domingo, 4 de dezembro de 2011

O diabo sabe por diabo, mas sabe mais por velho.


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O diabo sabe por diabo, mas sabe mais por velho.

Capítulo 32

O quinto caderno “Laprida” de 200 folhas começava um pouco diferente dos outros anteriores que fui lendo até agora; por isso há ainda na família quem pense que esse caderno é a mera continuação do quarto; os temas mágicos ou fantásticos se sucedem, talvez porque o meu velho tinha começado a ficar obcecado com a ideia da morte e, como sempre tinha sido um cético sem fé nem religião, talvez tivesse começado a sentir medo do famoso “além”. 
Abro e leio:

 O outro diabo

––Todos os que vivemos aqui há anos, nos arredores do antigo loteamento, sabemos que o túnel escuro, longo e úmido que passa por debaixo das vias da estação de trem do velho Ramos Mejía é uma das tantas entradas que comunicam ao inferno, sabia?–– me dizia a tia Rosa cada vez que a visitava, nos primeiros anos depois do meu retorno a Buenos Aires; e eu me lembrava que num vale de Tras Las Sierras, em Córdoba, existem outras duas entradas famosas às cavernas do Mandinga, num desfiladeiro fundo e estreito, por onde passam as almas penadas dos índios comechingones que não quiseram render-se aos espanhóis, há mais de quatrocentos anos atrás, e que se jogaram precipício abaixo, com seus filhos nos braços, preferindo a morte do que a escravidão.

A febre está aumentando e as lembranças viram delírio; a enfermeira da meia noite entra no quarto e controla meus sinais vitais.

Começo a sonhar e a febre me faz lembrar de uma caverna que vimos um dia com Victoriano, no meio da espessura do mato em La Falda, onde se perde toda orientação e o cerro parece que é igual em todas as direções. Vimos uma entrada secreta, oculta entre o mato emaranhado, cuidada por dois pumas ferozes, Fomos embora sem entrar, mas depois Chazarreta e Fuenzalida nos contaram que essa entrada leva a una caverna ampla e lóbrega, onde dança El Mandinga quando se celebram os “aquelarres” e orgias. As velhas e os anciãos se transformam em jovens, os enfermos saram, e a fealdade se cobre com a formosura.
Dizem que a Salamanca é  o lugar donde o Supay ensina suas más artes às bruxas, que  se juntam ai três vezes por semana. Mas, voltando à conversa da minha tia Rosa, ao loteamento e às linhas da estação de trens de Ramos Mejía:

“––O antigo loteamento tinha sido vendido a preços muito baixos e logo tinham acabado todos os terrenos disponíveis. É que os vendedores de lotes usavam um recurso bem engenhoso: deixavam esparramados pelo chão dezenas de troços de trilhos de trem, para fazer acreditar aos possíveis compradores que as linhas do tramway iriam se estender até o interior dos sítios. Ramos já não tinha mais essa antiga atração nos meus anos da primeira juventude, quando aconteceu o que vou te contar agora, e por algum motivo, todos pensavam que era um lugar esquecido por Deus e amaldiçoado pelo azar–– começa sua história minha tia Rosa.

––Era um fim de tarde estranhamente frio para a época do ano, com algo de vento e de garoa, uns poucos dias antes da noite de Natal, e o louco Leiva, um dos brigões mais perigosos do bairro, estava jogando dados no boteco da esquina da estação. Fazia pouco menos de uma hora tinha ficado conversando um longo tempo com Villanueva, que saiu do bar com um caderno “Lanceros” e dois “Laprida”, cheios de anotações, debaixo do braço–– segundo me conta a tia Rosa.
––Como se surgisse do nada, apareceu de repente e veio interromper-lhe o jogo e perturbar-lhe a concentração, um cara alto e bem magro, bigodudo, vestido com um terno de risquinhos brancos e cinzas e uma gravata azul escura, um colete pé de galinha e uma espécie de “chambergo” gaúcho, chapéu de abas largas e preto. Boa pinta e pilchas muito elegantes, mas quem prestasse atenção poderia ver, sobressaindo por cima do colarinho da camisa branca, uma jaquetinha militar verde-oliva, amassada e desbotada–– segue contando minha tia Rosa, enquanto prepara a erva e o açúcar para o mate.

––Muito boa noite, senhor; sou o Mandinga–– disse o visitante, cumprimentando Leiva, batendo continência com os saltos das botas, e fazendo um gesto cômico que fez Leiva lembrar do desenho da Pantera Rosa; sempre segundo conta minha tia, e enquanto eu sinto no ar um leve e inexplicável cheiro de enxofre.
––Leiva botou a mão fechada na empunhadura da peixeira, e respondeu o cumprimento timidamente, e sem levantar muito a vista. Tinha quase certeza de tê-lo ouvido na TV em outra ocasião, e inclusive de ter visto o diabo algumas vezes antes; essa voz cavernosa e medonha era difícil de ser esquecida–– continua minha tia, e me passa o chimarrão. 
–– O diabo se acomodou lentamente numa cadeira de palha ao lado da mesa do baralho, e sorriu com uma luminosidade estranha entre os grandes, irregulares, afiados e amarelados dentes que de repente apareceram por trás do bigodão preto. O brigão Leiva, famoso no velho bairro por ser o último destro no uso e abuso do facão, pelo menos o último “guapo ainda vivo, olhou de relance e verificou que o espelho enorme que ficava atrás do balcão não refletia nenhuma outra imagem a não ser a sua própria, o que não fazia mais que confirmar a presencia do Malo. Me permite que o acompanhe?–– pediu o Diabo Supay a Leiva, com um frio tom marcial e uma virilidade castrense inconfundíveis.

––Sim, pois não, sente-se aqui ao lado. Veja, precisa ter um pouco de memória pra lembrar de todos os dados que vão saindo, não é?–– tentou ser gentil Leiva, conta Rosa, e mandou que servissem um moscatel ao Malo, mas nem então tirou a mão da empunhadura do facão.
––Muito bom, Leiva–– o elogia o Diabo, estalando a língua do modo mais vulgar possível enquanto saboreava o moscatel. ––E onde aprendeu a jogar os dados assim, com esse efeito? ...mas veja, nem me responda, para ter ser muito sincero, um joguinho de dados não me parece grande coisa para um bom jogador como você, Leiva–– soltou o verbo de repente o Malo.
––Deixou passar um longo minuto em silencio, de puro efeito, depois da primeira frase terminante e displicente, se tragou meia garrafa de moscatel direto do bico, e largou outra descarga com dureza: ––E porque sou velho, e sou Supay, também conheço os dados e as cartas que você vai jogar amanhã, depois de amanhã, semana que vem e, em fim, todas as que você vai tentar ainda. Igual com o bilhar, as “tabas”, e até as bochas dos velhinhos e as roletas de todos dos bingos e cassinos,  sabia?–– se assusta minha tia Rosa com o seu próprio relato, treme levemente e enxuga o suor das mãos com um guardanapo.
––Você está falando agora com o Supay, o Sete Peles, ou Satanás se assim o prefere, o dono de todos os naipes  e as fichas do mundo–– continua contando Rosa que disse o milico Mandinga.

––O brigão Leiva, sem saber muito bem o que fazer diante do elaborado discurso do demônio, e para ver se conseguia fazê-lo calar-se um pouco enquanto ganhava tempo e podia pôr seus pensamentos em ordem, o convidou timidamente para jogar “chinchón”–– conta mina tia.
––Mas Leiva, eu acho que você não entende, meu amigo. O que eu te estou oferecendo é ganhar para sempre, é o triunfo infinito, a vitória perpétua, sem solução de continuidade, definitiva. Não entende, porra? Posso fazer que suas intuições e seus palpites tenham a força bruta das tropas de choque, os “somatén”, os exércitos invasores, os grupos de sequestros, as “picanas” elétricas e as leis repressivas. Não percebe, caralho?–– se exalta El Malo, e com mais força fecha o punho Leiva no cabo da sua arma. ––E o vigor dos decretos e das leis. E tudo isso por um preço muito baixo, quase ridículo, eu diria; apenas pelo preço de sua alma ––uma pechincha, se me permite dizê-lo assim–– vou fazer com que ganhe rios de dinheiro, fazendas, gado, bancos, emissoras de rádio e TV, as mulheres mais lindas, fortuna inteiras – conta Rosa que insistia, cada vez mais sedutor e irresistível, o diabo.
––Não, não, me perdoe senhor, mas eu realmente não posso aceitar–– responde na hora Leiva, com toda a cautela e respeito, ele, que nunca parecia ter medo de ninguém nem de nada.
––Mas, você é um babaca completo! Diga, Leiva, por acaso você é um desses detestáveis perdedores natos?–– jogou o diabo na cara do brigão no mesmíssimo momento em que errava a jogada, e as cartas voavam com um estranho e repentino vento, e tudo tão de supetão que nem teve tempo de surpreender-se com o fato de que o estranho soubesse seu nome, segundo conta mina tia Rosa a história.
––Não senhor, a verdade é que o que eu mais gosto é apenas jogar– respondeu, educado e respeitoso até demais, sempre segundo Rosa.
––Você é um verdadeiro idiota! Um bundão! Um imbecil completo, Leiva, lamento ter que te dizer isso. Porra!– gritou o Mandinga com o Leiva segundo diz minha tia.
––Você tem quase ganho o paraíso, é verdade; vai morrer de velho; entediado de tanto jogar dadinhos, ou de armar uma encrenca por aí, ou uma briguinha por lá; e depois vai como uma bala pro céu. Mas enfim, perdoe pelo incomodo, Leiva- concluiu o demônio, baixando o tom de voz e moderando a ironia. – De qualquer modo, se não é a sua alma, vai ser outra, dá na mesma para mim– e diz minha tia que aconteceram então uns tremores leves, esparramando pelo piso de madeira os naipes de alguns dos jogadores e fazendo pular os copos em cima do balcão.
–Leiva se sentiu tomado pelo orgulho e por uma raiva súbita, e não pôde resistir à tentação de desafiar o diabo, e se fosse possível, tentar humilhá-lo- continua minha tia.
–Quer que lhe dê um conselho, senhor Diabo ?– se joga de uma vez Leiva, perdendo de vez todo o medo, mas mantendo o respeito anterior com o Mandinga. –Olhe, vá por onde veio, por favor…sinceramente, por aqui, por esses lados, ou pelo menos comigo, o senhor não vai conseguir nada.
O demônio o olhou de cima para baixo, pelo canto do olho, e por debaixo da aba do chapéu, como que medindo-o e ironizando ao mesmo tempo. —Você se esqueceu com quem está falando, Leiva. Eu sou um General da Pátria, dos de antigamente, um Diabo, um arauto das melhores tradições nacionais, caralho!, a reserva moral da Nação! E sempre consigo todinho o que me proponho - conta minha tia Rosa que trovejou rouca a voz do Mandinga, estremecendo de pavor aos poucos paroquianos que continuavam no bar até essa hora, e levantando um vento sudeste gelado, que esparramou outra vez todos os naipes das mesas.
––Veja, senhor––  conta Rosa que falava Leiva com a voz meio desafinada e quase que tremendo.  – Pelo pouco que sei sobre o senhor, suponho que o que lhe interessa mais é comprar, ou corromper uma alma que seja pura de verdade. Por aqui, nessas bandas pelo menos, verdade seja dita, há muito poucas assim. Além disso, senhor, esse bairro é o da má sorte. Por esses lados de Ramos Mejías, senhor, tudo sai mal, muito mal; o bairro do loteamento é amaldiçoado- insistia, e quase implorava ao diabo, Leiva, para  que o deixasse em paz.
––Olha, velho, vamos fazer uma aposta e um trato - o diabo pegou Leiva pelo colarinho, o levantou a um metro do chão, mas abaixou a voz e pronunciou lentamente, como mastigando cada sílaba, segundo me conta agora minha tia Rosa.

––Se, por uma dessas casualidades, eu consigo uma alma neste bairro de merda antes do amanhecer, vou levar também a sua, eu juro. Se eu perder, você poderá me pedir o que quiser, qualquer coisa que puder imaginar -  trovejou a voz do demônio, acrescenta mia tia com um dengue, enquanto se levanta para me cevar um mate amargo.
––O brigão Leiva demorou a responder – conta minha tia. – Enquanto pensava, o mais rápido que a surpresa e o medo o permitiam e como para dar-se tempo, foi juntando as cartas esparramadas sobre a mesa suja.
––No final, Leiva se repôs do impacto e respondeu ao Supay, levantando-se, muito lentamente - segue Rosa.
––Você sabe que o que me está propondo agora, senhor, talvez em outras circunstâncias fosse inaceitável para mim, mas sou um homem pobre, que está ficando velho, a aposentadoria está atrasada, e por isso aceito sua generosa oferta. Claro que, e espero que não se ofenda, vou ter que acompanhá-lo para ter certeza que você não vai fazer nenhuma trapaça, certo? - fechou seu pacto com o diabo, e estendeu-lhe a mão, oferecendo-lhe um tímido apertão que o Malvado ignorou olimpicamente.

––Dizem as poucas testemunhas transnoitadas que andavam pelo povoado naquela madrugada estranhamente gelada de dezembro, que os dois saíram do boteco do Velho Ramos, caminhando juntos pelas calçadas escuras–– segundo me conta Rosa ––e andaram rondando durante meia hora por debaixo das bananeiras e dos eucaliptos da praça deserta, em meio ao revoar de folhas ocres e amarelas, mais apropriadas para o outono que pras vésperas do Natal, e com um intenso cheiro a enxofre. Ao chegar à avenida cruzaram com alguns homens de mal-viver, bêbados, briguentos e malditos, que ao demônio não serviram de nada porque suas tristes almas já estavam condenadas há tempos, e o fogo eterno os esperava no inferno desde sempre.

––Leiva, que não era nenhum modelo de boas maneiras, estava bastante perturbado; porque o seu acompanhante, o Mandinga, ia fazendo, durante o longo passeio de sua caçada de almas, todo tipo de pequenas crueldades, “para amenizar o frio”, segundo disse a Leiva. Ao passar pela rua Brusque, por exemplo, arrancou a boina de um pobre velhinho com um tapa, e em Rivadavia esquina com Blumenau, deu um feroz pontapé num gatinho que tentou em vão correr, mas o diabo foi mais rápido; e a cada tanto parecia que só para aumentar o pavor a Leiva, rompia a cantar una espécie de pregão, como una ladainha ou pregaria, usando uma voz doce, estranhamente linda e profunda, de barítono. 
––Atenção, quero almiiinhaaas, almas tristes, almas penadas, almas boas, almas desoladas, espíritos de porco, anjinhos, pervertidos, malvados, malditos… quem me vende a almaaaa? – abria os pulmões e soltava o verbo Mandinga, enquanto a doçura de sua voz de ópera se misturava, contraditoriamente, ao cheiro de enxofre, comendo-lhe os pensamentos e perturbando-o ainda mais, ao brigão Leiva.

––Foram caminhando até o centro da capital, por Rivadavia, ao longo da linha do trem, e se encontraram com uma moça de uma incrível beleza, pobre e humilde–– diz Rosa, e fica estranhamente perturbada, enquanto percebo que no armário a lua do espelho reflete a minha figura...mas não a da Rosa!.
––Veja bem, Leiva–– disse de repente, sorrindo o Mandinga, segundo me conta minha tia, com um certo rubor repentino que eu não entendi de imediato.

––Acho que vou lhe ensinar como é que se trata uma mulher, Leiva. Nota-se que essa menina não se alimenta bem há dias. Tem fome, e parece ser muito pobre, e mesmo que você não ache, Leiva, ela não vai resistir ao atrativo da farda, as medalhas, e sobretudo, a luxuria do poder. Esta será a sua noite de debut. Eu lhe posso assegurar que a pesar de que ela não saiba, nem imagine o que é, ela vai conhecer, hoje, agora mesmo, as voluptuosidades do amor e da carne, mesmo que eu tenha que pagar, e assim, tadinha, fazer dela uma puta – sussurra cada vez mais baixo Rosa, minha tia de Ramos Mejía, sem levantar o olhar de tanta vergonha, e um cheiro acre se arrasta por entre as tábuas de roble do velho casarão da minha tia solteirona. E enquanto isso, vejo que nas calçadas da Cañada e do Paseo Sobremonte já começam a chegar as colunas de operários do grêmio mecânico do SMATA, dos empregados públicos e de Luz y Fuerza.

––Bom, senhor, se você diz; mas não se esqueça que nesse bairro maldito, tudo sai sempre mal, muito mal - respondeu Leiva. Sem lhe dar muita atenção, Mandinga, elegante, e displicente, disfarçado de homem magro e alto, se afastou um pouco, deixando assustado o Leiva, à espera no ponto de ônibus da esquina. Depois se meteram num hotelzinho barato e escuro – continua contando minha tia, morta de vergonha pelos detalhes escabrosos do relato, enquanto esquenta de novo a água para cevar-se agora o mate doce da tarde, e lhe brilham cores estranhas no olhar perdido nas lembranças do passado. E aos grupos de manifestantes do grêmio mecânico e dos eletricistas de Córdoba se somam agora centenas de estudantes, que cobrem todo o Paseo Sobremonte, sabem nos bancos, arrancam cartazes e madeiras das obras em construção, armam barricadas y acendem fogueiras.

––Ééé…meu nome é Flor – disse a menina, e o diabo teve um calafrio de prazer maligno e lhe brilharam os olhinhos cruéis. - Por favor, senhor, sou nova no bairro, cheguei faz uma semana do Chaco; peço que me trate bem. É que…sabe, senhor?… saí para andar um pouco e me deu uma fome terrível… – e reluzem mais as pupilas perversas do Mandinga, conta e se ruboriza, e esconde um brilho estranho que aparece em seu olhar, minha tia Rosa. E vejo pela janela da clínica que as colunas de operários e estudantes se estendem por toda a Cañada e no cruzamento da Avenida Colón. Já se houve sirenes e disparos isolados, enquanto vão chegando os carros de assalto e a tropa da polícia provincial montada a cavalo.

Depois que passaram mais de três horas, a menina, exausta, mas sorridente e muito mais confiante, disse ao Mandinga: - Já não lhe tenho medo, senhor; o senhor também é novo no bairro? – e quando enfim saíram do hotelzinho, abraçados, o Diabo tirou a carteira, conta envergonhada, com um pouco de lágrimas surgindo dos olhos entrefechados nos quais brilhavam estranhos reflexos azulados, Rosa. E um grupo de uns sessenta manifestantes cercam os policiais de um carro de assalto em frente da Xerox, e então o oficial solta as armas e começa a cantar o Hino Nacional, e os operários aplaudem, e se unem todos na homenagem patriota, emotiva e ingênua.

––Foi fantástico, inesquecível, jovenzinha. Tome, pegue toda essa grana é sua, você merece – disse Satanás, entregando à menina uma pilha de dinheiro de todas as épocas, pesos ,austrais, cruzados, e até patacões brasileiros do século XIX, um bolo parecido aos que se viam nas histórias em quadrinhos do índio Patoruzú. Enquanto, pela janela da clínica vejo que os grupos densos de estudantes começam a se dispersar de golpe. Os carros de assalto saem de cena, ou ficam abandonados, sem policiais; e mais de quarenta colunas de fumaça negra se levantam por todo o largo da cidade de Córdoba.

––Não, obrigada, não, eu não quero nada. Fiz tudo por afeto, ou por pena, sei lá, sinceramente, de coração, juro por Deus - respondeu a menina, fazendo o sinal da cruz, na testa e nos lábios. E o diabo xingou com raiva, soltou uma chama pelo nariz, chutou uma lixeira, deu meia volta e com passo indignado e um olhar furioso se aproximou de Leiva. ––Vai logo, que já é tarde, caralho!–– passou a tratá-lo de você, de repente, sem nenhuma elegância, e sem motivos aparentes, com um odor de fundo no qual o azul da nuvem de enxofre se misturava, repulsivo, com a neblina no meio-fio da calçada. E ás cinco em ponto da tarde, como na poesia de García Lorca, as tropas do exército substituem à derrotada polícia da província, e o Cordobazo já é um evento nacional. Vendo tudo por detrás das cortinas da clínica, me dou conta que em maio de 1969 a insurreição cordobesa era muito mais radical do que tinha sido, um ano atrás, o Maio Francês. E sabia também que a janela do meu quarto de enfermo só me deixava ver um quadradinho estreito da historia, um fato, porém, que iria mudar minha vida e a de todo o país.

Leia mais em “Crônicas de Utopias e Amores, de Demônios e Heróis da Pátria”, JV, 2006.
o cad

Um comentário:

  1. Também gostei muito desta crônica, Javier! Mas seu excelente português se beneficiaria de uma boa revisão... :)

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