segunda-feira, 23 de julho de 2012

O repentista e o Supay

Crédito da imagem: gauchoguacho.blogspot.com


O repentista e o Supay
Fragmento do romance “Crônica de Amores e de Utopias”.

Tudo isso me conta a minha tia e se entristece um pouco porque ela também conheceu Israel, durante muitas de nossas longas reuniões em sua casa, ela escondida atrás das cortinas, assustada quando parava um Ford Falcon na calçada, um comando que fazia a ronda rotineira sem suspeitar que um de seus piores inimigos se escondesse ali tão perto. E minha tia o admirava também, sem saber tampouco que esse perigoso intelectual se assustaria tanto que fugiria um belo dia sem oferecer combate, mudaria de país e de vida, radicalmente, decepcionando a muitos, deixando num estupor absoluto vários de seus colegas mais próximos, o Cavalo Augusto, Javier, e ao mesmo Rafa.
– "Bom, che, não fique assim, se quiser posso brindar-lhe uma paixão de verão, ou o amor de qualquer outra mulher, mas não o de Viviana, ficou claro" – tentava conformá-lo o Satanás, segundo me conta agora minha tia Rosa.
– "Não, obrigado, isso eu consigo fácil, obrigado", murmurou o velho Israel, cabisbaixo e cada vez mais derrotado. – E por fim, e sempre seguindo o relato de minha tia, Vilhas foi embora, murmurando algo inaudível, sem despedir-se de ninguém.
 – O diabo não se incomodou e aproveitou para, irreverente, abaixar as calças e mostrar a bunda para uma velha beata que ia passando pela calçada em frente, a caminho da igreja, enquanto soltava novas, impudicas e estrondosas ventosidades – ruboriza-se Rosa, enquanto um reflexo dourado curiosamente cintila nos seus olhos, que agora me parecem cada vez mais claros, e sua figura continua apagada no espelho do seu quarto de Ramos Mejía.

Quando era um pouco mais das cinco da manhã, cansados de andar e mortos de fome e de frio, foram se sentar um pouco no Tortoni, na Avenida de Mayo. O Diabo, dom Mandinga, travestido de homem magro e alto, além de cansado, estava deprimido pelos sucessivos fracassos daquela noite – relata minha tia. – E dizem que Leiva estava quase tentado a presentear-lhe de uma vez por todas a alma para que fosse embora de uma vez por todas, e ele, Leiva, pudesse voltar tranquilo ao seu jogo no bar, ou ir dormir no seu quarto de hotel – diz a Rosa que lhe contaram uns vizinhos de Ramos Mejías que voltavam do trabalho no turno da noite dos trens, e os viram.

Mas de repente apareceu no café um brasileiro, mulato, alto e magro, com uma capa escura nos ombros, vermelha como a de um bispo, e um violão nas costas; vestido segundo a tradição antiga do campo: bombachas de gabardine, botas pretas sanfonadas, camisa cinza e colete de pele de ovelha, lenço no pescoço, e um gamulán velho e encardido por debaixo da capa – continua minha tia Rosa, narrando que tão de repente como tinha chegado, o homem começou a cantar bem baixinho, com os lânguidos acordes dedilhados de uma milonga; e logo depois, como se do nada, começou a improvisar um aro-aro, o que significava um claro desafio e que, como é mais que sabido, podia terminar muito bem, com todos os amigos tomando do gargalo da mesma garrafa, ou em um tremendo arranca-rabo.

"Aro-aro-arooo... yo me presento señores, eu me apresento senhores, pois sou o Coisa Ruim, el Siete Pieles, el que te roba la sombra, e nesta agradável reunião, en esta amable tertulia, me chamaram à inspiração, com um caráter de urgência. Como um assunto de grande premura, reclama la inspiraciooón, se dentre o público presente eu achasse um trovador, lo desafío, señores, eu o desafio sim senhores, pra discutir qualquer assunto, a disputar neste ponto, en versos de contrapunto, em rimas de um contraponto, pra ver quem é o melhooor", lançou o desafio o Coisa Ruim, viola em punho, olhar atrevido, testa altiva de quem sabe que tem pouco, muito pouco a perder.

O caderno do meu velho entra fundo no tema do demônio; confesso que cansa e às vezes me irrita; masmomentos em que o tema volta a me interessar e tento entender por que meu pai tinha tanto fascínio pelo Diabo. O historiador tucumano Ricardo Rojas, que passou a juventude em Santiago del Estero, contou a Fuenzalida que o Supay prefere a forma humana para aparecer: “Ele certa vez encarnou no corpo de um rapaz bonito, aparecendo do nada em um rancho para atentar os desejos de certa mulher ingênua. Mostrou-se em outra ocasião como um gaúcho rico e jovem que visitou a floresta em seu cavalo enfeitado de mágicos arreios”. Villanueva contava que Victoriano dizia que o Maligno vive nos vários lugares da tentação, em meio do jogo e do prazer. O Supay é quem rege as reuniões da salamanca, e tem como súditos sapos, víboras, duendes e os desditados que venderam suas almas em troca de alguma graça terrena. Ali vão bruxas, almas condenadas e demônios dos infernos, e ao entrar na caverna todos beijam o traseiro de um carneiro e logo se entregam à farra. De longe se ouve então o estrondo da música e as loucas gargalhadas dos condenados, que ficarão vários dias sem dormir e nem vão notar o cansaço. Além disso, disse meu pai que lhe contava Chazarreta, são agraciados pelo Supay com alguma virtude nas artes dos instrumentos, ou com a capacidade do canto, ou da oratória, e isto lhe confirmou mais tarde Israel Vilhas, que era um virtuoso da palavra. E Villanueva diza que conheceu um ferroviário que tinha beijado o carneiro numa caverna de La Quebradita de Tafí del Valle, e que depois disso, quase não envelhecia. É que os ardis e artimanhas do Supay para alcançar seus objetivos são infinitos, seja parecendo uma criancinha ingênua, seja uma mulher linda e provocadora. A história sempre acaba com um contrato assinado com tinta nanquim e com a morte do incauto que, seja por uma mulher, ou por cantar, bailar ou por dinheiro, entregou o único bem que o homem não deve descuidar: sua alma eterna. Continuo lendo.

– O Mandinga, morrendo de ciúme, e lançando uma asquerosa e azulada névoa de enxofre pela boca e pelo nariz, lançou um rugido e arrancou a viola das mãos do desafiante, e respondeu, com o queixo tremendo de fúria... – Minha tia Rosa estremece ao contar a cena, e faíscas lhe escapam do olhar.

– "Eu sou o Diabo, senhoreeeees; sou o Diabo em pessoaaaaaaaa, e por isso é que eu aceito, e banco seu desafioooo. Saiba você, dom Morenooo, saiba você que meu canto jamais foi vencido, derrotando mais de um santooo; mas eu de graça não cantoooo, nunca canto de graça; não cantooooooo. Quero é una aposta ambiciooosa: pergunte-me qualquer coisa, pergunte-me qualquer coooisa, sobre a vida e a ciência, a história e a cultuuuuura. E se o contesto, o digoooo, se respondo, beeeeem digo, levo sua alma comigo para a região mais tenebrooosaaa, até as trevas pavorosas, ao rio do cão Cerbero, cão de tríplicee cabeeeeeça, o guardião do meu jardim, do meu Jardiiiim do Infeeeeeeernooooo" – seca a testa Rosa, suando, tosse e me conta, ainda assustada, trememdo ainda, e ainda com um fulgor estranho nos olhos.

Mas o payador não se intimidou. "Por minhaalma eu aceitoooo, por mi alma se lo aceptooo, ou então por um tintilloooo; não me asusta João Sem Terra, nem Juan Perón nem Pindonga; no me asusta Juan Sin Tierra, ni Juan Perón ni Pindonga, que nem ao Diabo respeito, mas sejamos bem discretos, que o tema vai ser profundo, diga de um modo rotundo, seu pensamento fecundo, seu mais oculto temor: o que sabe você do amor? Que sabe da dor de um amor renegado, de uma paixão rejeitada, de uma boa dor de chifres? Heim? Que sabeeee?... E se não sabe não convide, senhor, e se não sabe pague a roda de ginebra, pague pa’ todo o mundo, patrão!" – esfrega as mãos com aflição, estica nervosa as mangas do pulôver, pisca os olhos e batuca na mesa da cozinha enquanto me conta a história do diabo, Rosa.

– O Diabo cuspiu fogo no chão, derrotado, fez uma careta de raiva e cansaço e levantou uma nuvem azulada e asquerosa com o rabo pontiagudo e peludo que apareceu por debaixo do sobretudo – continua a minha tia.Depois pagou a conta a todos os aterrorizados, mudos e estupefatos frequentadores do Café Tortoni e foi embora, batendo as portas do bar com tanta raiva e frustração mal contida que os velhos vidros se quebraram em mil pedaços.

Quando eram quase sete da manhã, passou pela calçada do café o escritor Villanueva – continua o conto dona Rosa. – Com hálito de enxofre, o Diabo lhe falou ao ouvido, sedutor: "Compro a sua alma, chefe, pago bem; veja, nãonada no mundo que me interesse mais do que ter uma alma, a sua alma". – E assim começou a amanhecer, conta Rosa, mas Villanueva, surdo às súplicas do Maligno, deu-lhe as costas e foi indo embora, devagar, segurando uma risadinha de desprezo.

Javier Villanuevo. São Paulo, 2006. Fragmento de “Crônica de Amores e de Utopias”.

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