quinta-feira, 9 de junho de 2016

A máscara da traição e o mordomo que roubou 500 milhões de cruzeiros




A máscara da traição e o Mordomo

500 milhões de cruzeiros no roubo ao Maracanã
Conto breve inspirado em alguns fatos reais da vida política brasileira e baseado no filme Máscara da Traição, de 1969, policial dirigido por Roberto Pires e encenado por Tarcísio Meira, Glória Menezes e Cláudio Marzo.


Quem tem mais de 40, 45 anos, sabe que a moeda brasileira já teve diversas denominações e alterações várias nos seus valores ao longo das últimas décadas. 
Só com a denominação "cruzeiro" foram três períodos distintos, sendo sempre ao final substituído este nome por uma nova moeda, com nova denominação: 

O primeiro Cruzeiro, que vigorou de 1940 a 1966, foi substituído pelo Cruzeiro novo.

O segundo Cruzeiro, de 1970 a 1986, foi trocado pelo Cruzado, junto com o Plano Sarney. 

O último dos cruzeiros, de 1990 a 1993, foi substituído pelo Cruzeiro novo, com o Plano Collor. Essa foi a última moeda brasileira antes do atual Real, que durante alguns meses de ajustes se chamou ORTN, e passou por uma salada de siglas como OTN, BTN e BTN-TR. Alguém se lembra?


Quanto valeriam hoje 500 milhões de cruzeiros velhos?

Vamos nos transportar, antes de responder à pergunta, que é de matemática pura, aos anos 70, época em que o Dr. Michel é o mordomo de uma grande dama, a dona Dilma. Mas o mordomo também trabalha, nas horas vagas e sempre que a bonachona e confiada Dilma lhe permite, como assessor do Departamento de Finanças do Maracanã. 

Eduardo, o contador do Maracanã, trabalha com ele durante esses bicos noturnos e de finais de semana, que rendem grandes tocos para cada um. Mas quem sabe por que, eles se odeiam. 
Um dia Claudia, a esposa do mordomo Michel, se encontra casualmente na rua com o Eduardo, o contador,  perto de uma galeria de arte. Conversam, tomam um café, passeiam pela galeria, e aí ela descobre que o contador desenha e modela muito bem e que é um verdadeiro amante das artes. 

Claudia convida Eduardo, o contador, para ir visitar seu ateliê, vizinho do MAM do Rio de Janeiro. E quadro vai, gravura vem, eles terminam engatando um fogoso romance, o que naqueles anos a nossa pobre e sofrida classe média remediada chamava elegantemente de "affair", ou "caso". 

Passam os meses e o casal de amantes começa a sonhar com viver juntos, refazer suas vidas e até fugir para São Paulo.
Mas o marido dela -o mordomo Michel- representa um sério empecilho. São anos de um grande conservadorismo nos costumes; as mulheres separadas -"desquitadas" era o termo exato- eram tratadas de "vagabundas", mesmo tendo sido elas traídas e abandonadas pelos seus maridos. E o Michel, Claudia o sabia de sobra, não era exatamente um exemplo de fidelidade. Até tinha escrito cartas se lamentando de ser tratado como um "adorno" no casamento, embora tudo não passasse de um álibi, uma enganação para ocultar suas trapaças.

Por fim, e graças à inteligência brilhante de Claudia -acrescentada em astúcia e dissimulo durante os longos anos de convivência com Michel o mordomo- ela e o Eduardo pensam e discutem até conseguir armar um detalhado plano que lhes permitisse ficar juntos e até, se possível, fugir com o dinheiro do marido chifrudo. 
Claudia guarda em casa uma máscara vazada em gesso que ela, artista plástica habilidosa, esculpira do rosto do marido Michel. Utilizando este objeto, Eduardo produz una máscara em látex, que se parece com uma perfeição inigualável ao rosto do Michel, como duas gotas de água. Foram mais de seis ou sete ensaios, durante duas semanas, estragando quase três quilos de látex, mas o resultado foi primoroso.

Eduardo, o contador, se toma ainda um par de meses observando atentamente seu chefe, aprendendo a imitar seus jeitos e falas, sua voz, modo de andar, as roupas e costumes.

O plano de Claudia é fazer com que o Eduardo, utilizando a máscara, passe a assumir o lugar do traído Michel. 
Mas a situação vai se complicando até que o mordomo -Michel, financista nas horas vagas- por um desencontro no trabalho, acaba demitindo o Eduardo por justa causa. O desprezo de Michel pelo Eduardo vinha crescendo e explodiu num ataque de ira uma manhã em que cismou de vez com as caricaturas que o contador fazia o tempo todo, descuidando às vezes o próprio serviço para agradar os seus colegas.

O ódio mortal de Eduardo pelo mordomo Michel -que frequentemente o humilhava em público- cresce com motivo do fato, pois considera a demissão injusta e assim passa os dias deprimido, desenhando as cem caras e caretas que tinha observado no mordomo e financista durante os últimos meses. 
Por fim, num dia em que acontece um grande jogo no Maracanã, e no qual está presente para receber uma medalha o mitológico Pelé, Claudia dá partida ao plano e deslancha a ação.

Logo de manhã, na hora do café, Claudia coloca no pão com manteiga do marido uma alta quantidade de gotas de Fenergan, um antialérgico que produz sono profundo quando tomado em grandes doses. Eduardo corre e assume de imediato o lugar do Michel no escritório do Maracanã; e usando a máscara de borracha e as roupas do marido traído, passa uma boa meia hora de conversas, fazendo-se ver por todos os funcionários que estavam de expediente, imitando as falas e os gestos de Michel, para finalmente roubar os seis malotes do dinheiro arrecadado na bilheteria. 

A polícia não tem a menor dúvida de que o crime fora praticado por Michel. Ao final das contas foi ele, o mordomo-financista, quem desfilou o rosto (falso, de borracha) em frente aos colegas do serviço, meia hora antes do dinheiro -500 milhões de cruzeiros- desaparecer do cofre da bilheteria.
Muitas testemunhas o viram sair do Maracanã com o carro forte, e Michel não conseguia explicar na delegacia o que tinha acontecido, afinal ele estava altamente dopado enquanto o falso Michel se passeava pelo escritório.
O que faz com que a situação se complique cada vez mais para Michel, pois os depoimentos das pessoas que trabalham no setor financeiro do estádio só acrescentam motivos para que o delegado Ramírez se empenhe em arrancar a confissão ao calado mordomo que era financista nas horas livres. 

Mas o que parecia ser um grande golpe de Eduardo contra o Michel termina sendo uma grande armadilha.
A polícia, depois de muita súplica por parte do suspeito detido, vai atrás da única pista que o Michel pode oferecer ao seu favor: o funcionário despedido e ressentido; e depois de uma longa busca o delegado encontra o molde de gesso com as feições do mordomo quem, nas suas funções de assessor financista, botara o Eduardo no olho da rua.

Com a descoberta, Michel é liberado, assume novamente suas funções na contabilidade do Maracanã, e o Eduardo vai dar com os ossos na cadeia.
Mas os 500 milhões de cruzeiros não aparecem.
Acontece que a meritíssima Claudia, ao ver ruir o plano de fuga para São Paulo com o amante, decide não trocar o velho pelo novo (que finalmente já estava atrás das grades) nem o certo pelo duvidoso, e fica com o marido.

O mordomo Michel aceita as desculpas da traiçoeira esposa -afinal a carne é fraca, né?-, e juntos decidem viajar para sempre, e isto a polícia não sabe, porque Claudia está desaparecida desde a detenção do marido, carregando os suculentos 500 milhões.

Claudia, a redimida esposa do mordomo Michel, sobe num avião da Varig-Cruzeiro, transportando duas gordas malas e fantasiada de Bispa Hernández, rumo à Flórida, lugar onde o sol aquece mais quente os sonhos dos meritocráticos.


Javier Villanueva, São Paulo, 8 de junho de 2016.

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