terça-feira, 31 de julho de 2012

O dia em que o Sete Peles visitou o meu avô Victoriano

O d



O velho se mexeu um pouco em sua cadeira de balanço de vime no canto do quarto do hospital, e então me dei conta de que tinha estado todo o tempo ali, fumando seu cigarro de palha com sementes de anis, bem devagar, e esperando que chegasse a hora da oração para ir buscar a Eufemia em San Antonio; e então começou a me contar:

-Uma noite o diabo visitou a mina casa - soltou de repente, sem aviso prévio e calculando o impacto, me olhando com seus olhos de velho pícaro, brilhando azuis na semi-penumbra da tarde, meu avô Victoriano. O entardecer era a hora ideal para contar histórias de terror, e ele adorava o tema do diabo.

-Não lembro bem o ano, mas acho que o diabo veio às Chacras durante um outono frio de rachar, depois de um verão que tinha sido muito longo, seco, caloroso, e com vento- disse Victoriano.

-E durante essa visita de Mandinga me limitei a abrir-lhe a porta, fazê-lo passar até a varanda, e tentar cumprir com o que ele me pedia, ou melhor dito, o que me exigia sua alma em pena: nunca, jamais deveria falar-lhe- acrescentou com voz misteriosa o velho. 
– Mas talvez esse tenha sido um grande erro meu, com o que iria me jogar a sorte mais tarde- diz o velho, acrescentando baixinho: - Puta merda! Não vai ser que alguma coisa me saia bem, caralho!
-Lembro muito bem daquele momento alucinante do encontro: não me esqueço de como cantavam como enlouquecidos os galos e revoavam os pássaros, como cacarejavam as galinhas e latiam os cachorros, e do repicar dos sinos da capela de San Antonio- conta Victoriano.
-As árvores mexiam os galhos com violência, agitadas ao vento, e tive a clara intuição de que aquela visita ia mudar nossas vidas, a de Eufemia e a minha, para sempre. A única bagagem do diabo era um livrinho velho- diz meu avô. -Não me animei a perguntar de onde vinha nem para onde iria depois, e também não me atrevi a falar muito com ele; mas durante essa noite as horas passaram tão rápido que, assim que terminava de servir-lhe um mate cozido e uns biscoitos no galpão, soaram as seis no campanário do povoado- 
continua o velho.
-Depois de uma longa semana de convivência forçada com o Mandinga, às vezes eu aproveitava quando o Mau saía da casa um pouco, e ia correndo ao seu quarto bisbilhotar nas suas coisas; e foi assim que tive a surpresa ao descobrir que, apesar de ter chegado sem mala nenhuma, o Diabo trocava de roupa todos os dias; suas calças, alpargatas e camisas eram sempre diferentes, cada vez que eu mexia em suas coisas; de diferentes cores e tamanhos, muitos tipos de roupas, todos os que você possa imaginar- me assustava Victoriano com uma voz que soava cada vez mais grossa e lenta.

Então, um belo dia, decidi fazer uma trapaça com o Diabo, para tentar desmascará-lo, para saber a que se dedicava e porque não falava. Eu queria descobrir pra onde ia ou que merda fazia em todas suas misteriosas saídas. Mas essa trapaça virou uma espécie de jogo; o Coisa Ruim tinha a mente mais cínica, perspicaz, inquisitiva, mordaz, intuitiva e sagaz que eu tivesse conhecido até então; e mina astucia caipira não me serviu de nada, muito pelo contrario, parece que me prendeu cada vez mais no meu próprio jogo; a tal ponto  que creio que cheguei a pensar que ele tinha tudo planejado desde sua chegada- contava o velho.

-Mesmo sabendo disto decidi jogar, porque, a final de contas, o que tinha a perder? Fiquei sentado na poltrona de vime da varanda para esperá-lo; tomei uns mates e fumei uns cigarros de palha, enquanto contava as horas com todos os seus respectivos minutos e segundos, porque de um momento a outro, o ônibus de La Falda ia parar, e ele entraria pelo portão da frente. Quando já estava bem escuro, e ele não chegava, e como no outono de Catamarca faz muito frio, fui até a sala e sentei na cadeira de balanço, tapado até o nariz com um cobertor grosso de alpaca- acende um cigarro de anis, dá umas tragadas, tosse e diz, meu avô Victoriano.
-Aos poucos foi vindo o sono e fechei os olhos, mas alguns minutos depois já ouvi o barulho agudo dos freios do ônibus número sete; e escutei os passos das alpargatas arrastadas do Mandinga por debaixo da Santa Rita. E quando esbarrou na cadeira de balanço da varanda… e depois, a chave que entra e vai girando na fechadura da porta verde da sala. 

Foi então que abri devagar os olhos e observei o jeito lento das duas voltas da chave, e vi a porta pesada de algarrobo, pela que, ao abrir-se, entrou brilhando um raio de luz da lua, que refletia nas baldosas de cerâmica. E vi o Mandinga atravessando a sala, direto na direção da minha espreguiçadeira. Fiquei quietíssimo, quase sem respiração; o Diabo se aproximou e do meio de suas roupas luxuosas tirou o que eu temi ser o instrumento de minha morte- prossegue Victoriano.

-O Diabo deixou então alguma coisa ao lado da espreguiçadeira, ao meu lado, e foi sentar-se bem em frente ao meu assento; olhou-me direto nos olhos, como se estivéssemos num jogo de chinchón ou de truco. Eu não queria ser o primeiro a quebrar o juramento e pensava que talvez outro, mais corajoso que eu, no meu lugar pularia nele. Mas não, eu não, esse não era o meu estilo; preferi esperá-lo, alerta, com o facão debaixo do cobertor, para me defender caso o Mandinga me atacasse- continuava Victoriano.
-Mas de repente o condenado fez um movimento curto, porém muito rápido em minha direção, como se fosse arrancar-me o cobertor de uma mãozada. E foi aí mesmo que vi suas garras, as mãos enormes e peludas, e devo ter dado um grito, porque ele soltou uma gargalhada. 
Então percebi que eu, sem querer, tinha acabado de romper a minha promessa, e já não poderia continuar o jogo perigoso e fatal com Satanás- terminava o seu relato o meu avô, enquanto eu morria de 
medo.
-Fui me levantando bem devagar e devolvi o pagamento ao diabo; eram treze notas novinhas, recém saídas do banco, de mil pesos cada um; treze “fragatas” que o demônio tinha colocado do meu lado, ao lado da minha cadeira de balanço.

Não sei se foi um castigo divino ou se sonhei, só sei que essa noite o diabo visitou a mina casa, e creio que para não ir embora, porque de vez em quando escuto, lá do fundo do sítio, entre as figueiras, a mesma gargalhada irônica, cínica e ameaçadora; e sinto o cheiro de enxofre que marca o passo e as pegadas do Mandinga- e até o dia de hoje me lembro da cara séria contrastando com o olhar de safado do velho, enrolando o cigarro de palha, passando lentamente a língua pela borda, e acendendo o fósforo na sola da alpargata seca, antes de ir embora, devagarzinho, até os cañizos e as chapas de zinco onde se secam e tostam ao sol as passas de figos, e antes de chegar aos montes de tunas do fundo do sítio”

Javier Villanueva.  "Crônicas de Utopias e de Amores", São Paulo, 2006.



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