sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Futebol e revolução. Marighella e a democracia.






O jovem amigo Walter Falceta Jr. faz uma valiosa contribuição à memória, aquela que sempre chamamos neste blog de “nexo entre a grande História –com H maiúsculo- e os acontecimentos corriqueiros, o nosso dia-a-dia”.
Para os que gostam de futebol e de política, e sobretudo para os que sabem da sutil relação entre os gostos populares e a Utopia revolucionária. Aqui vai, um punhado de pérolas sobre o lutador Marighela, a Democracia Corinthiana e o Sócrates Brasileiro. (JV)


A MEMÓRIA RESGATADA.
Marighella: A MORTE DE UM CORINTHIANO

Há muitos anos, tive como colega de classe a ex-combatente Flavia Schilling. Delicada e generosa, logo se tornou uma amiga.

Flavia, filha de um ex-assessor de Leonel Brizola, era ainda adolescente quando se indignou com as prisões ilegais, torturas e assassinatos cometidos pelos governos de direita na América do Sul. Morando com a família no Uruguai, juntou-se ao Movimento de Libertação Nacional (MLN), ligado aos legendários Tupamaros.

Tinha 19 anos quando foi baleada no pescoço e presa. Ninguém sabe como, mas sobreviveu. Depois, foi barbaramente torturada e sobreviveu.

E assim se passaram 7 anos e meio, até que fosse finalmente libertada.

No Brasil, apresentou-me a Clara Charf, uma senhora doce e sorridente que era nada menos que a viúva do revolucionário resistente Carlos Marighella.


Ela própria estivera exilada por 10 anos e, naquele momento, procurava reassumir seu lugar na luta contra a Ditadura.
Clara foi candidata a uma vaga no parlamento. Mesmo sem recursos, conseguimos que obtivesse 19.560 votos. Não foi o suficiente para se eleger. Mas bastou para que víssemos uma sociedade ainda estava viva na luta contra a opressão.

Naquela época, fazia sucesso a Democracia Corinthiana, que logo animou Clara. Num encontro para avaliação da campanha, perguntei-lhe se Marighella gostava de futebol ou se o considerava o ópio do povo, como diziam alguns intelectuais.

- Imagina, não é ópio nenhum. Se bem compreendido, o futebol liberta. E o Carlos sabia disso.

Ela contou de um tempo em que Marighella esteve na clandestinidade, organizando uma ação do grupo de resistência, sem ouvir rádios ou ler jornais.

Dias depois, segundo ela, Marighella lamentou-se profundamente por não ter elementos para discutir a rodada do campeonato com um taxista.

Clara explicou que, no Rio, Marighella tinha simpatia pelo Flamengo. Quando veio para São Paulo, no entanto, endoidou pelo Corinthians.

Ele pensava que o Brasil faria sua grande revolução se os combatentes tivessem a garra e o amor dos corinthianos, um pensamento que depois seria repetido pelo nosso Sócrates Brasileiro.

Guardei essa informação na memória. Não tinha qualquer prova desse depoimento, tampouco voltei a me encontrar com a bondosa velhinha.

Até que encontrei, recentemente, um estudo do historiador Edson Teixeira da Silva Júnior, "A Face Oculta de Marighella", em que o caso do táxi e a predileção pelo Corinthians são atestados pela viúva.

Pronto. Em minha mente, botei mais um corinthiano na galeria dos grandes brasileiros.

Você vai ouvir por aí que Marighella era um bandido e assassino. Desconfie dessa informação.

Marighella era um mestiço brasileiro. Metade italiano da Emília, metade negro do Sudão, nascido na Bahia.
Era um poeta, gostava de bichos e tinha um lado romântico e elegante.

Só não gostava era de injustiças e preconceitos. Aí, virava um bicho e não tinha medo de brigar.

Sem suas ações diretas contra o regime, muitos resistentes teriam simplesmente morrido na prisão.
Em 1969, Marighella era considerado o "inimigo público número 1" pelo DOPS paulista. Era implacavelmente perseguido pelo delegado torturador Sérgio Paranhos Fleury.

Numa noite de novembro, finalmente as forças da repressão conseguiram encontrá-lo, diante do número 800 da Alameda Casa Branca, em São Paulo.

Na emboscada, Marighella não teve chance de se defender. Foi morto a tiros, numa ação que gerou grandes celebrações nos quartéis de todo o Brasil.

No momento do crime, Corinthians e Santos jogavam no Pacaembu lotado, com portões abertos.

No segundo tempo, os alto falantes anunciaram a morte do líder esquerdista, sem informar seu apreço pela cultura mosqueteira.

O Corinthians goleou o rival por 4 a 1, com dois gols de Rivellino, um de Ivair e outro de Suíngue.

O líder mulato da resistência morreu sem saber o resultado do jogo, que acompanharia por um radinho de pilhas.

Caía, assim, Carlos Marighella, caía um anônimo corinthiano. Mas a luta continuava. A luta sempre vai continuar.



A HISTÓRIA SECRETA DA AÇÃO DIRETA CORINTHIANA PELA ANISTIA

Ontem, por ocasião dos debates em torno das declarações do "sabe-tudo" Emir Sader, o colega Thales Migliari nos brindou com a foto em que a torcida corinthiana desafia os tiranos militares e exibe uma faixa em favor da Anistia Ampla Geral e Irrestrita.

Essa imagem costuma frequentar os debates sobre futebol e política, mas pouca gente conhece os segredos dessa intervenção histórica, ocorrida em 1979, ainda na vigência da Ditadura.

O protagonista do caso é o CORINTHIANO Antonio Carlos Fon, jornalista respeitado e ético, que ganhou os principais prêmios brasileiros da categoria, como o Esso e o Vladimir Herzog.

Mestiço do mundo, Fon é 50% chinês, por contribuição do pai. Pela parte da mãe, tem 25% de sangue índio, 25% de sangue africano.

Foi membro da Aliança Libertadora Nacional, participando ativamente da resistência à Ditadura. Era apelidado de "pequeno grande guerreiro", por ser baixinho, magrinho e destemido.

Foi preso, torturado e respondeu a processo instaurado com base na famigerada Lei de Segurança Nacional.

Foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT) e presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo, no início da década de 1990.

Abaixo, numa fusão de dois depoimentos, um deles para a Fundação Perseu Abramo, ele conta, com suas próprias palavras, como a resistência democrática e a Fiel marcaram um gol de placa contra a repressão:

“ Em 1979, nós parentes e amigos de perseguidos políticos, tínhamos fundado o Comitê Brasileiro pela Anistia.

Mas, a palavra de ordem anistia estava muito restrita aos intelectuais, setores mais politizados e aos familiares e discutíamos muito como levar isso para o povo.

Um dia eu estava conversando com o Chico Malfitani que trabalhava comigo na Veja, e disse para ele: ‘O que precisamos mesmo é levar a palavra de anistia para a torcida do Corinthians, para o povo’.

O Chico era um dos pioneiros da Gaviões e disse: ‘Vamos fazer’. Combinamos fazer isso num jogo Corinthians e Santos.

No dia, o Chico teve um problema familiar e chegou um pouco mais tarde, mas nós entramos, conversamos com o pessoal com quem ele tinha acertado e avisamos somente uma pessoa na imprensa: Osmar Santos, que era um locutor esportivo mais conhecido e de esquerda, ligado às lutas democráticas.

E o Osmar Santos, anunciou: ‘A Gaviões vai fazer uma surpresa quando o time entrar em campo’. E isso levou todas as outras rádios, emissoras de TV e jornais a ficar esperando.

Na hora em que o time entrou, muitos fogos, aquela fumaça... E abrimos a faixa. Na hora que a fumaça baixou estava lá: Anistia Ampla, Geral e Irrestrita.

Quase todo mundo fotografou e isso foi para o Brasil inteiro. E realmente conseguimos o objetivo; só que a PM tentou subir para nos prender.

Quando a polícia começou a subir os degraus da arquibancada, os torcedores da Gaviões da Fiel deram-se os braços e fecharam o caminho.

Os soldados da Polícia Militar ainda tentaram forçar a passagem mas, nas fileiras de trás, milhares de outros corinthianos, braços dados, formando uma massa compacta, começaram a gritar, ameaçando descer as escadarias do estádio do Morumbi.

O comando do policiamento deve ter avaliado a situação e dado uma contra-ordem, porque os PMs recuaram, desistindo de chegar até nós.

- "Eles estavam falando da nossa faixa"- dizia um torcedor ao meu lado, rádio de pilha colado no ouvido, boné e camiseta do Corinthians e um sorriso nos lábios.

Eu jamais o vira antes e nem o encontrei depois, mas nunca o pronome possessivo na primeira pessoa do plural (nossa) me pareceu tão saboroso.

- "Anistia, ampla, geral e irrestrita" – dizia a faixa, e o fato dele a chamar de "nossa" tinha, para mim, pelo menos, um significado que ultrapassava em muito aquela fugaz solidariedade que se estabelece nos campos de futebol entre torcedores do mesmo time: a bandeira era minha e da torcida do Corinthians.

Só que o outro companheiro que tinha levado a faixa, Carlos MacDowell, era santista e ele disse: ‘Fon, não vou ficar assistindo o jogo aqui na torcida do Corinthians. Vou assistir da torcida do Santos’.

Ele desceu e a PM o prendeu. Ele ficou preso pouco tempo, porque já tínhamos um esquema com o advogado Luís Eduardo Greenhalg, que o liberou no DOPS.

O engraçado, é que tive que fazer uma matéria para a Veja e ir ao DOPS para entrevistar o Edsel Magnotti, delegado titular que era quem prendia e torturava a gente.

E aí ele demorou um pouco para me receber. Quando entrei, atrás da mesa dele estava uma ampliação enorme da faixa e eu lá, segurando ela. Era aquela coisa, como se ele tivesse dizendo: ‘Olha aí seu filho da mãe, eu sei que foi você’."


* Naquele jogo, realizado no Morumbi, com público de 108 mil pessoas, Sócrates abriu o placar, aos 26 do primeiro tempo, mas João Paulo empatou para o Santos, 11 minutos depois.

O segundo tempo foi duramente disputado e já se imaginava um empate. Aos 36 minutos do segundo tempo, no entanto, Palhinha marcou e decretou mais uma vitória corinthiana.

Naquele ano, o Corinthians foi campeão mais uma vez!



TRÊS PENSAMENTOS DO ÚLTIMO ENCONTRO COM SÓCRATES BRASILEIRO

- O negócio aqui é que o Corinthians reúne os diferentes, Walter. É isso aqui, eu paraense, paraense de Ribeirão, meio caboclo, você com essa cara de italiano, Falceta, ela com essa delicadeza de japonesa, e a gente trocando uma ideia sobre uma utopia, um utopia que deu certo, que foi a Democracia Corinthiana. Isso é que é bonito.

- O Corinthians não pode ser visto só como um time. É uma coisa muito maior, instituição que tem uma força inimaginável, especialmente na sua torcida, e nós vimos isso na Democracia Corinthiana. A gente via o que tinha de corinthiano com bandeira nos comícios da Diretas Já. Então, o corinthiano, se entendesse sua força, sua força de mobilização, ia poder fazer muito mais por este país.

- O Wlad era um cara fundamental para a Democracia Corinthiana, porque ele organizava, porque ele entendeu logo o que era ser Corinthians, que ser Corinthians era ir muito além. Ele sabia organizar e tinha essa ligação muito viva com o povo, lidava com a linguagem, fazia essa ponte da gestão nossa com o externo. E isso era muito importante para o movimento, que não estava só no clube, ele ia também para a sociedade.


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