GIARDINELLI,
Mempo. Voltar a ler: propostas
para ser uma nação de leitores.
Víctor Barrionuevo (Tradutor) São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 2010
Por Flavia Krauss*
*Professora de Língua Espanhola e Estágio Supervisionado em Língua Espanhola
e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana na Universidade do Estado de Mato
Grosso, campus de Tangará da Serra e doutoranda do Programa de Língua Espanhola
e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana da Universidade de São Paulo.
Publicado em abehache, revista da Associação Brasileira de Hispanistas. Ano 2 - nº 3 - 2º semestre 2012.
http://www.hispanistas.org.br/abh/images/stories/revista/Abehache_n3/abehache3%20_18_12.pdf
"Este é um livro que materializa um grande desejo de
desestabilizar o caráter elitizante que reveste a leitura ainda hoje em nossa
sociedade. É uma obra que, ao divulgar os resultados de uma prática,
primeiramente desenvolvida em experiências pessoais, vai se estendendo aos
poucos e tentando estabelecer (muito mais por conhecimento de uma causa
concreta que por ginásticas conceituais) uma teoria sobre a formação de
leitores: todas as conclusões às quais se chega neste livro partem de uma
experiência palpável e não de malabarismos filosóficos.
Giardinelli se deixa entrever através de sua escritura em
uma posição muito próxima à figura do intelectual orgânico desenhada por
Gramsci, já que não fala desde uma casta separada do restante da sociedade,
mas, sim, desde seu interior, entrelaçando-se às suas vicissitudes e assumindo
seu papel como o resultado da interpenetração entre conhecimento científico,
filosofia e ação política. Voltar a ler... é um livro que, consciente das
condições de produção de seu tempo (tanto no âmbito econômico quanto no terreno
do simbólico e do cultural), alinhava estrutura e superestrutura na construção
de propostas para nos tornarmos uma nação de leitores. Usamos aqui uma primeira
pessoa do plural (nos tornarmos uma nação de leitores) por acreditarmos que,
ainda que o livro tenha sido escrito na Argentina, suas constatações e
propostas descrevem com precisão e se ajustam com poesia a nossos Brasis.
Vivendo em Resistência (no Chaco argentino), o autor sabe
que a leitura é uma forma imprescindível de resistência e consegue contagiar
aos que estão à sua volta em prol da causa por ele defendida: “na fundação que
presido (...) temos um voluntariado ativo de mais de 3 mil ‘avós contadoras de
contos’, que todas as semanas visitam escolas em mais de setenta cidades do
país, levando leituras a dezenas de milhares de crianças. Uma tarefa que,
sustentada há já dez anos, vem dando frutos notáveis” (p. 10).
Sabendo que o conhecimento acadêmico não é o suficiente para
mudarmos a relação de nossa sociedade com a leitura, a obra não se propõe
somente a uma análise cognitiva ou sociológica dos motivos pelos quais não se é
uma nação de leitores. Este é um livro de um autor que se coloca muito mais
como uma figura que consegue mobilizar e movimentar os que estão ao seu redor,
do
que como um teórico tradicional a serviço do status quo,
conforme ele mesmo afirma já na introdução (p.15): “As reflexões contidas neste
livro são resultado de mais de vinte anos de trabalho e da consciência da
importância e necessidade de uma política de leitura que a Argentina – como tantos
outros países – necessita”. Entretanto, é de suma importância destacarmos que
esse engajamento não escorrega em nenhum momento na prática irreflexiva, já
que, o livro aqui em pauta trata justamente de uma reelaboração teórica de tudo
o que o autor vem desenvolvendo nestas últimas duas décadas, oferecendo força
à interpretação de que estas são palavras que se propõem a
interferir na realidade circundante. Inclusive, no prólogo à versão brasileira,
o autor nos aponta o caráter hegemônico alcançado por suas propostas: alguns
dos planos de ação elencados na obra em questão já são adotados como políticas
de Estado em seu país.
Ao fazer um resgate histórico sobre a importância da
leitura, em um percurso diacrônico, localiza em Cervantes, ainda no princípio
da modernidade, o
movimento fundador da percepção do poder da leitura, já que
foi o pioneiro a exortar que “ler abre os olhos” (p. 22). Desde então, a
leitura seria uma prática,
senão intrínseca, ao menos desejável na constituição de
subjetividades e, posteriormente, no conceito de nação, categoria que reverbera
no próprio título
da obra aqui resenhada. Nesta linha de raciocínio, acaba por
argumentar que a
própria construção da tão mentada democracia dependeria de
uma política de leitura séria e persistente (p. 154).
Em um tom que se assemelha ao da conversa (o que nos faz
estabelecer
certo paralelismo com sua defesa da leitura em voz alta como
uma das principais práticas de estímulo à leitura), defende uma política
leitora que seja levada a cabo por diferentes agentes (mães, pais,
bibliotecárias, professores e voluntários), mas sem sua desescolarização: “a
leitura deve voltar ao terreno do curricular, com tempo e espaço específicos e
pautados dentro do horário escolar” (p.95), já que a entrada de diversos
objetos de ensino nesse âmbito acabou, como bem sabemos, por obliterar o papel
da leitura na escolarização das novas gerações. Para reescolarizar a leitura,
deveríamos também “conseguir que as estratégias sejam sustentáveis com o passar
do tempo” (p. 223). Para tanto, observa “são necessárias decisão, constância e
paciência” (id.). Por ser a leitura, conforme também se evidencia neste livro,
um tema de tamanha importância em nossa sociedade, acreditamos que estas letras
giardinellianas, cheias de paixão e mobilização, sejam de conhecimento
indispensável, sobretudo em tempos de indecisão, inconstância e, como diz
Coracini em A Celebração
do Outro (Campinas: Mercado de Letras, 2007), de crise do desejo.
Ao percorremos as 228 páginas desta obra com tradução de
Víctor Barrionuevo, somos interpelados pelo convite não explicitamente
formulado (pois não é verdade que o mais importante se diz entre uma linha e
outra?), mas sugerido na totalidade da obra: o de nos tornarmos operários para
a constante construção de uma espécie de paraíso terrenal pensado como uma
biblioteca (não era assim que Borges o idealizava?), mas com a convicção
certeira de que, se não for para todos, não será para ninguém".
* Publicado na Revista
da Associação Brasileira de Hispanistas. Ano 2 - nº 3 - 2º semestre 2012
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