quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Missão quase impossível: eliminar o tirano Videla. Parte 2. Em Sampa.

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3.

Era meia noite do dia 25 de março, em Córdoba, e o velho Pedro Milesi preparava a sopa para ir dormir na casa da Susana Fiorito, amiga e companheira de mil lutas. As tropas já haviam cercado a casinha onde ele morara até o dia 19, e começaram a caça ao mais velho dirigente vivo, lutador e testemunha das gestas heróicas do povo nos últimos sessenta anos.

-Pedro Milesi, sou eu, Satanás, o Sete Peles, e não vou repetir a minha proposta: você vai ajudar matar o Videla- soltou rápido e direto o Diabo.

-Juá, juá, seu Diabo- gargalhou o Velho Pedro, que alguma vezes já foi foi Eduardo Islas e outras Pedro Maciel; e riu com o sotaque e a fonética dos índios tehuelches que ele conhecera na Patagônia, nas suas lutas para organizar os peões rurais. –Deixe eu rir, Satanás, eu sou velho, nasci em 1888, não vou durar mais do que três ou quatro anos. Além do que, o meu antigo desejo era matar o Franco primeiro- retrucou, audacioso, o Pedro Milesi.

-Matar o Franco- acariciou-se a barba espessa do cavanhaque o Diabo. –Até poderia ter sido, Pedro, mas você não acha que foi melhor assim? O Generalíssimo agonizou na cama, durante meses, como tinha sido previsto na “Maldição a Franco” de Pablo Neruda, lembra? Franco morreu, além do mais, eu já tinha visto antes o general Líster, o republicano que cruzou o rio Ebro e deu a surra nos franquistas
E, sim, o Velho Milesi lembra que o Líster se exilou em Cuba, anos depois de perdida a guerra civil na Espanha, e sempre esperava apoio do Ché. E Guevara até lhe ofereceu a sua arma, e propôs publicamente ficar sob seu comando numa eventual invasão à península. E antes, ainda, o general Bayo, republicano mas não comunista, exilado no México que adestrou nas técnicas de guerrilhas os revolucionários do Granma, mas que por ser velho demais não foi pra Serra Maestra, e que chegou depois em La Habana trás a vitória de Castro, com a esperança de uma ajuda cubana para derrocar a Franco, o que nunca recebeu, de tal maneira que Bayo terminou seus dias em Cuba...

-Não, seu Diabo, eu não pude fazer justiça com o velho tirano Franco; e você não ouviu o Líster nem o Bayo para dar fim no generalíssimo, a eles que tinham um exército guerrilheiro do lado; por que eu iria confiar na sua ajuda para dar cabo no general Videla?- foi cedendo Milesi, curioso mais que ansioso de saber como é que se poderia acabar com o chefe dos sequestradores e torturadores da ditadura.

4.

O Juancito chegou primeiro ao Parque Trianon, na avenida Paulista, bem em frente ao Museu de Arte Contemporânea, e sem esquecer as medidas de segurança, e das normas conspirativas, passou uns quinze minutos olhando bem para cada uma das pessoas que estavam no o vão do Masp, ou perto do amplo pátio debaixo do museu. Não havia ninguém com roupas azuis ou brancas, a não ser um par de estagiários médicos do HC, japoneses e demasiados jovens para ser o disfarce do Diabo.
Juan tinha chegado a São Paulo na data certa marcada dias antes pelo Satanás, mas não sem antes duvidar bastante se devia ou não sair da Argentina, se a ameaça que representava o golpe militar era suficiente para afastá-lo mesmo que provisoriamente da luta revolucionária, e sobre tudo, se a proposta do Diabo de eliminar fisicamente o general Videla não era uma loucura. Que era uma loucura tentadora, isso sim que era!, mas soava difícil, quase impossível, e sobre tudo inútil.

Duas noites antes de chegar a São Paulo, ainda na casa dos seus pais em Entre Rios, Juancito tinha se deixado vencer pelo cansaço e o sono, incapaz de decidir-se sem antes passar uns dias em família nas margens do rio Paraná.

Exausto, assim que chegou, teve um momento de abandono e fechou os olhos, para ver passar pela janela a longa procissão da tropa derrotada de Artigas; sem sair do sono, viu a cavalgada infernal dos espectros de centenas de negros e mulatos, índios charrúas e entrerrianos, correntinos e guaranis das Missões, com os chefes artiguistas à frente, o negro Ansina e Joaquin Martinez; cavaleiros feridos e mortos, gaúchos sem terras nem esperanças, e sem vidas; todos recentemente falecidos, esmagados pelas forças imperiais brasileiras e pela traição dos unitários portenhos. Petrificado de pavor assistiu Juan a passagem do exército silencioso rumo ao exílio no Paraguai. Compreendeu em seguida que essa horda apavorante de almas retornadas estava em fuga, e trotavam alguns, iam ao passo lento outros, e os menos até ensaiavam um galope curto, mordidos nos calcanhares pelas tropas da caçada do diabo, enquanto os homes de Artigas eram perseguidos impiedosamente até o interior por Ramirez, seu ex lugar-tenente, que atuava no papel do grande Satanás que golpeia os povos, escraviza os negros e mulatos, explora e oprime os índios e os imigrantes.
Acordou Juan e lavou o rosto, penteou o fino cabelo loiro e saiu da casa dos pais, decidido a viajar até São Paulo e cumprir o desejo do Diabo: eliminar o assassino Videla.


–Sou eu, Juan, não me reconhece? – disse o Diabo, e Juancito olhou pra trás e viu o japonês de camisa azul e calça branca, que desde seu esconderijo do Parque Trianon tinha lhe parecido um simplório estudante de medicina ou de enfermaria.
 –E a mim não me cumprimenta, seu Diabo?- perguntou irônico o velho Pedro Milesi que tinha acabado de chegar ao vão do Masp e confirmava com sua agilidade física e mental aos 88 anos que o Diabo podia saber por ser diabo, mas ele sabia muito também, por ser velho.
–O Índio ainda não chegou, e ele sabe que não aceito atrasos- soltou uma baforada de fumaça azulada pelas narinas o Diabo, e dois adolescentes que tinham se aproximado até a sacada do patio que dá sobre o túnel da avenida Nove de Julho para puxar um baseado sairam correndo despavoridos.
–Calma Mau- disse com fina ironia o velho Milesi, –o Índio nunca foi pontual, além do que, ainda faltam três minutos para a hora marcada, clama.

–Olá, aqui estou, tive problemas na fronteira. Os milicos me pararam por meia hora em Puerto Iguazú; por fim me deixaram passar, mas perdi o ônibus e cheguei só agora na estação da Luz. Não conheço bem São Paulo e terminei vindo a pé mesmo- tentou se justificar, banhado de suor, mas alegre como sempre, o Índio Santiago.

–Mãos à obra então: o plano mudou, eu ia fazer vocês voltarem a Buenos Aires daqui a um mês, para colocar quinze quilos de trinito-tolueno debaixo da pista de aterrizagem da aviação do exército em Campo de Mayo. Mudei de ideia, e agora é mais fácil; vamos pegar o puto do Videla na recepção do consulado argentino, semana que vem, dia 9 de abril, às oito da noite, no Hotel Hilton. Sabem onde é? Em frente ao Copan, o prédio com curvas do Niemeyer, na altura do 100 da avenida Ipiranga- anota rápido o Demônio, em três papeizinhos...ao mesmo tempo!, e passa veloz os apontamentos para cada um dos conjurados. O velho Pedro Milesi, mais experiente, pede mais detalhes:

–Sim, e o que pretende que façamos?- se atreve a perguntar o Juancito.
–Já ia aos detalhes; vejamos: Milesi, você vai se vestir de fraque, camisa branca e lacinho, e o Índio vai representar seu guardacostas. Um ancião aristocrata, italiano, para não chamar a atenção, que vai puxar conversa com o presidente Figueiredo que passará rapidamente pela festa de recepção. O Índio Santiago vai mesmo armado, com uma pistola Browning calibre 7,65mm; não vai haver controle das armas a não ser para os argentinos. Milesi é italiano, e o Santiago passa por um argelino francês, de direita extrema, claro, vai furar todos os esquemas de bloqueio de armas. Além do mais, todo guardacostas vai armado, não é?- completa o plano central o Diabo sem sequer olhar para o Juancito.

–E eu, que faço?- pergunta o Juan, e o ìndio não consegue evitar uma risadinha sarcástica com o camarada, que é menos habilidoso que o resto dos companheiros em matéria de ações militares. O Juancito nem se preocupa com as caras de riso do Índio, e olha fixo para o Mau.

–Você Juan, vai fazer a parte mais importante do plano. Vai ficar na direção do Ford Galaxie Landau, novinho em folha, modelo 1975, quase zero kilometro, com motor 5.8. O Milesi vai convidar o outro integrante da junta militar, Massera -que vem com o presidente Videla- até o seu carro dizendo que há uma mulata do Sargentelli, a Cristal, que quer conhecé-lo. O Massera é putanheiro velho, não vai resistir à tentação. O Videla, que desconfia do Negro Massera, deve abordar o Índio para pedir detalhes sobre o que o almirante vai fazer, por motivos obvios de segurança. O Índio vai dizer ao Videla que a mulata mais bonita de São Paulo está esperando Massera; e o presidente não vai resistir a curiosidade. Ai entra você, Juancito, sentado na direção do Galaxie Landau, com a metralhadora Uzi com silenciador no colo. A Cristal vai estar a seu lado– disse o Diabo, sério e compenetrado, e o Juan não pode deixar de olhar rápido para o Índio que não perde chance de tirar um sarro e rir do amigo, e o Santiago de fato está segurando a gargalhada, imaginando o Juancito ao lado da mais bela das dançarinas do Oba-Oba da Paulista do Sargentelli.

–E como é que eu vou matar o tirano assim, dentro de um carro, e com a mulatona ao lado? Não há risco de ferir a moça?- pergunta o Juan, sempre preocupado com a justiça das ações que o grupo de militantes se propunha realizar. E o Índio ri de novo, lembrando do Juancito quando falava que os do MRA eram “um reloginho azeitado e preciso, sem erros”.

–Fácil, muito fácil ou simples pelo menos, Juan- responde Satanás. –Você vai levar um enorme arranjo de orquídeas que a Cristal vai entregar ao Videla assim que ele entrar na parte de trás do Landau- e dentro das flores, supõe Juancito, uma poderosa bomba que dê cabo no tirano assassino.
–E se o puto do Videla suspeitar, tentar fugir, sair do carro de fininho, ou chamar a segurança, ai entra a Uzi e o silenciador, não é Juan? – sussurra o Diabo, sibilino, esticando as sílabas, suave, sedutor, e o Velho Milesi, que se mantinha calado e pensativo, sabe-se lá por que, lembra em seguida dos olhares lânguidos do Israel Vilhas.

Continuará. Javier Villanueva, São Paulo, dezembro de 2011.

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