domingo, 18 de dezembro de 2011

A mulata e a difícil missão de eliminar o tirano Videla (conto completo)



1.

Juancito entrou no quarto alugado da doña Manuela e se encontrou com ele de cara, assim, de chofre, sem aviso prévio. Bem ao lado do roupeirinho e na frente da lua do espelho, que não o refletia, e sobre o qual ele nem fazia sombra. O Diabo não lhe deu tempo de nada: antes que o Juancito pudesse pestanejar ele já o tinha levantado até a altura dos olhos, fitando-o com o olhar vermelho dos bêbados, mas sem falar palavra. Era o fim de uma época e Juancito teve tempo de refletir nesses longos segundos, lembrar e repensar os últimos seis anos.

Seis anos e meio na realidade; e hoje, 24 de dezembro de 1975, à noite, é o fim desse ciclo. E Juancito lembra que tudo começou em 1969, com enormes mobilizações populares; o Cordobazo, a insurreição operária e popular que tomou conta de Córdoba, e depois igual em Rosário, e em quase todas as capitais da Argentina.

Menos em Buenos Aires!- solta uma gargalhada o Diabo, e Juan que é valente e destemido, sente as pernas frouxas, mas não desmaia. 
Sim, mas e agora? E o Rodrigazo?- desafia Juancito o Diabo, porque apenas seis meses antes desse Natal doloroso para muitos, milhares de operários de todo o Grande Buenos Aires tinham saído às ruas e jogado na lata do lixo da história ao ministro de economia, Rodriguez, e ao Bruxo López Rega, alma do governo de Isabelita e das Três A. Mas o Juan sabia que o ciclo se fechava. Essa tinha sido a última de centenas de enormes mobilizações populares, "puebladas", e alçamentos de operários. E sabia Juancito que, por trás dos fascistas das Três A e de López Rega, soavam ensurdecedores os ferrolhos das metralhas e as 45 dos milicos. Juan não tinha a menor dúvida que, depois da Isabelita, botas e fardas ocupariam a cena nacional, outra vez, como no Chile e Uruguai, como no Brasil.

-Vim te oferecer um trato sério- disse o Diabo, e Juan pensou, já sei, o arqui-conhecido negócio de comprar a minha alma. 
Senhor Sete Peles, eu sou ateu, não acredito em almas nem em vida eterna, muito menos em vida após a morte, morreu, acabou; mas posso ouvir a sua oferta, e se for do meu interesse, sem compromisso...- mas o rugido do Diabo não deixou o Juancito continuar. 
Cala a boca Juan! aqui não é porta de cadeia, nem refeitório universitário, nem comissão interna de fábrica. Chega de discursos. Quero a tua alma a troca de uma missão difícil, porém, possível: matar o Videla.

Juan parou e pensou: por que matar o Videla e não o Bruxo López Rega ou o general Menéndez? E claro, "o diabo sabe por diabo, mas sabe mais por velho", pensou. O Videla deve ser o cara que vai dar o golpe, é claro; ele é quem levou as tropas para esmagar Tucumán. Fazia menos de três semanas que Juan tinha conseguido fugir do cárcere em Encausados de Córdoba, apoiado por dois comandos da organização comunista Poder Obrero. E lembrava Juan que nesses seis anos e meio, que também era o tempo de vida da sua organização revolucionária, haviam florescido dezenas de grupos de combate, socialistas alguns, peronistas outros, que tinham pegado nas armas para defender-se da ditadura primeiro, e para atacar quartéis e delegacias mais tarde.

E mesmo que as duas linhas avançassem paralelas -os operários lutando nas ruas por um lado, e as organizações revolucionárias enfrentando os milicos nos quartéis-, poucas vezes tinham se tocado. É verdade que centenas de trabalhadores em todo o país tinham entrado nas milícias irregulares; verdade também que dezenas de greves e ocupações de fábricas, bairros e favelas tinham sido dirigidas pelos militantes dos pequenos partidos insurretos. Mas o Juan sabia que o tempo da revolução estava se esvaindo entre as mãos, e nem a vontade dos revolucionários, nem as das próprias massas populares podiam torcer já o rumo que as forças políticas tinham traçado: o peronismo no governo estava totalmente desarticulado; o povo não acreditava nesses políticos, burocratas sindicais ou fascistas. Os pequenos partidos revolucionários sendo descabeçados uma um.

- E qual é a tua vantagem em matar o Videla? E por que eu, além do mais?
- Porque você é íntegro e lúcido; é um “puro”, convencido do destino inevitável de uma mudança, sempre e quando o povo puder e quiser fazer essa mudança. E você é certeiro, e não vai falhar. É uma missão difícil, mas não impossível!- retrucou o Sete Peles, e largou o pescoço do Juan que havia passado esses longos cinco? dez? minutos pendurado contra a parede, apertado pela mão de ferro do Diabo. 
Vou te deixar pensar uns dias. Noventa dias, para ser mais exato. Duvido que em março do ano que vem você não queira matar o general Videla -.
- Mas se eu não tenho alma, Lúcifer...ninguém tem! Como eu vou te pagar?- disse Juancito, fazendo a última tentativa de negociar com o Diabo. Mas o Mau desapareceu, virou fumaça, deixando o fedor do enxofre no quarto, e o Juan pensativo.



2.

Dia 24 de março de 1976: três meses exatos depois do maior ataque de uma guerrilha a um quartel em América Latina, quase seis meses sem grandes mobilizações populares ou operárias, um helicóptero parte do terraço da Casa Rosada com a presidente Isabelita presa, prisioneira do golpe militar de Videla que em menos de 48 horas já havia prendido centenas de militantes populares, forçado enfrentamentos armados e assassinado a dezenas de estudantes, operários, profissionais liberais, e a centenas de outros opositores que as Três A de López Rega não tivessem eliminado antes, nos meses anteriores ao golpe.

E um segundo diabo se aparece em Buenos Aires, agora na casa do Índio em Lomas del Mirador; e a proposta é a mesma: matar o Videla. O Índio ri, descrente de deuses, diabos e vidas após a morte.

– Olha, seu Mandinga; desculpe mas não acho que eu possa matar o Videla; é difícil e é inútil. Pra que? Os milicos colocam outros dois generais no lugar, na hora! Além disso, tudo bem, eu faço a ação –que não deixaria de ser justiceira, concordo- mas nem tenho alma para lhe pagar. Aliás, eu deveria ser pago pelo risco - tentou ainda o Índio Santiago.

-Ok, seu Índio; você é um revolucionário, acredita no povo e na classe operária e não enxerga o benefício de eliminar o tirano. O problema da alma, de vida após a morte, etc., deixe por minha conta. Mas fica claro que daqui a uma semana, exatamente, você e outros dois escolhidos se encontrarão em São Paulo, e deixarão tudo pronto e em ordem para atacar o Campo de Mayo, bem no dia da visita do general-presidente Videla. Não há porém nem desculpas. É uma ordem e você não tem escolha. Dia 4 de abril espero vocês no vão do Masp, às três e meia da tarde. Vou estar vestido de camisa azul e calça branca. Não falhe- e saiu o Diabo batendo a porta e deixando um rasto de fumaça azulada e um fedor insuportável a enxofre e fósforo.



3.

Era meia noite do dia 25 de março, em Córdoba, e o velho Pedro Milesi preparava a sopa para ir dormir na casa da Susana Fiorito, amiga e companheira de mil lutas. As tropas já haviam cercado a casinha onde ele morara até o dia 19, e começaram a caça ao mais velho dirigente vivo, lutador e testemunha das gestas heróicas do povo nos últimos sessenta anos.
- Pedro Milesi, sou eu, Satanás, o Sete Peles, e não vou repetir a minha proposta: você vai ajudar matar o Videla- soltou rápido e direto o Diabo.

- Ruá, ruá, seu Diabo- gargalhou o Velho Pedro, que alguma vezes já foi Eduardo Islas e outras Pedro Maciel; e riu com o sotaque e a fonética dos índios tehuelches que ele conhecera na Patagônia, nas suas lutas para organizar os peões rurais. – Deixe eu rir, Satanás, eu sou velho, nasci em 1888, não vou durar mais do que três ou quatro anos. Além do que, o meu antigo desejo era matar o Franco primeiro- retrucou, audacioso, o Pedro Milesi.

- Matar o Franco - acariciou-se a barba espessa do cavanhaque o Diabo. –Até poderia ter sido, Pedro, mas você não acha que foi melhor assim? O Generalíssimo agonizou na cama, durante meses, como tinha sido previsto na “Maldição a Franco” de Pablo Neruda, lembra? Franco morreu, além do mais, eu já tinha visto antes o general Líster, o republicano que cruzou o rio Ebro e deu a surra nos franquistas

E, sim, o Velho Milesi lembra que o Líster se exilou em Cuba, anos depois de perdida a guerra civil na Espanha, e sempre esperava apoio do Ché. E Guevara até lhe ofereceu a sua arma, e propôs publicamente ficar sob seu comando numa eventual invasão à península. E antes, ainda, o general Bayo, republicano mas não comunista, exilado no México que adestrou nas técnicas de guerrilhas os revolucionários do Granma, mas que por ser velho demais não foi pra Serra Maestra, e que chegou depois em La Habana depois da vitória de Castro, com a esperança de uma ajuda cubana para derrocar a Franco, o que nunca recebeu, de tal maneira que Bayo terminou seus dias em Cuba...

- Não, seu Diabo, eu não pude fazer justiça com o velho tirano Franco; e você não ouviu o Líster nem o Bayo para dar fim no generalíssimo, a eles que tinham um exército guerrilheiro do lado; por que eu iria confiar na sua ajuda para dar cabo no general Videla?- foi cedendo Milesi, curioso mais que ansioso de saber como é que se poderia acabar com o chefe dos sequestradores e torturadores da ditadura.

4.

O Juancito chegou primeiro ao Parque Trianon, na avenida Paulista, bem em frente ao Museu de Arte, e sem esquecer as medidas de segurança, e das normas conspirativas, passou uns quinze minutos olhando bem para cada uma das pessoas que estavam no o vão do Masp, ou perto do amplo pátio debaixo do museu. Não havia ninguém com roupas azuis ou brancas, a não ser um par de estagiários médicos do HC, japoneses e demasiados jovens para ser o disfarce do Diabo.

Juan tinha chegado a São Paulo na data certa marcada dias antes pelo Satanás, mas não sem antes duvidar bastante se devia ou não sair da Argentina, se a ameaça que representava o golpe militar era suficiente para afastá-lo mesmo que provisoriamente da luta revolucionária, e sobre tudo, se a proposta do Diabo de eliminar fisicamente o general Videla não era uma loucura. Que era uma loucura tentadora, isso sim que era!, mas soava difícil, quase impossível, e sobre tudo inútil.

Duas noites antes de desembarcar a São Paulo, ainda na casa dos seus pais em Entre Rios, Juancito tinha se deixado vencer pelo cansaço e o sono, incapaz de decidir-se sem antes passar uns dias em família nas margens do rio Paraná.
Exausto, assim que chegou, teve um momento de abandono e fechou os olhos, para ver passar pela janela a longa procissão da tropa derrotada de Artigas; sem sair do sono, viu a cavalgada infernal dos espectros de centenas de negros e mulatos, índios charrúas e entrerrianos, correntinos e guaranis das Missões, com os chefes artiguistas à frente, o negro Ansina e Joaquin Martinez; cavaleiros feridos e mortos, gaúchos sem terras nem esperanças, e sem vidas; todos recentemente falecidos, esmagados pelas forças imperiais brasileiras e pela traição dos unitários portenhos. Petrificado de pavor assistiu Juan a passagem do exército silencioso rumo ao exílio no Paraguai. Compreendeu em seguida que essa horda apavorante de almas retornadas estava em fuga, e trotavam alguns, iam ao passo lento outros, e os menos até ensaiavam um galope curto, mordidos nos calcanhares pelas tropas da caçada do diabo, enquanto os homens de Artigas eram perseguidos impiedosamente até o interior por Ramirez, seu ex lugartenente, que atuava no papel do grande Satanás que golpeia os povos, escraviza os negros e mulatos, explora e oprime os índios e os imigrantes.

Acordou Juan e lavou o rosto, penteou o fino cabelo loiro e saiu da casa dos pais, decidido a viajar até São Paulo e cumprir o desejo do Diabo: eliminar o assassino Videla.

– Sou eu, Juan, não me reconhece? – disse o Diabo, e Juancito olhou pra trás e viu o japonês de camisa azul e calça branca, que desde seu esconderijo do Parque Trianon tinha lhe parecido um simplório estudante de medicina ou de enfermaria.

 – E a mim não me cumprimenta, seu Diabo?- perguntou irônico o velho Pedro Milesi que tinha acabado de chegar ao vão do Masp e confirmava com sua agilidade física e mental aos 88 anos que o Diabo podia saber por ser diabo, mas ele sabia muito também, por ser velho.

O Índio ainda não chegou, e ele sabe que não aceito atrasos- soltou uma baforada de fumaça azulada pelas narinas o Diabo, e dois adolescentes que tinham se aproximado até a sacada do patio que dá sobre o túnel da avenida Nove de Julho para puxar um baseado saíram correndo apavorados.

–Calma, Mau- disse com fina ironia o velho Milesi, –o Índio nunca foi pontual, além do que, ainda faltam três minutos para a hora marcada, calma. 

Olá, aqui estou, tive problemas na fronteira. Os milicos me pararam por meia hora em Puerto Iguazú; por fim me deixaram passar, mas perdi o ônibus e cheguei só agora na estação da Luz. Não conheço bem São Paulo e terminei vindo a pé mesmo- tentou se justificar, banhado de suor, mas alegre como sempre, o Índio Santiago.

Mãos à obra então: o plano mudou, eu ia fazer vocês voltarem a Buenos Aires daqui a um mês, para colocar quinze quilos de trinito-tolueno debaixo da pista de aterrizagem da aviação do exército em Campo de Mayo. Mudei de ideia, e agora é mais fácil; vamos pegar o puto do Videla na recepção do consulado argentino, semana que vem, dia 9 de abril, às oito da noite, no Hotel Hilton. Sabem onde é? Em frente ao Copan, um prédio com curvas do Niemeyer, na altura do 100 da avenida Ipiranga- anota rápido o Demônio, em três papeizinhos...ao mesmo tempo!, e passa veloz os apontamentos para cada um dos conjurados. O velho Pedro Milesi, mais experiente, pede mais detalhes:

–Sim, e o que pretende que façamos?- se atreve a perguntar o Juancito.

Já ia aos detalhes; vejamos: Milesi, você vai se vestir de fraque, camisa branca e lacinho, e o Índio vai representar seu guardacostas. Um ancião aristocrata, italiano, para não chamar a atenção, que vai puxar conversa com o presidente Figueiredo que passará rapidamente pela festa de recepção. O Índio Santiago vai mesmo armado, com uma pistola Browning calibre 7,65mm; não vai haver controle das armas a não ser para os argentinos. Milesi é italiano, e o Santiago passa por um argelino francês, de direita extrema, claro, vai furar todos os esquemas de bloqueio de armas. Além do mais, todo guardacostas vai armado, não?- completa o plano central o Diabo sem sequer olhar para o Juancito.

E eu, que faço?- pergunta o Juan, e o Índio não consegue evitar uma risadinha sarcástica com o camarada, que é menos habilidoso que o resto dos companheiros em matéria de ações militares. O Juancito nem se preocupa com as caras de riso do Índio, e olha fixo para o Mau.

Você Juan, vai fazer a parte mais importante do plano. Vai ficar na direção do Ford Galaxie Landau, novinho em folha, modelo 1975, com motor 5.8. O Milesi vai convidar o outro integrante da junta militar, Massera -que vem junto com o presidente Videla- até o seu carro dizendo que a mulata do Sargentelli, a Cristal, que ele tanto quer conhecer está esperando por ele. O Massera é putanheiro velho, não vai resistir à tentação. O Videla, que desconfia do Negro Massera, deve abordar o Índio para pedir detalhes sobre o que o almirante vai fazer, por motivos obvios de segurança. O Índio vai dizer ao Videla que a mulata mais bonita de São Paulo está esperando Massera; e o presidente não vai resistir a curiosidade. Ai entra você, Juancito, sentado na direção do Galaxie Landau, com a metralhadora Uzi com silenciador no colo. A Cristal vai estar a seu lado– disse o Diabo, sério e compenetrado, e o Juan não pode deixar de olhar rápido para o Índio que não perde chance de tirar um sarro e rir do amigo, e o Santiago de fato está segurando a gargalhada, imaginando o Juancito ao lado da mais bela das dançarinas do Oba-Oba da Paulista do Sargentelli.

E como é que eu vou matar o tirano assim, dentro de um carro, e com a mulatona ao lado? Não há risco de ferir a moça?- pergunta o Juan, sempre preocupado com a justiça das ações que o grupo de militantes se propunha realizar. E o Índio ri de novo, lembrando do Juancito quando falava que os do MRA eram “um reloginho bem lubrificado e preciso, sem erros”.

Fácil, muito fácil ou simples pelo menos, Juan- responde Satanás. –Você vai levar um enorme arranjo de orquídeas que a Cristal vai entregar ao Videla assim que ele entrar na parte de trás do Landau- e dentro das flores, acrescenta Juancito, uma poderosa bomba que dê cabo ao tirano assassino.

E se o puto do Videla suspeitar, tentar fugir, sair do carro de fininho, ou chamar a segurança, ai entra a Uzi e o silenciador, não é Juan? – sussurra o Diabo, sibilino, esticando as sílabas, suave, sedutor, e o Velho Milesi, que se mantinha calado e pensativo, sabe-se lá por que, lembra em seguida dos olhares lânguidos do Israel Vilhas.


5.

Tomando um “pingado” de café com leite e pão com manteiga no Bar Riviera, e depois de olhar a programação do Cine Belas Artes, o Índio e Juancito conversam sobre o trato que estão a um passo de fechar com o Diabo, e sobre a difícil missão de dar cabo no tirano Videla:

- Olha,meu, acho bem complicado esse plano do Malvado; primeiro, o velho Milesi tem que convencer na pele de um oligarca italiano, e já sabemos que só arranha um pouco do dialeto ligur; ele chegou muito jovem na Argentina. Segundo, eu tenho que arrasar na representação do mercenário argelino; nem sei falar bem o francês, muito menos o árabe! Ok, posso ficar quase mudo, já que milico não fala muito. Mas, e se o Almirante Massera não se interessar pela Cristal?...já sei, é difícil, é um marinheiro velho e putanheiro, e a mulata é linda; mas, e se por um acaso essa noite ele não quiser saber de mulher?- resmungava o Índio Santiago e pensava que Pedro Milesi, agitado do jeito que era, já devia ter saído pra rua bater pernas antes que o Diabo aparecesse de novo com a encheção dos pactos de sangue ou de tinta nankin.

- Pois é, Santiago, e ainda tem a pior parte: e se o Videla não estiver nem aí com o que o Massera decida fazer? E se o tirano número 1 decidisse essa noite não ter ciúmes do tirano número 2?- conjecturava Juancito quase sem olhar para o Índio, apenas como se falasse para si mesmo.

O velho Pedro Milesi entrou e largou um “Estadão” em cima da mesinha ensebada do bar, bem na vista dos dois camaradas:
- É mais conservador do que a Folha de São Paulo, La Nación e Clarín juntos, mas pelo menos não faz de conta que é moderno e progressista; leiam- e mostrou com um dedo curto e roliço a notícia na manchete da página três.

Estão vendo? No Brasil nem a vinda do tirano da Argentina impressiona. Os tiranos daqui são mais mansos e mais eficientes. A ditadura anterior, a de Onganía e Levingston durou sete anos na Argentina, e não creio que o assassino Videla dure mais do que isso. Agora os milicos daqui, esses sim, vão chegar aos vinte anos ou mais de ditadura. Olhem a notícia: Videla só ficará uma hora na recepção do consulado. Já passei na Rua Araújo, não tem ninguém cuidando do predinho onde fica a representação argentina, mas mesmo assim não vai ser fácil.

- Velho, você já passou? São oito e dez da manhã! Você não dormiu na pensão que eu deixei paga? Não vai me dizer que saiu de farra por aí!- tentou brincar o Índio e em seguida se deu conta da besteira, parecia o Gordo Lowe falando para o Juancito que não fosse gastar a grana da última ação em mulheres. Justo com o Juancito, que é um monge budista! E agora ele, se fazendo de engraçadinho com o velho anarco para quem o amor é livre, sim, mas é um compromisso, uma obra de arte que se constrói de baixo pra cima, como as estátuas, sem traições, sem pulos de cerca. Mas o velho nem deu bola e continuou com o comentário:

- Vamos montar esse plano de uma vez e evitar assim que o besta do Satanás siga querendo mandar em tudo. Afinal sempre fui sem Deus nem patrão, não é agora que vou ficar obedecendo um chifrudo sobrenatural!- e na mesma hora, claro, o Mandinda apareceu em pessoa, assim do nada, acotovelado na mesa, vestido de gaúcho, com botas, bombachas, cinto cravejado de moedas e facão cruzado atrás das costas. O velho nem piscou porque o muito malandro já sabia que o Malvado iria se apessoar assim que ele o mencionasse. Era toda uma encenação de propósito e, se bem o Juancito e o Índio deram um respingo e todos os fregueses das mesas vizinhas ficaram calados e apavorados com a súbita aparição, o velho Milesi continuou falando, como se nada:

- Então, só temos uma hora para chegar, aproximar-nos do tirano, oferecer ao almirante Massera o encontro com a Cristal, convencer o Videla de que também há farra para ele, ou pelo menos incentivar a curiosidade sobre o que anda aprontando o Massera e fazê-lo descer até o carro; e ainda o Juancito garantir que, se o Videla não aceitar as orquídeas com a bomba, a Uzi vai resolver o problema rápido e sem mais delongas - usava uma linguagem antiga o velho Milesi; falou tanto e tão rápido que o Diabo nem tentou pará-lo ou interromper a fala para dar novas ordens.


6.

O Diabo entrou xingando, puto da vida no bar da esquina do edifício Redondo, Ipiranga 83, onde o Javier iria morar quatro anos depois ao começar o longo exílio em São Paulo. Era o mesmo boteco onde Caetano, Gil e a Gal cantaram tantas vezes de madrugada, nas suas vindas a Sampa, de visita na casa do Mozaíde. O Diabo chegou vestido à usança antiga do campo: bombachas de gabardina, botas acordeão pretas, camisa a quadros e colete de couro de ovelha, lenço amarrado ao pescoço, e um gamulán argentino debaixo de um poncho vermelho. Chamou a atenção do boteco de imediato, e um bicho-grilo cabeludo ousou olhá-lo e rir das suas roupas. O Diabo cuspiu fogo e lançou uma asquerosa e azulada névoa de enxofre pela boca e pelo nariz; bramou com um rugido feroz e arrancou a viola das mãos do garoto, até então desafiador e pedante, e o jogou para o outro lado da avenida, entre a igreja da Consolação e a Praça Roosvelt.

Voltou Satanás pra mesa na calçada onde esperavam Milesi, o Índio e Juancito. Quando sentou ainda tinha o queixo tremendo de fúria, e faíscas escapando-lhe do olhar avermelhado. Os três camaradas decidiram nem fazer perguntas e deixar o Malvado se acalmar primeiro.

- Bom, a situação na Argentina está uma merda- comentou o Diabo, e os três amigos se entreolharam, pensando por que podia ser que o Demônio tomasse o lado deles e do povo argentino que, sim, realmente estava na pior. E sobretudo, por que o Malvado quereria matar o ditador Videla?

- As coisas vem piorando, são momentos muito duros porque já começou a infausta “contra-ofensiva” dos Montoneros, e muita gente está voltando da Europa para a Argentina, e os milicos estão pegando dezenas deles nas fronteiras e nos aeroportos; pelo seu lado, os militantes do PRT-ERP acabam de se fracionar. Já muitos dos intelectuais e políticos que até agora eram “revolucionários”  estão se perfilando com uma boa disposição “pragmática” que vai levá-los, mais tarde ou mais cedo a apoiar algum setor da ditadura para tirar o Videla e a ala mais dura do poder. A ditadura, enquanto isso continua como seu léxico burocrático-militar copiado dos nazistas, e agora acunhou ainda a sigla BDSML para denominar as “Bandas de Delinquentes Subversivos Marxistas Leninistas”.

-Tá bom, Lúcifer, chega!, o que você quer nos contando isso tudo que estamos carecas de saber?- arrisca o velho Milesi, sempre mais atirado e audacioso que os outros dois colegas, talvez por estar mais perto da morte, por ser o mais velho e ter passado tantas e tão difíceis situações na sua longa existência. E o Diabo nem liga para os atrevimentos do Velho, responde mais calmo, mais ainda com os olhos cheios de sangue e de ódio:

- Quero que vocês matem o tirano Videla, mais nada, e nem interessa o por que. Não são vocês, miseráveis, que vão me exigir uma explicação. Amanhã à noite, o Índio estará fardado com as vestes de um mercenário argelino, quardacostas do Velho; Milesi será um italiano ricaço e o Juan o motorista com a Uzi no colo, no volante do Landau, sentado à frente da Cristal, mulata linda e irresistível, com um arranjo de orquídeas “bombado” para explodir pelos ares o filho da puta do Videla. Está claro?- rugiu O Diabo, e cuspiu fogo no chão; parecia quase derrotado pelo Pedro Milesi; fez uma careta de raiva e cansaço e levantou uma nuvem azulada e asquerosa com o rabo pontiagudo e peludo que apareceu por debaixo do poncho.

Depois pagou a conta a todos os aterrorizados e estupefatos frequentadores do Redondo e foi embora, batendo as portas do bar com tanta raiva e frustração mal contida que os velhos vidros se quebraram em mil pedaços. A Elis
Regina, que na tarde anterior já tinha visto os três com o Diabo no Bar Riviera fez um sinal da cruz no peito e saiu de fininho.


O Velho Milesi nem esquentou a cabeça com a raiva momentânea do Diabo, e em seguida se dedicou a contar história para divertir seus dois jovens camaradas:

- O historiador Ricardo Rojas, que passou a juventude em Santiago del Estero, contou a meu tio Fuenzalida que o Demônio, também conhecido como Supay, prefere a forma humana para aparecer- começou a contar o Milesi para entreter o Juan e o Índio.  Ele certa vez encarnou no corpo de um rapaz bonito, aparecendo do nada em um rancho para atentar os desejos de certa mulher ingênua. Mostrou-se em outra ocasião como um gaúcho rico e jovem que visitou a floresta em seu cavalo enfeitado de mágicos arreios, dizia Rojas, e o velho Victoriano Unzaga contava que o Maligno vive nos vários lugares da tentação,em meio do jogo e do prazer-.

O Supay, segundo o Velho Milesi, é quem rege as reuniões da salamanca, e tem como súditos sapos, víboras, duendes e os desditados que venderam suas almas em troca de alguma graça terrena. Ali vão bruxas, almas condenadas e demônios dos infernos, e ao entrar na caverna todos beijam o traseiro de um carneiro e logo se entregam à farra. De longe se ouve então o estrondo da música e as loucas gargalhadas dos condenados, que ficarão vários dias sem dormir e nem vão notar o cansaço.

- E pelo que me contou o velho Israel Vilhas, que era um virtuoso da palavra, ele conheceu um ferroviário que tinha beijado o carneiro numa caverna de La Quebradita de Tafí del Valle, e que depois disso, quase não envelhecia. É que os ardis do Supay para alcançar seus objetivos são infinitos, seja na pele de uma criança ingênua, ou de uma mulher linda e provocadora. A história sempre acaba com um contrato assinado com tinta nanquim e com a morte do incauto que, seja para conseguir uma mulher, ou pra cantar, ou por dinheiro, entregou o único bem que o homem não deve descuidar: sua alma eterna - diz o Velho Milesi e ri, solta estrondosas gargalhadas que espantam ainda mais aos poucos e apavorados fregueses do Redondo, ele, que não acredita em alma nem em demônios, em deus nem em patrão, mas agora está lidando com o Malvado em pessoa, ajudando seus camaradas Juancito e o Índio Santiago na difícil tarefa de eliminar o tirano Videla.


Final

Antes da sua saída estrepitosa, o Demônio tinha entregado dois maços de cigarro na mão do Índio. O velho Milesi explica: um maço do famoso tabaco Nakhla, egípcio, que o Índio vai fumar durante a meia hora de “custódia” ao Pedro Milesi na recepção do consulado. Tinha que acender três ou quatro cigarros, só para mostrar aos guarda-costas do Videla e do Massera que se tratava mesmo de um mercenário argelino. O outro maço era de papel de seda para que o nosso velho “italiano” preparasse o fumo avulso. Também havia filtros para que o Pedro Milesi gastasse alguns minutos mostrando aos custódios dos milicos argentinos que além de rico era sovina, já que o tabaco na Itália é caro e um bom milionário não joga dinheiro fora. 


O disfarce vai ficar perfeito- comentou o Juancito, que começava a se entusiasmar com o plano.

Na noite da ação planejada, e depois de longos vinte e dois minutos de começada a recepção no Hotel Hilton, estacionado no Landau a poucos metros da sede consular argentina, o Juan já não tinha mais o que conversar com Cristal, a mulata do Sargentelli. Juancito sabia que o empresário de shows do Oba-Oba não permitia a suas dançarinas nenhum tipo de safadezas, mas nem por isso o nosso entrerriano conseguia afastar mais de dois minutos seguidos os olhos e a imaginação das pernas da moça.

Quando o sino da igreja da Consolação bateu nove e trinta, exatamente, o Índio desceu as escadarias do Hilton; um metro atrás Massera e dois guarda-costas aparentemente armados só com pistolas, e Videla, com o seu custódio. Fechando o cerco, Milesi, branco como um papel. Juancito esqueceu rápido das curvas da Cristal que não o tinham deixado se concentrar na última meia hora, e apertou o punho na culatra da Uzi.

- O que se passou enseguida, Javier- me conta trinta e cinco anos depois o Índio Santiago enquanto mastiga um pedaço de tamal no restaurante boliviano de San Telmo – ninguém poderia ter imaginado, mesmo. O puto do Videla, como era de se temer, mais desconfiado e arisco que o outro tirano, Massera, foi ficando pra trás, enquanto que o almirante quase que mergulhava no colo da tão cobiçada Cristal.

- O velho safado gastava todo seu portunhol para tentar seduzir rapidamente a mulata, e o Videla ficava cada vez mais ansioso, mas sempre controlado e alerta- conta Juancito, e fica mais rosadinho que um neném porque se lembra, a contragosto, da nervosa e fantasiosa meia hora que passara aquela noite com a linda Cristal.

O caso, para não dar mais “delongas”, como diria o velho Pedro Milesi, é que o Massera pegou nas orquídeas e o Juan achou que o velho estava examinando o peso do arranjo e desconfiando do que era realmente aquilo. O Videla deu marcha ré na hora, e o Juan, nem lerdo nem preguiçoso, pegou na Uzi, saiu do carro...e a metralhadora travou. Deu tempo de entrar de novo, engatar a primeira e tentar sair, não sem antes a Cristal dar uma fantástica coice no traseiro do Massera, jogá-lo pra fora do Landau e abrir a porta para o Índio que corria com as pernas feito Freddie Flinston, quase sem tocar com os pés no chão.
Mas o melhor –ou pior, sei lá- ainda estava pra vir:

 -E foi nessa arrancada violenta do carro com o Juan ao volante, que nos demos conta de um detalhe: os guarda-costas  do Videla e do Massera, além de não estar armados com armas longas, não tinham arma nenhuma; tanto eles como eu, fantasiado de argelino, tínhamos sido desarmados pela polícia brasileira na entrada do consulado; e aí foi que o Juancito brecou de vez, e ambos pulamos fora do carro e começamos a dar socos de tudo quanto era jeito no Videla e no Massera! Os guarda-costas, enfrentados entre eles pelas inimizades dos seus chefes, não puderam reagir, e antes que viessem pra cima de nós, já dois fusquinhas da PM paulistana haviam chegado ao local e nos afastavam, sem sequer cogitar em levar detido ninguém, afinal de contas, argentinos ou argelinos, éramos todos estrangeiros à porta de um consulado, e além disso havia fardas e insígnias demais para a polícia paulistana se meter conosco- me conta, entre gargalhadas, engasgando com as migalhas do tamal, o Índio.

- Ou seja que, além de não matar o Videla nem o puto do Massera, fomos o único destacamento revolucionário dos anos setenta que conseguimos encher de porradas os dois fascistas e de algum modo lavar a alma que o Diabo queria nos levar!- ri o Juancito quando telefono para ele me detalhar melhor os acontecimentos daquela noite gloriosa e desastrada.

-O velho Pedro Milesi morreu na clandestinidade, mas o Videla vai morrer na cadeia, a pena perpétua e em cárcere comum- diz o Juan e me conta que nunca mais viram o Diabo, o que prova a teoria do Índio, que talvez o Videla e o Demônio tenham sido a mesma pessoa, que planejaram tudo apenas para nos pegar, de um modo mais sofisticado, e nos entregar nas garras da operação Condor. Mas não sei, não; a história se escreve por linhas tortas, e a velha toupeira da revolução pode ser cega, mas não falha: talvez o que queríamos nos anos setenta não fosse a revolução possível, mas a democracia que o povo foi arrancando e impondo aos poucos, essa sim vem conseguindo conquistas que nem imaginávamos na época. Vivendo e aprendendo.

Fim
Javier Villanueva, São Paulo, 2011.

2 comentários:

  1. Muito bom. Narrativa vigorosa, bem urdidace bem humorada com ecos de Dante e cortazar e ambientada em lugares ícones da minha geração nos anos 70 - Riviera e o bar vizinho Ponto 4 eram points de noitadas e tinha até Elis Regina mesmo

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  2. Obrigado, amigo; você sempre generoso na sua leitura e perspicaz nas observações.

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