Crédito da imagem: gauchoguacho.blogspot.com
O repentista e o Supay
Fragmento do romance “Crônica de Amores e de Utopias”.
– "Bom , che, não fique assim , se quiser posso brindar-lhe uma paixão de verão , ou o amor de qualquer outra mulher , mas não o de Viviana, já ficou claro " – tentava conformá-lo o Satanás, segundo me conta agora minha tia Rosa .
– "Não , obrigado , isso eu já consigo fácil , obrigado ", murmurou o velho Israel, cabisbaixo e cada vez mais derrotado. – E por fim , e sempre seguindo o relato de minha tia , Vilhas foi embora , murmurando algo inaudível , sem despedir-se de ninguém .
– O diabo não se incomodou e aproveitou para , irreverente , abaixar as calças e mostrar a bunda para uma velha beata que ia passando pela calçada em frente , a caminho da igreja , enquanto soltava novas , impudicas e estrondosas ventosidades – ruboriza-se Rosa , enquanto um reflexo dourado curiosamente cintila nos seus olhos , que agora me parecem cada vez mais claros , e sua figura continua apagada no espelho do seu quarto de Ramos Mejía.
– Quando já era um pouco mais das cinco da manhã , cansados de andar e mortos de fome e de frio , foram se sentar um pouco no Tortoni, na Avenida de Mayo. O Diabo , dom Mandinga , travestido de homem magro e alto , além de cansado , já estava deprimido pelos sucessivos fracassos daquela noite – relata minha tia . – E dizem que Leiva já estava quase tentado a presentear-lhe de uma vez por todas a alma para que fosse embora de uma vez por todas, e ele , Leiva, pudesse voltar tranquilo ao seu jogo no bar , ou ir dormir no seu quarto de hotel – diz a Rosa que lhe contaram uns vizinhos de Ramos Mejías que voltavam do trabalho no turno da noite dos trens , e os viram.
– Mas de repente apareceu no café um brasileiro , mulato , alto e magro , com uma capa escura nos ombros , vermelha como a de um bispo , e um violão nas costas ; vestido segundo a tradição antiga do campo : bombachas de gabardine, botas pretas sanfonadas, camisa cinza e colete de pele de ovelha , lenço no pescoço , e um gamulán velho e encardido por debaixo da capa – continua minha tia Rosa , narrando que tão de repente como tinha chegado , o homem começou a cantar bem baixinho, com os lânguidos acordes dedilhados de uma milonga ; e logo depois , como se do nada , começou a improvisar um aro-aro, o que significava um claro desafio e que , como já é mais que sabido , podia terminar muito bem , com todos os amigos tomando do gargalo da mesma garrafa , ou em um tremendo arranca-rabo .
"Aro-aro-arooo... yo me presento señores, eu me apresento senhores , pois sou o Coisa Ruim , el Siete Pieles, el que te roba la sombra , e nesta agradável reunião , en esta amable tertulia, me chamaram à inspiração , com um caráter de urgência . Como um assunto de grande premura, reclama la inspiraciooón, se dentre o público presente eu achasse um trovador , lo desafío, señores, eu o desafio sim senhores , pra discutir qualquer assunto , a disputar neste ponto , en versos de contrapunto, em rimas de um contraponto , pra ver quem é o melhooor", lançou o desafio o Coisa Ruim , viola em punho , olhar atrevido , testa altiva de quem sabe que tem pouco , muito pouco a perder .
O caderno do meu velho entra fundo no tema do demônio ; confesso que cansa e às vezes me irrita; mas há momentos em que o tema volta a me interessar e tento entender por que meu pai tinha tanto fascínio pelo Diabo . O historiador tucumano Ricardo Rojas, que passou a juventude em Santiago del Estero, contou a Fuenzalida que o Supay prefere a forma humana para aparecer : “Ele certa vez encarnou no corpo de um rapaz bonito , aparecendo do nada em um rancho para atentar os desejos de certa mulher ingênua . Mostrou-se em outra ocasião como um gaúcho rico e jovem que visitou a floresta em seu cavalo enfeitado de mágicos arreios ”. Villanueva contava que Victoriano dizia que o Maligno vive nos vários lugares da tentação , em meio do jogo e do prazer . O Supay é quem rege as reuniões da salamanca, e tem como súditos sapos , víboras , duendes e os desditados que venderam suas almas em troca de alguma graça terrena . Ali vão bruxas , almas condenadas e demônios dos infernos , e ao entrar na caverna todos beijam o traseiro de um carneiro e logo se entregam à farra . De longe se ouve então o estrondo da música e as loucas gargalhadas dos condenados, que ficarão vários dias sem dormir e nem vão notar o cansaço . Além disso, disse meu pai que lhe contava Chazarreta, são agraciados pelo Supay com alguma virtude nas artes dos instrumentos , ou com a capacidade do canto , ou da oratória , e isto lhe confirmou mais tarde Israel Vilhas, que era um virtuoso da palavra . E Villanueva diza que conheceu um ferroviário que tinha beijado o carneiro numa caverna de La Quebradita de Tafí del Valle, e que depois disso, já quase não envelhecia. É que os ardis e artimanhas do Supay para alcançar seus objetivos são infinitos , seja parecendo uma criancinha ingênua , seja uma mulher linda e provocadora. A história sempre acaba com um contrato assinado com tinta nanquim e com a morte do incauto que , seja por uma mulher , ou por cantar , bailar ou por dinheiro , entregou o único bem que o homem não deve descuidar : sua alma eterna . Continuo lendo.
– O Mandinga , morrendo de ciúme , e lançando uma asquerosa e azulada névoa de enxofre pela boca e pelo nariz , lançou um rugido e arrancou a viola das mãos do desafiante, e respondeu, com o queixo tremendo de fúria ... – Minha tia Rosa estremece ao contar a cena , e faíscas lhe escapam do olhar .
– "Eu sou o Diabo , senhoreeeees; sou o Diabo em pessoaaaaaaaa, e por isso é que eu aceito, e banco seu desafioooo. Saiba você , dom Morenooo, saiba você que meu canto jamais foi vencido, derrotando mais de um santooo; mas eu de graça não cantoooo, nunca canto de graça ; não cantooooooo. Quero é una aposta ambiciooosa: pergunte-me qualquer coisa , pergunte-me qualquer coooisa, sobre a vida e a ciência , a história e a cultuuuuura. E se o contesto, o digoooo, se respondo, beeeeem digo, levo sua alma comigo para a região mais tenebrooosaaa, até as trevas pavorosas, ao rio do cão Cerbero, cão de tríplicee cabeeeeeça, o guardião do meu jardim , do meu Jardiiiim do Infeeeeeeernooooo" – seca a testa Rosa , suando, tosse e me conta , ainda assustada, trememdo ainda , e ainda com um fulgor estranho nos olhos .
– Mas o payador não se intimidou. "Por minha ’alma eu aceitoooo, por mi alma se lo aceptooo, ou então por um tintilloooo; não me asusta João Sem Terra , nem Juan Perón nem Pindonga; no me asusta Juan Sin Tierra, ni Juan Perón ni Pindonga, que já nem ao Diabo respeito , mas sejamos bem discretos , que o tema vai ser profundo , diga de um modo rotundo , seu pensamento fecundo , seu mais oculto temor : o que sabe você do amor ? Que sabe da dor de um amor renegado, de uma paixão rejeitada, de uma boa dor de chifres ? Heim? Que sabeeee?... E se não sabe não convide, senhor , e se não sabe pague a roda de ginebra, pague pa’ todo o mundo , patrão !" – esfrega as mãos com aflição , estica nervosa as mangas do pulôver , pisca os olhos e batuca na mesa da cozinha enquanto me conta a história do diabo , Rosa .
– O Diabo cuspiu fogo no chão , derrotado, fez uma careta de raiva e cansaço e levantou uma nuvem azulada e asquerosa com o rabo pontiagudo e peludo que apareceu por debaixo do sobretudo – continua a minha tia . – Depois pagou a conta a todos os aterrorizados, mudos e estupefatos frequentadores do Café Tortoni e foi embora , batendo as portas do bar com tanta raiva e frustração mal contida que os velhos vidros se quebraram em mil pedaços .
Javier Villanuevo. São Paulo, 2006. Fragmento de “Crônica de Amores e de Utopias”.
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