O d
O velho se mexeu um pouco em sua cadeira de balanço de
vime no canto do quarto do hospital, e então me dei conta de que tinha
estado todo o tempo ali, fumando seu cigarro de palha com sementes de
anis, bem devagar, e esperando que chegasse a hora da oração para ir
buscar a Eufemia em
San Antonio ; e então começou a me contar:
-Uma noite o diabo visitou a mina casa - soltou de
repente, sem aviso prévio e calculando o impacto, me olhando com seus
olhos de velho pícaro, brilhando azuis na semi-penumbra da tarde, meu avô
Victoriano. O entardecer era a hora ideal para contar histórias de terror,
e ele adorava o tema do diabo.
-Não lembro bem o ano, mas acho que o diabo veio às
Chacras durante um outono frio de rachar, depois de um verão que tinha
sido muito longo, seco, caloroso, e com vento- disse Victoriano.
-E durante essa visita de Mandinga me limitei a abrir-lhe
a porta, fazê-lo passar até a varanda, e tentar cumprir com o que ele me
pedia, ou melhor dito, o que me exigia sua alma em pena: nunca, jamais
deveria falar-lhe- acrescentou com voz misteriosa o velho.
– Mas talvez esse tenha sido um grande erro meu, com o que
iria me jogar a sorte mais tarde- diz o velho, acrescentando baixinho: -
Puta merda! Não vai ser que alguma coisa me saia bem, caralho!
-Lembro muito bem daquele momento alucinante do encontro:
não me esqueço de como cantavam como enlouquecidos os galos e revoavam os
pássaros, como cacarejavam as galinhas e latiam os cachorros, e do repicar
dos sinos da capela de San Antonio- conta Victoriano.
-As árvores mexiam os galhos com violência, agitadas ao
vento, e tive a clara intuição de que aquela visita ia mudar nossas vidas,
a de Eufemia e a minha, para sempre. A única bagagem do diabo era um
livrinho velho- diz meu avô. -Não me animei a perguntar de onde vinha nem
para onde iria depois, e também não me atrevi a falar muito com ele; mas durante
essa noite as horas passaram tão rápido que, assim que terminava de
servir-lhe um mate cozido e uns biscoitos no galpão,
soaram as seis no campanário do povoado-
continua o velho.
-Depois de uma longa semana de convivência forçada com o
Mandinga, às vezes eu aproveitava quando o Mau saía da casa um pouco, e ia
correndo ao seu quarto bisbilhotar nas suas coisas; e foi assim que tive a
surpresa ao descobrir que, apesar de ter chegado sem mala nenhuma, o Diabo
trocava de roupa todos os dias; suas calças, alpargatas e camisas eram
sempre diferentes, cada vez que eu mexia em suas coisas; de diferentes cores
e tamanhos, muitos tipos de roupas, todos os que você possa imaginar- me
assustava Victoriano com uma voz que soava cada vez mais grossa e lenta.
Então, um belo dia, decidi fazer uma trapaça com o Diabo,
para tentar desmascará-lo, para saber a que se dedicava e porque não
falava. Eu queria descobrir pra onde ia ou que merda fazia em todas suas
misteriosas saídas. Mas essa trapaça virou uma espécie de jogo; o Coisa
Ruim tinha a mente mais cínica, perspicaz, inquisitiva, mordaz, intuitiva e
sagaz que eu tivesse conhecido até então; e mina astucia caipira não me
serviu de nada, muito pelo contrario, parece que me prendeu cada vez mais
no meu próprio jogo; a tal ponto que creio que cheguei a pensar que
ele tinha tudo planejado desde sua chegada- contava o velho.
-Mesmo sabendo disto decidi jogar, porque, a final de
contas, o que tinha a perder? Fiquei sentado na poltrona de vime da
varanda para esperá-lo; tomei uns mates e fumei uns cigarros de palha,
enquanto contava as horas com todos os seus respectivos minutos e
segundos, porque de um momento a outro, o ônibus de La Falda ia parar, e ele
entraria pelo portão da frente. Quando já estava bem escuro, e ele não
chegava, e como no outono de Catamarca faz muito frio, fui até a sala e
sentei na cadeira de balanço, tapado até o nariz com um cobertor grosso de
alpaca- acende um cigarro de anis, dá umas tragadas, tosse e diz, meu avô
Victoriano.
-Aos poucos foi vindo o sono e fechei os olhos, mas alguns
minutos depois já ouvi o barulho agudo dos freios do ônibus número sete; e
escutei os passos das alpargatas arrastadas do Mandinga por debaixo da
Santa Rita. E quando esbarrou na cadeira de balanço da varanda… e depois,
a chave que entra e vai girando na fechadura da porta verde da sala.
Foi então que abri devagar os olhos e observei o jeito
lento das duas voltas da chave, e vi a porta pesada de algarrobo,
pela que, ao abrir-se, entrou brilhando um raio de luz da lua, que
refletia nas baldosas de cerâmica. E vi o Mandinga atravessando a sala,
direto na direção da minha espreguiçadeira. Fiquei quietíssimo, quase sem
respiração; o Diabo se aproximou e do meio de suas roupas luxuosas tirou o
que eu temi ser o instrumento de minha morte- prossegue Victoriano.
-O Diabo deixou então alguma coisa ao lado da
espreguiçadeira, ao meu lado, e foi sentar-se bem em frente ao meu
assento; olhou-me direto nos olhos, como se estivéssemos num jogo de chinchón ou
de truco. Eu não queria ser o primeiro a quebrar o juramento e pensava que
talvez outro, mais corajoso que eu, no meu lugar pularia nele. Mas não, eu não,
esse não era o meu estilo; preferi esperá-lo, alerta, com o facão debaixo
do cobertor, para me defender caso o Mandinga me atacasse- continuava
Victoriano.
-Mas de repente o condenado fez um movimento curto, porém
muito rápido em minha direção, como se fosse arrancar-me o cobertor de uma
mãozada. E foi aí mesmo que vi suas garras, as mãos enormes e peludas, e
devo ter dado um grito, porque ele soltou uma gargalhada.
Então percebi que eu, sem querer, tinha acabado de romper
a minha promessa, e já não poderia continuar o jogo perigoso e fatal com
Satanás- terminava o seu relato o meu avô, enquanto eu morria de
medo.
-Fui me levantando bem devagar e devolvi o pagamento ao
diabo; eram treze notas novinhas, recém saídas do banco, de mil pesos cada
um; treze “fragatas” que o demônio tinha colocado do meu lado, ao lado da
minha cadeira de balanço.
Não sei se foi um castigo divino ou se sonhei, só sei
que essa noite o diabo visitou a mina casa, e creio que para não ir
embora, porque de vez em quando escuto, lá do fundo do sítio, entre as
figueiras, a mesma gargalhada irônica, cínica e ameaçadora; e sinto o
cheiro de enxofre que marca o passo e as pegadas do Mandinga- e até o dia
de hoje me lembro da cara séria contrastando com o olhar de safado do
velho, enrolando o cigarro de palha, passando lentamente a língua pela
borda, e acendendo o fósforo na sola da alpargata seca, antes de ir embora,
devagarzinho, até os cañizos e as chapas de zinco onde se secam e tostam ao
sol as passas de figos, e antes de chegar aos montes de tunas do
fundo do sítio”
Javier Villanueva.
"Crônicas de Utopias e de Amores", São Paulo, 2006.
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