quinta-feira, 15 de maio de 2014

Monteiro Lobato, Dom Quixote das crianças e as leituras adaptadas e facilitadoras.


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Monteiro Lobato, Dom Quixote das crianças e as leituras adaptadas e facilitadoras.

Semana passada eu ouvia na TV a enorme gritaria sobre as adaptações ao texto de Machado de Assis. Tranquilo na poltrona da minha biblioteca, me adormecia divagando: o que pensaria o escritor, hoje clássico e tão pouco tempo atrás moderno, se fosse testemunho da polêmica? E o que opinaria Monteiro Lobato -pioneiro das adaptações e “facilitações da leitura”- sobre o tema?
Adormeci e sonhei com o homem das sobrancelhas espessas e suas contradições entre as simpatias pelo comunismo e o linguajar pouco cuidadoso –para a nossa época, pelo menos- com os conceitos de cor da pele, negritude, racismo, e outros temas que hoje são decisivos.
E lembrei do seu “Dom Quixote das crianças”, que a Editora Brasiliense publicou em 1956, por exemplo. Cochilei uns minutos e acordei justo quando Dona Benta começava a ler o clássico espanhol; mas, logo após o primeiro parágrafo, vi que a velhinha era obrigada a contar com suas próprias palavras a saga do herói de Cervantes:
Acordo de uma vez e ouço a Dona Benta começando a ler o texto para a irriquieta Emília:
– “Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo dos da lança em cabido, adaga antiga e galgo corredor”.
– Ché! – exclamou Emília. – Se o livro inteiro é nessa perfeição de língua, até logo! Vou brincar de esconder com o Quindim. Lança em cabido, adaga antiga, galgo corredor... Não entendo essas viscondadas, não...
– Pois eu entendo – disse Pedrinho. – “Lança em cabido” quer dizer lança pendurada em cabido; “galgo corredor” é cachorro magro que corre e “adaga antiga” é... é...
– Engasgou! – disse Emília. – Eu confesso que não entendo nada. Lança em cabido! Pois se lança é um pedaço de pau com um chuço na ponta, pode ser “lança atrás da porta”, “lança no canto” – mas “no cabido”, uma ova! Cabido é de pendurar coisas, e pedaço de pau a gente encosta, não pendura. Sabem que mais, meus queridos amigos? Vou brincar de esconder com o Quindim...
– Meus filhos – disse Dona Benta, – esta obra está escrita em alto estilo, rico de todas as perfeições e sutilezas de forma, razão pela qual se tornou clássica.
Mas como vocês ainda não têm a necessária cultura para compreender as belezas da forma literária, em vez de ler vou contar a história com palavras minhas.
– Isso! – berrou Emília. – Com palavras suas e de Tia Nastácia e minhas também – e de Narizinho – e de Pedrinho – e de Rabicó. Os viscondes que falem arrevesado lá entre eles. Nós, que não somos viscondes nem viscondessas, queremos estilo de clara de ovo, bem transparentinho, que não dê trabalho para ser entendido. Comece.
E Dona Benta começou, da moda dela:
– Em certa aldeia da Mancha (que é um pedaço da Espanha), vivia um fidalgo, aí duns cinqüenta anos, dos que têm lança atrás da porta, adaga antiga, isto é, escudo de couro, e cachorro magro no quintal – cachorro de caça.



JV. São Paulo, 15 de maio de 2014. Adaptação de texto de Monteiro Lobato: Dom Quixote das crianças, São Paulo, 1956, Editora Brasiliense. Os acentos e a grafia dos anos 50 a 70 foram mantidos.

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