noite profunda diz?

"Dormi, dormi -

De um sono profundo, acordei: -

O mundo é profundo

E o pensamento ainda mais profundo do que o dia

Profunda é a sua dor -,

alegria - mais profunda ainda do que o sofrimento.

A dor diz: passe!

Mas toda alegria quer eternidade,

- Ele quer uma eternidade profunda, profunda!".

Friedrich Nietzsche


2 comentários:

  1. Muito bom
    Ressonâncias de vida e leituras alimentam uma narrativa que prende o interesse

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  2. Obrigado, amigo; sempre tão gentil. Agradeço sua leitura.

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