O jovem amigo Walter Falceta Jr. faz uma
valiosa contribuição à memória, aquela que sempre chamamos neste blog de “nexo
entre a grande História –com H maiúsculo- e os acontecimentos corriqueiros, o
nosso dia-a-dia”.
Para os que
gostam de futebol e de política, e sobretudo para os que sabem da sutil relação
entre os gostos populares e a Utopia revolucionária. Aqui vai, um punhado de pérolas
sobre o lutador Marighela, a Democracia Corinthiana e o Sócrates Brasileiro. (JV)
A MEMÓRIA
RESGATADA.
Marighella: A
MORTE DE UM CORINTHIANO
Há muitos anos, tive como colega de classe a ex-combatente Flavia Schilling. Delicada e generosa, logo se tornou uma amiga.
Flavia, filha de um ex-assessor de Leonel Brizola, era ainda adolescente quando se indignou com as prisões ilegais, torturas e assassinatos cometidos pelos governos de direita na América do Sul. Morando com a família no Uruguai, juntou-se ao Movimento de Libertação Nacional (MLN), ligado aos legendários Tupamaros.
Tinha 19 anos quando foi baleada no pescoço e presa. Ninguém sabe como, mas sobreviveu. Depois, foi barbaramente torturada e sobreviveu.
E assim se passaram 7 anos e meio, até que fosse finalmente libertada.
No Brasil, apresentou-me a Clara Charf, uma senhora doce e sorridente que era nada menos que a viúva do revolucionário resistente Carlos Marighella.
Ela própria estivera exilada por 10 anos e, naquele momento, procurava reassumir seu lugar na luta contra a Ditadura.
Clara foi
candidata a uma vaga no parlamento. Mesmo sem recursos, conseguimos que
obtivesse 19.560 votos. Não foi o suficiente para se eleger. Mas bastou para
que víssemos uma sociedade ainda estava viva na luta contra a opressão.
Naquela
época, fazia sucesso a Democracia Corinthiana, que logo animou Clara. Num
encontro para avaliação da campanha, perguntei-lhe se Marighella gostava de futebol
ou se o considerava o ópio do povo, como diziam alguns intelectuais.
- Imagina,
não é ópio nenhum. Se bem compreendido, o futebol liberta. E o Carlos sabia
disso.
Ela contou de um tempo
Dias depois, segundo ela, Marighella lamentou-se profundamente por não ter elementos para discutir a rodada do campeonato com um taxista.
Clara explicou que, no Rio, Marighella tinha simpatia pelo Flamengo. Quando veio para São Paulo, no entanto, endoidou pelo Corinthians.
Ele pensava que o Brasil faria sua grande revolução se os combatentes tivessem a garra e o amor dos corinthianos, um pensamento que depois seria repetido pelo nosso Sócrates Brasileiro.
Guardei essa informação na memória. Não tinha qualquer prova desse depoimento, tampouco voltei a me encontrar com a bondosa velhinha.
Até que encontrei, recentemente, um estudo do historiador Edson Teixeira da Silva Júnior, "A Face Oculta de Marighella", em que o caso do táxi e a predileção pelo Corinthians são atestados pela viúva.
Pronto. Em minha mente, botei mais um corinthiano na galeria dos grandes brasileiros.
Você vai ouvir por aí que Marighella era um bandido e assassino. Desconfie dessa informação.
Marighella era um mestiço brasileiro. Metade italiano da Emília, metade negro do Sudão, nascido na Bahia.
Era um
poeta, gostava de bichos e tinha um lado romântico e elegante.
Só não gostava era de injustiças e preconceitos. Aí, virava um bicho e não tinha medo de brigar.
Sem suas ações diretas contra o regime, muitos resistentes teriam simplesmente morrido na prisão.
Em 1969,
Marighella era considerado o "inimigo público número 1" pelo DOPS
paulista. Era implacavelmente perseguido pelo delegado torturador Sérgio
Paranhos Fleury.
Numa noite de novembro, finalmente as forças da repressão conseguiram encontrá-lo, diante do número 800 da Alameda Casa Branca,
Na emboscada, Marighella não teve chance de se defender. Foi morto a tiros, numa ação que gerou grandes celebrações nos quartéis de todo o Brasil.
No momento do crime, Corinthians e Santos jogavam no Pacaembu lotado, com portões abertos.
No segundo tempo, os alto falantes anunciaram a morte do líder esquerdista, sem informar seu apreço pela cultura mosqueteira.
O Corinthians goleou o rival por
O líder mulato da resistência morreu sem saber o resultado do jogo, que acompanharia por um radinho de pilhas.
Caía, assim, Carlos Marighella, caía um anônimo corinthiano. Mas a luta continuava. A luta sempre vai continuar.
A HISTÓRIA SECRETA DA AÇÃO
DIRETA CORINTHIANA PELA ANISTIA
Ontem, por ocasião dos debates em torno das declarações do "sabe-tudo" Emir Sader, o colega Thales Migliari nos brindou com a foto em que a torcida corinthiana desafia os tiranos militares e exibe uma faixa em favor da Anistia Ampla Geral e Irrestrita.
Ontem, por ocasião dos debates em torno das declarações do "sabe-tudo" Emir Sader, o colega Thales Migliari nos brindou com a foto em que a torcida corinthiana desafia os tiranos militares e exibe uma faixa em favor da Anistia Ampla Geral e Irrestrita.
Essa imagem costuma frequentar os debates sobre futebol e política, mas pouca gente conhece os segredos dessa intervenção histórica, ocorrida em 1979, ainda na vigência da Ditadura.
O protagonista do caso é o CORINTHIANO Antonio Carlos Fon, jornalista respeitado e ético, que ganhou os principais prêmios brasileiros da categoria, como o Esso e o Vladimir Herzog.
Mestiço do mundo, Fon é 50% chinês, por contribuição do pai. Pela parte da mãe, tem 25% de sangue índio, 25% de sangue africano.
Foi membro da Aliança Libertadora Nacional, participando ativamente da resistência à Ditadura. Era apelidado de "pequeno grande guerreiro", por ser baixinho, magrinho e destemido.
Foi preso, torturado e respondeu a processo instaurado com base na famigerada Lei de Segurança Nacional.
Foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT) e presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo, no início da década de 1990.
Abaixo, numa fusão de dois depoimentos, um deles para a Fundação Perseu Abramo, ele conta, com suas próprias palavras, como a resistência democrática e a Fiel marcaram um gol de placa contra a repressão:
“ Em 1979, nós parentes e amigos de perseguidos políticos, tínhamos fundado o Comitê Brasileiro pela Anistia.
Mas, a palavra de ordem anistia estava muito restrita aos intelectuais, setores mais politizados e aos familiares e discutíamos muito como levar isso para o povo.
Um dia eu estava conversando com o Chico Malfitani que trabalhava comigo na Veja, e disse para ele: ‘O que precisamos mesmo é levar a palavra de anistia para a torcida do Corinthians, para o povo’.
O Chico era um dos pioneiros da Gaviões e disse: ‘Vamos fazer’. Combinamos fazer isso num jogo Corinthians e Santos.
No dia, o Chico teve um problema familiar e chegou um pouco mais tarde, mas nós entramos, conversamos com o pessoal com quem ele tinha acertado e avisamos somente uma pessoa na imprensa: Osmar Santos, que era um locutor esportivo mais conhecido e de esquerda, ligado às lutas democráticas.
E o Osmar Santos, anunciou: ‘A Gaviões vai fazer uma surpresa quando o time entrar em campo’. E isso levou todas as outras rádios, emissoras de TV e jornais a ficar esperando.
Na hora em que o time entrou, muitos fogos, aquela fumaça... E abrimos a faixa. Na hora que a fumaça baixou estava lá: Anistia Ampla, Geral e Irrestrita.
Quase todo mundo fotografou e isso foi para o Brasil inteiro. E realmente conseguimos o objetivo; só que a PM tentou subir para nos prender.
Quando a polícia começou a subir os degraus da arquibancada, os torcedores da Gaviões da Fiel deram-se os braços e fecharam o caminho.
Os soldados da Polícia Militar ainda tentaram forçar a passagem mas, nas fileiras de trás, milhares de outros corinthianos, braços dados, formando uma massa compacta, começaram a gritar, ameaçando descer as escadarias do estádio do Morumbi.
O comando do policiamento deve ter avaliado a situação e dado uma contra-ordem, porque os PMs recuaram, desistindo de chegar até nós.
- "Eles estavam falando da nossa faixa"- dizia um torcedor ao meu lado, rádio de pilha colado no ouvido, boné e camiseta do Corinthians e um sorriso nos lábios.
Eu jamais o vira antes e nem o encontrei depois, mas nunca o pronome possessivo na primeira pessoa do plural (nossa) me pareceu tão saboroso.
- "Anistia, ampla, geral e irrestrita" – dizia a faixa, e o fato dele a chamar de "nossa" tinha, para mim, pelo menos, um significado que ultrapassava em muito aquela fugaz solidariedade que se estabelece nos campos de futebol entre torcedores do mesmo time: a bandeira era minha e da torcida do Corinthians.
Só que o outro companheiro que tinha levado a faixa, Carlos MacDowell, era santista e ele disse: ‘Fon, não vou ficar assistindo o jogo aqui na torcida do Corinthians. Vou assistir da torcida do Santos’.
Ele desceu e a PM o prendeu. Ele ficou preso pouco tempo, porque já tínhamos um esquema com o advogado Luís Eduardo Greenhalg, que o liberou no DOPS.
O engraçado, é que tive que fazer uma matéria para a Veja e ir ao DOPS para entrevistar o Edsel Magnotti, delegado titular que era quem prendia e torturava a gente.
E aí ele demorou um pouco para me receber. Quando entrei, atrás da mesa dele estava uma ampliação enorme da faixa e eu lá, segurando ela. Era aquela coisa, como se ele tivesse dizendo: ‘Olha aí seu filho da mãe, eu sei que foi você’."
* Naquele jogo, realizado no Morumbi, com público de 108 mil pessoas, Sócrates abriu o placar, aos 26 do primeiro tempo, mas João Paulo empatou para o Santos, 11 minutos depois.
O segundo tempo foi duramente disputado e já se imaginava um empate. Aos 36 minutos do segundo tempo, no entanto, Palhinha marcou e decretou mais uma vitória corinthiana.
Naquele ano, o Corinthians foi campeão mais uma vez!
TRÊS PENSAMENTOS DO ÚLTIMO
ENCONTRO COM SÓCRATES BRASILEIRO
- O negócio aqui é que o
Corinthians reúne os diferentes, Walter. É isso aqui, eu paraense, paraense de
Ribeirão, meio caboclo, você com essa cara de italiano, Falceta, ela com essa
delicadeza de japonesa, e a gente trocando uma ideia sobre uma utopia, um
utopia que deu certo, que foi a Democracia Corinthiana. Isso é que é bonito.
- O Corinthians não pode ser
visto só como um time. É uma coisa muito maior, instituição que tem uma força inimaginável,
especialmente na sua torcida, e nós vimos isso na Democracia Corinthiana. A
gente via o que tinha de corinthiano com bandeira nos comícios da Diretas Já.
Então, o corinthiano, se entendesse sua força, sua força de mobilização, ia
poder fazer muito mais por este país.
- O Wlad era um cara
fundamental para a Democracia Corinthiana, porque ele organizava, porque ele
entendeu logo o que era ser Corinthians, que ser Corinthians era ir muito além.
Ele sabia organizar e tinha essa ligação muito viva com o povo, lidava com a
linguagem, fazia essa ponte da gestão nossa com o externo. E isso era muito
importante para o movimento, que não estava só no clube, ele ia também para a
sociedade.
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