Ecce homo
Sim! Eu sei de onde venho!
Insaciável como a chama
Eu queimo, queimo e me consumo.
Luz se torna quando eu toco
e carvão quando abandono:
chama sou, sem dúvida.
Friedrich Nietzsche
Pego o meu obituário na mão e já começo a sorrir. A ata de
defunção, então, é uma gargalhada só. Tento me segurar, penso em coisas
abstratas, como fazia o Marito da Tia Julia e o Escrevinhador tentando
abaixar a ereção: "em um triângulo retângulo a soma dos quadrados
dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa".
Mas não consigo: explode a risada e meio cemitério acorda. Peço
desculpas e volto às abstrações: "O amor é a força mais abstrata, mas também a mais potente
que há no mundo". "Nosso amor
se supera, é constante e é de pedra", etc.
Besteiras, vou apertar o nariz com o polegar e
o indicador e pensar nas minhas lembranças; afinal, tenho algum futuro? Não,
então, vamos curtir o passado. Tenho, perdão, tinha até ontem, 109 anos. Morri
de múltipla falência dos órgãos, mas ainda dei banana pra todo mundo. Meu
atestado de óbito foi assinado em 3 de março de 2060, e o último relatório
médico, que eu levei para casa, a pé, depois de dois dias de ir e vir do Hospital
das Clínicas dizia: “saúde excelente, sem problemas cardiorrespiratórios nem renais
ou de qualquer outro tipo”. O envelopão com os trocentos exames ainda está aí,
ao lado da ata de defunção e do obituário que me presentearam netos e
bisnetos -os filhos já se foram faz tempo-.
Mas, como diria meu avô, sou meio azarado -la
yeta puta, que ele denominava em espanhol-, e em seguida lembro de quarenta
anos atrás, quando por causa de um desgosto, uma crise emocional, digamos,
entrei em coma leve. Foram 149 dias, bem no meio da pandemia e de uma suposta
quarentena fajuta que nem os governantes fizeram cumprir e ainda menos a
maioria da população quis cumprir. A pandemia durou três anos no Brasil, dois
nos Estados Unidos e apenas quinze meses no resto do mundo. Bom, mas já pulei
de galho e perdi o fio da meada.
Ah, sim. Contava que sou azarado porque a única
lembrança que me veio à mente foi a dos cinco meses deitado numa cama, ouvindo
todos falarem, contando verdades, mentiras e fofocas, e eu duro como uma pedra,
amarrado na cama como um salame, e sem poder me expressar nem demonstrar o mais
mínimo sentimento, movimento e, muito menos, pensamento.
O mundo lá fora se debatia entre cuidar das
vidas -a morte, que não é outra coisa que o último segundo dessa famosa vida,
já superava os mil por dia, como se toda noite caíssem três aviões transcontinentais-,
ou retomar a economia. Mas, que caralho é a economia? O trabalho? O capital? O
comércio? O agro? O que é, afinal, o mercado, que em 109 anos não
entendi?
Bom, mas também não é esse meu objetivo nestas
breves memórias. Não vou fazer como Brás Cubas, contando quem veio e quem não
veio para meu funeral, mas sim, sem dúvida, vou relatar os melhores momentos da
minha vida:
A viagem numa kombi, de
São Paulo até Tinogasta, Catamarca.
Mortos não sonham, já sei. É o que dizem, pelo menos. Defuntos não
tem fantasias nem menos ainda alucinações; perfeito. Mas juro que isto que vou
contar agora eu vivi - ou melhor, “vivi”, assim entre aspas - nessas últimas
horas, desde que sai do Hospital e vim parar aqui, desse outro lado da Avenida
Dr. Arnaldo, neste simpático e tão bem ornamentado cemitério da Consolação.
Bem, voltando ao relato, lembro que entrei na minha kombi azul
clarinha um final de tarde quente de 1972. Era sábado e estava a 60 km ao norte
de Dean Funes, quase nas portas das Salinas Grandes.
Tentei dar partida uma, duas vezes e nada. Na terceira tentativa, a bateria arriou de vez. Chamar um mecânico a essa hora, no meio da estrada? Como? Sem um orelhão por perto? Uma hora depois já estava cochilando, resignado, quando passou um Gordini e pedi carona. Era vermelho e branco. Um luxo, lembro bem. Que ano é o carro, amigo? perguntei.
– É modelo 1958-
respondeu com orgulho o motorista.
Mas, lindo e tudo, o carrinho furou um pneu um par de horas
depois, e na escuridão da noite era impossível trocá-lo. Sentamo-nos à beira da
estrada, sem asfalto ainda, e preparamos uma fogueira.
– Sou escritor- me disse o dono do Gordini. – Quer que conte um
conto? – perguntou meu carona. Claro, topei na hora:
– Minha amiga Penélope, começou a história, – aquela que esperava
sem grandes expectativas, mas sempre com a esperança secreta de um dia voltar a
dormir com o marido- me disse um dia, bem cedinho de manhã, ao chegar ao
escritório:
– Olha só o que sonhei ontem: na minha casa havia vinte galinhas
que se deliciavam comendo o trigo macerado em água; e eu, por minha vez, me divertia,
feliz, olhando para elas; mais eis que, de repente, do alto do Aconquija, - aqui
pertinho, em Catamarca, aponta o escritor-, desceu um condor e, rompendo o
pescoço de cada uma das minhas lindas aves, matou todas elas, sem dor-. E corre
uma lágrima lenta pelo rosto de Penélope, a paciente esposa.
– E eu, no meu sonho, contava Penélope, chorei e gritei,
lamentando a sorte das minhas galinhas– mas acrescenta minha amiga que o condor
voltou, pousou na calha do telhado, olhou fixo nos seus olhos e disse, com a
voz mais doce e grave que ela tivesse ouvido antes, para não desanimar, para
seguir tendo esperanças.
– Anima-te, muchacha formosa- disse Penélope que falou o
condor, devolvendo-lhe aos poucos a calma- porque isto que estás vendo não é exatamente
um sonho, mas sim uma profecia, uma visão autêntica e verdadeira do que vai
acontecer.
As galinhas, me contava Penélope que lhe disse o condor do Aconquija, eram os seus pretendentes. E ainda acrescentou a ave enorme e majestosa:
– E eu, que vim aqui na forma do grande predador dos Andes, sou teu
esposo, que voltou e vai dar a cada um desses intrusos a morte que eles se merecem-,
sempre segundo o relato da minha amiga Penélope.
– Sim. Acontecem
coisas incríveis na região de Las Chacras, em Catamarca- comenta o
escritor, dono do lindo Gordini que me dera a carona salvadora. Acende um
cigarro de chala nas brasas da fogueira e acrescenta:
– Mas este relato, que a primeira vista parece um espelho da
Odisseia, na realidade não é um conto, nem uma fantasia. Fiquei sabendo mais
tarde que aconteceu mesmo com a minha amiga Penélope, e hoje está entre os mais
fantásticos acontecimentos que os habitantes do vale encantado de Fray Mamerto
Esquiú já testemunhamos. Vivendo e aprendendo.
E eu aqui, na paz do cemitério da Consolação, ainda me lembro que
a viagem de ida e volta para Tinogasta foi tranquila, sem grandes novidades.
Mas ao chegar a San Antonio e passar em seguida por Piedra Blanca, e novamente em
Fray Mamerto Esquiú, os eventos fantásticos voltaram a acontecer.
Lembro bem que as curvas da estradinha de Piedra Blanca para a
capital provincial retiveram essa manhã a névoa da noite anterior. Eu tinha me
despedido da vovó Rosa – na realidade minha bisavó- e saído da casa dos Jaime
um pouco antes das oito da manhã. Dirigia a Kombi azul, já em boas condições,
com muito cuidado, pois um cavalo ou um moleque de bicicleta sempre poderia
aparecer de repente.
E assim mesmo, de repente, tive que pisar nos freios para não bater
com um sulky que estava parado, a uns cinco metros de distância, com o
homem que o conduzia e o cavalo, ambos imóveis, olhando para algum lugar indefinido
nas encostas da Cuesta del Portezuelo.
Sou um cara tranquilo e mais bem valente, mas fiquei com medo e
gritei para o homem se mexer, avisando que não conseguia passar. Mas o homem
nem piscou, e tanto o animal quanto o ele estavam tão duros e imóveis quanto eu
tinha notado antes de chegar à curva. Saí com a kombi pela calçada e me apertei
contra as cercas dos "ovos de galo", até poder passar ao lado
da charrete imóvel.
Na curva seguinte, a cerca de vinte metros de distância, um dos
caminhões dos Jaime estava atravessado quase de um lado a outro da pista. Outra
vez buzinei e de novo tive a surpresa de ver que Júlio Jaime, meu primo, ainda
estava muito quieto, segurando com força o volante. Saí para ver o que estava
acontecendo, mas ali mesmo notei que outros dois carros, a menos de cem metros
da curva, também estavam parados, estáticos, com seus motoristas imóveis e
silenciosos.
Cheguei até a caminhonete de Julio, subi no estribo e fiquei
paralisado ao ver que o primo ainda olhava para o horizonte, o queixo levemente
erguido para o retrovisor, mas duro, mudo e sem fôlego. Toquei, pensando em uma
síncope, uma parada cardíaca, um derrame repentino. Mas não, Julio estava morno,
normal, nem quente de febre, nem frio de morto. Ele parecia apenas um homem
adormecido, só que no meio da estrada, com a caminhonete cruzada de ponta a
ponta no asfalto, impedindo totalmente o trânsito.
Virei-me rapidamente para o sulky e o homem ainda estava do
mesmo jeito! Corri para o cavalo e até o condutor do veículo: os dois estavam
rígidos como Júlio Jaime. A cabeça do cavalo estava ligeiramente voltada para
trás, mas os olhos eram duas bolas brilhantes e duras, o focinho sem fôlego e o
corpo quente, como se tanto o cavalo quanto o cocheiro da charrete tivessem
acabado de morrer sem cair, sem perder o seu fulgor vital, nem as cores, assim
como Julio, como se estivessem simplesmente adormecidos, mas de olhos abertos.
Dei marcha ré, e voltei o caminho até achar outra saída. Acelerei
e cheguei em vinte minutos até San Fernando de Catamarca. Desesperado, driblei
com a kombi todos os corpos sem movimento, congelados, que pareciam ter querido
cruzar a rua San Martín em algum momento. Desviei de dois carros e um ônibus
que ficaram largados e não parei até chegar na Plaza San Martín.
Mais o que vi foi mais do mesmo panorama desolador. Não pensei
duas vezes e entrei no primeiro posto de gasolina; enchi o tanque, e ainda peguei
duas latas de vinte litros cada uma com combustível extra - não houve movimento
algum para impedir que o fizesse, e não havia ninguém a quem pagar -, antes de
iniciar uma corrida louca para ou sul, em direção a Córdoba ou até Buenos Aires
se fosse necessário, ou para qualquer lugar onde encontrasse um ser humano que
falasse comigo e pudesse me contar o que havia acontecido.
Mais uma vez nas Salinas Grandes, e ao longo do caminho, não havia
cruzado com ninguém, exceto um carro parado, também com três pessoas duras e mudas
dentro.
Ao chegar ao cruzamento da Chumbicha, um condor em posição de
levantar voo, mas como grudado no asfalto, bloqueou minha passagem e tive que
descer do acostamento. Ao lado do condor, uma mala aberta no meio da estrada
chamou minha atenção. Saí da kombi, enxuguei a transpiração e limpei a poeira
da estrada. Com o sol já atingindo seu zênite, calculei que o calor seria de cerca
de 45 graus Celsius, pelo menos.
Debaixo de um arbusto espinhoso, quase sem sombras sob o raio do
sol selvagem do meio-dia, um velho de barbas compridas e uma bengala retorcida
olhou para mim. Ele não estava duro e não parecia adormecido, mas não consegui
arrancar uma única palavra dele. Dentro da mala, um tubo de alumínio atraiu
minha curiosidade. Abri, junto com duas notas de cem dólares de um verde
desbotado, um pedaço de papelão, fiquei mais curioso e pensativo. Em letras
vermelhas, uma longa frase:
“Chegará o dia em
que vocês falsos profetas, seus falsos moedas e seus ditos mentirosos que hoje enchem
os ouvidos de todos, calarão; um dia em que todos se tornem mudos, fiquem
parados, petrificados, sonhando com girassóis, com campos amarelos e laranjas,
onde a ganância dos poderosos não os afetem".
Uma voz quase inaudível saiu nesse instantaneamente da boca do
velho de bengala e barbas compridas. Abaixei-me para ouvi-lo melhor e o velho
repetiu algo que não compreendi; e ele fechou lentamente os olhos até ficar
imóvel e mudo, assim como a multidão de manequins que vira pela cidade e os
campos. Dobrei meu corpo sobre o dele e perguntei:
– Você está dormindo ou se sentindo mal? -
– Eu estou dormindo, mas também estou morrendo- respondeu o velho
com um sussurro quase inaudível.
– O que aconteceu com todas aquelas pessoas duras e mudas? E você
se sente bem? - insisti.
– Estou dormindo, não me acorde, deixe-me morrer assim! - O velho
respondeu, largando o cajado comprido e nodoso, que me lembrou o cajado de Abraão
que eu havia visto em uma Bíblia ilustrada.
– Você sente alguma dor? -, continuei insistindo.
– Não sinto nada, estou dormindo e me sinto bem, não há dor.
- Mas estou morrendo-, respondeu o velho, cada vez mais pálido,
apesar de sua tez fosca queimada pelo sol de Chumbicha e pelo frio do inverno
nas Salinas.
– Responda senhor, sabe o que aconteceu com todos? O que houve com
você? Por que você estava bem até agora mesmo e agora está morrendo? -.
– Estou bem-, e a voz do velho passou de um sussurro inaudível
para um som cavernoso, espesso e estrondoso que me fez estremecer e me deu
arrepios por todo o corpo.
– Você está acordado ou dormindo? - disse a ele, recuperando-me do
terror.
– Eu estava dormindo, você me acordou, mas agora estou ... morto-,
e a voz, cada vez mais áspera e forte, oca, retumbante do velho, fazia arrepiar
todos os cabelos da minha nuca.
A voz do velho, que antes era fraca e inaudível, agora parecia vir
de longe, como de uma caverna no fundo da terra. Sempre me considerei um homem
forte e corajoso, mas não pude reprimir um quase desmaio causado pelo medo que essa
voz do além-túmulo me causou.
Aterrorizado, deixei
o velho agachado e sai correndo, mas logo depois me arrependi; voltei e o estiquei
na grama esparsa e salgada. O corpo do velho ainda estava quente e sem a
crescente rigidez do cadáver que já era.
Um carro passou nesse
momento a mais de 180 por hora, e demorei um pouco para perceber que aquele era
o único sinal de vida ativa, além do velho e de mim, é claro, que eu havia
notado nas últimas cinco horas.
Até parecia lembrar,
antes de voltar para a kombi e ir para o sul, em direção a Córdoba ou Buenos
Aires, que pintado no porta-malas do carro que passava se via um girassol
amarelo. É a última coisa que lembro antes de desmaiar.
Tudo isso aconteceu há
cerca de oitenta e oito ou noventa anos atrás, mas me pergunto se não foi um
sonho recente. Um retalho das minhas memórias que passou pela cabeça nas
últimas dez ou doze horas desde que morri. Ou não será, talvez, um vislumbre da
minha última consciência, algo perfeitamente explicável fisicamente? Não
estarei um pouco vivo ainda? Não estará minha mente, ou meu cérebro,
trabalhando ainda, em algum pequeno lugar escondido que os médicos não viram
quando assinaram o atestado de óbito?
Sou
testemunha de como a ciência avançou, é claro, para o bem e para o mal durante
os anos da minha longa vida. Mas, terá resolvido o mistério da morte? Saberá o
cientista o que acontece nos últimos minutos de uma vida?
Mas
escuto um barulho da multidão chegando ao cemitério. Vêm sozinhos e sem os seus
mortos. Estou totalmente morto? Será que não existe ainda uma projeção da minha
consciência que abra uma fenda nas veredas da morte? Será que não tenho direito
à ressurreição?
P.S.
Entre
as muitas variedades das Salinas catamarqueñas, e entre todos os cactos
do planeta, nenhum fica maior do que o cacto-elefante. Conhecido no
México como ‘cardón gigante’, essa espécie cresce até uns 20 metros e
uma única planta pode pesar até 25 toneladas, com seus troncos grossos e muitos
galhos. Apesar do seu tamanho, o cacto-elefante é muito sensível ao frio,
especialmente às geadas, uma característica que limita o território onde ele é
encontrado. A região onde ele mais cresce, além do sul de Catamarca, é a
península mexicana da Baixa Califórnia, onde suas flores que abrem à noite e
atraem uma espécie de morcego polinizador. Seus efeitos narcotizantes também
são notáveis.
Homem! Presta atenção!
O que a meia-noite profunda diz?
"Dormi, dormi -
De um sono profundo, acordei: -
O mundo é profundo
E o pensamento ainda mais profundo do que o dia
Profunda é a sua dor -,
alegria - mais profunda ainda do que o sofrimento.
A dor diz: passe!
Mas toda alegria quer eternidade,
- Ele quer uma eternidade profunda, profunda!".
Friedrich Nietzsche
Muito bom
ResponderExcluirRessonâncias de vida e leituras alimentam uma narrativa que prende o interesse
Obrigado, amigo; sempre tão gentil. Agradeço sua leitura.
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