segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Missão impossível: acabar com o general Videla. Primeira Parte.

Archivo:Pedro Milesi.jpg
1.
Juancito entrou no quarto alugado da doña Manuela e se encontrou com ele de cara, assim, de chofre, sem aviso prévio. Bem ao lado do roupeirinho e na frente da lua do espelho, que não o refletia, e sobre o qual ele nem fazia sombra. O Diabo não lhe deu tempo de nada: antes que o Juancito pudesse pestanejar ele já o tinha levantado até a altura dos olhos, fitando-o com o olhar vermelho dos bêbados, mas sim falar palavra. Era o fim de uma época e Juancito teve tempo de refletir nesses longos segundos, lembrar e repensar os últimos seis anos.

Seis anos e meio na realidade; e hoje, 24 de dezembro de 1975, à noite, é o fim desse ciclo. E Juancito lembra que tudo começou em 1969, com enormes mobilizações populares; o Cordobazo, a insurreição operária e popular que tomou conta de Córdoba, e depois igual em Rosário, e em quase todas as capitais da Argentina.

- Menos em Buenos Aires!- solta uma gargalhada o Diabo, e Juan que é valente e destemido, sente as pernas frouxas, mas não desmaia. - Sim, mas e agora? E o Rodrigazo?- desafia Juancito o Diabo, porque apenas seis meses antes desse Natal doloroso para muitos, milhares de operários de todo o Grande Buenos Aires tinham saído às ruas e jogado na lata do lixo da história ao ministro de economia, Rodriguez, e ao Bruxo López Rega, alma do governo de Isabelita e das Três A. Mas o Juan sabia que o ciclo se fechava. Essa tinha sido a última de centenas de enormes mobilizações populares, "puebladas", e alçamentos de operários. E sabia Juancito que, por trás dos fascistas das Três A e de López Rega, soavam ensurdecedores os ferrolhos das metralhas e as 45 dos milicos. Juan não tinha a menor dúvida que, depois da Isabelita, botas e fardas ocupariam a cena nacional, outra vez, como no Chile e Uruguai, como no Brasil.

-Vim te oferecer um trato sério- disse o Diabo, e Juan pensou, já sei, o arqui-conhecido negócio de comprar a minha alma. - Senhor Sete Peles, eu sou ateu, não acredito em almas nem em vida eterna, muito menos em vida após a morte, morreu, acabou; mas posso ouvir a sua oferta, e se for do meu interesse, sem compromisso...- mas o rugido do Diabo não deixou o Juancito continuar. - Cala a boca Juan! aqui não é porta de cadeia, nem refeitório universitário, nem comissão interna de fábrica. Chega de discursos. Quero a tua alma a troca de uma missão difícil, porém, possível: matar o Videla.

Juan parou e pensou: por que matar o Videla e não o Bruxo López Rega ou o general Menéndez? E claro, "o diabo sabe por diabo, mas sabe mais por velho", pensou. O Videla deve ser o cara que vai dar o golpe, é claro; ele é quem levou as tropas para esmagar Tucumán. Fazia menos de três semanas que Juan tinha conseguido fugir do cárcere em Encausados de Córdoba, apoiado por dois comandos da organização comunista Poder Obrero. E lembrava Juan que nesses seis anos e meio, que também era o tempo de vida da sua organização revolucionária, haviam florescido dezenas de grupos de combate, socialistas alguns, peronistas outros, que tinham pegado nas armas para defender-se da ditadura primeiro, e para atacar quartéis e delegacias mais tarde.

E mesmo que as duas linhas avançassem paralelas -os operários lutando nas ruas por um lado, e as organizações revolucionárias enfrentando os milicos nos quartéis-, poucas vezes tinham se tocado. É verdade que centenas de operários em todo o país tinham entrado nas milícias irregulares; verdade também que dezenas de greves e ocupações de fábricas, bairros e favelas tinham sido dirigidas pelos militantes dos pequenos partidos insurretos. Mas o Juan sabia que o tempo da revolução estava se esvaindo entre as mãos, e nem a vontade dos revolucionários, nem as das próprias massas populares podiam torcer já o rumo que as forças políticas tinham traçado: o peronismo no governo estava totalmente desarticulado; o povo não acreditava nesses políticos, burocratas sindicais ou fascistas. Os pequenos partidos revolucionários sendo descabeçados uma um.

- E qual é a tua vantagem em matar o Videla? E por que eu, além do mais?

-Porque você é íntegro e lúcido; é um “puro”, convencido do destino inevitável de uma mudança, sempre e quando o povo puder e quiser fazer essa mudança. E você é preciso, e não vai falhar. É uma missão difícil, mas não impossível!- retrucou o Sete Peles, e largou o pescoço do Juan que havia passado esses longos cinco? dez? minutos pendurado contra a parede, apertado pela mão de ferro do Diabo. –Vou te deixar pensar uns dias. Noventa dias, para ser mais exatos. Duvido que em março do ano que vem você não queira matar o general Videla-.

-Mas se eu não tenho alma, Lucifer...ninguém tem! Como eu vou te pagar?- disse Juancito, fazendo a última tentativa de negociar com o Diabo. Mas o Mau desapareceu, virou fumaça, deixando o fedor do enxofre no quarto, e o Juan pensativo.

2.

Dia 24 de março de 1976: três meses exatos depois do maior ataque de uma guerrilha a um quartel em América Latina, quase seis meses sem grandes mobilizações populares ou operárias, um helicóptero parte do terraço da Casa Rosada com a presidente Isabelita presa, prisioneira do golpe militar de Videla que em menos de 48 horas já havia prendido centenas de militantes populares, forçado enfrentamentos armados e assassinado a dezenas de estudantes, operários, profissionais liberais, e quanto opositor as Três A de López Rega não tivessem eliminado nos meses anteriores ao golpe.

E um segundo diabo se aparece em Buenos Aires, agora na casa do Índio em Lomas del Mirador; e a proposta é a mesma: matar o Videla. O Índio ri, descrente de deuses, diabos e vidas após a morte.

Olha, seu Mandinga; desculpe mas não acho que eu possa matar o Videla; é difícil e é inútil. Pra que? Os milicos colocam outros dois generais no lugar, na hora! Além disso, tudo bem, eu faço a ação –que não deixaria de ser justiceira, concordo- mas nem tenho alma para lhe pagar. Aliás, eu deveria ser pago pelo risco- tentou ainda o Índio Santiago.

-Ok, seu Índio, você é um revolucionário, acredita no povo e na classe operária e não enxerga o benefício de eliminar o tirano. O problema da alma, de vida após a morte, etc., deixe por minha conta. Mas fica claro que daqui a uma semana, exatamente, você e outros dois escolhidos se encontrarão em São Paulo, e deixarão tudo pronto e em ordem para atacar Campo de Mayo, bem no dia da visita do general-presidente Videla. Não há porem nem desculpas. É uma ordem e você não tem escolha. Dia 4 de abril espero vocês no vão do Masp, às três e meia da tarde. Vou estar vestido de camisa azul e calça branca. Não falhe- e saiu o Diabo batendo a porta e deixando um rasto de fumaça azulada e um fedor insuportável a enxofre e fósforo.
3.

Era meia noite do dia 25 de março, em Córdoba, e o velho Pedro Milesi preparava a sopa para ir dormir na casa da Susana Fiorito, amiga e companheira de mil lutas. As tropas já haviam cercado a casinha onde ele morara até o dia 19, e começaram a caça ao mais velho dirigente vivo, lutador e testemunha das gestas heróicas do povo nos últimos sessenta anos.

-Pedro Milesi, sou eu, Satanás, o Sete Peles, e não vou repetir a minha proposta: você vai ajudar matar o Videla- soltou rápido e direto o Diabo.

-Juá, juá, seu Diabo- gargalhou o Velho Pedro, que alguma vezes já foi foi Eduardo Islas e outras Pedro Maciel; e riu com o sotaque e a fonética dos índios tehuelches que ele conhecera na Patagônia, nas suas lutas para organizar os peões rurais. –Deixe eu rir, Satanás, eu sou velho, nasci em 1888, não vou durar mais do que três ou quatro anos. Além do que, o meu antigo desejo era matar o Franco primeiro- retrucou, audacioso, o Pedro Milesi.

-Matar o Franco- acariciou-se a barba espessa do cavanhaque o Diabo. –Até poderia ter sido, Pedro, mas você não acha que foi melhor assim? Agonizou na cama, durante meses, como tinha sido previsto na “Maldição a Franco” de Pablo Neruda, lembra? Franco morreu, além do mais, eu já tinha visto antes o general Líster, o republicano que cruzou o rio Ebro e deu a surra nos franquistas. E, sim, o Velho Milesi lembra que Líster se exilou em Cuba, anos depois de perdida a guerra civil na Espanha, e sempre esperava apoio do Ché. E Guevara até lhe ofereceu a sua arma, e propôs ficar sob seu comando na invasão à península. E antes, ainda, o general Bayo, republicano mas não comunista, exilado no México que adestrou nas técnicas de guerrilhas os revolucionários do Granma, mas por ser velho demais não foi pra Serra Maestra, e que chegou depois em La Habana trás a vitória de Castro, com a esperança de una ajuda cubana para derrocar a Franco, o que nunca recebeu, de tal maneira que Bayo terminou seus dias em Cuba...

-Não, seu Diabo, não pude fazer justiça com o velho tirano Franco; e você não ouviu Líster nem Bayo para dar fim nele, eles que tinham um exército guerrilheiro do lado; por que eu iria confiar na sua ajuda para dar cabo no general Videla?- foi cedendo Milesi, curioso mais que ansioso de saber como é que se poderia acabar com o chefe dos sequestradores e torturadores da ditadura.

(Continuará no capítulo 4) JV. Dezembro de 2011.

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