segunda-feira, 1 de julho de 2013

Pequeno conto de amor e anarquia para tempos difíceis.




Do Walter Falceta Jr.

Se os antepassados cultivaram alguma precisão, tio Savério veio ao mundo nos primeiros anos da década de 1870, em alguma casinha encarapitada no Tauromenion, na Sicília, não distante dos espetáculos ígneos do vulcão Etna.
Brotou filho da única aventura amorosa do retraído Giovani, irmão de nosso trisavô Michele. Deu-se nos tempos em que emprestara seu talento à construção de um oratório na igreja de San Giuseppe.

Marina desagradou-se da hesitação do parceiro e decidiu criar sozinha o menino. Uma vez por ano, no entanto, pouco antes do Natal, permitia que pai e filho se encontrassem.
Savério começou mirrado, mas robusteceu lá pelos 12 anos. Braço e peito ganharam músculos de tantas braçadas na água turquesa do Jônico. As pernas engrossaram de subir e descer a Castelmola, vila equilibrada lá no pico da rocha, onde cismava de perseguir o minotauro.

Antes de completar 16 anos, já se elevava resoluto a quase um metro e noventa centímetros do chão. Naquele Natal, ofertou-se o mundo como presente. Largou a mãe em prantos na Porta Messina e seguiu com o pai para Cosenza, na bota italiana.
Se o Siciliano é muitas cabeças, grego especialmente, sarraceno inclusive, Savério adquiriu feições belas e complexas, nas quais se destacava um traço mourisco. Assim, chamaram-no Turco, alcunha que não lhe agastava.

Logo depois de completar 20 anos, contaram-lhe que o compatriota anarquista Errico Malatesta havia pregado coisas boas e justas na Argentina. Maravilhado, cogitou de emigrar.
- Alto lá – objetou o advogado, homem que traduzia para a comuna o tempo moderno. - Ele já partiu da América do Sul. Adivinham-no em terras da França.
Ainda assim, Savério imaginou alguma felicidade nos territórios do Rio da Prata. Ali, de certo, a humanidade conquistara algum sólido progresso. Dividida a riqueza argêntea conforme os valores do tal Bakunine, o povo estará provando alguma satisfação.

Partiu do porto de Nápoles, num dia de chuva, decidido a investigar o resultado da revolução. Resolvera, entretanto, antes fazer escala em Santos e confraternizar com o primo Vincenzo. Em sua concepção generosa da Geografia, ia-se mesmo a pé de São Paulo a Buenos Aires.

Como tinha na celeridade a marca, não deu uma semana no Bom Retiro até enrabichar-se por uma “china”, a voluptuosa costureira Isaura, moça de olhos de amêndoa, meio guarani, meio lusitana do Algarve.
Assim, declinou temporariamente do sonho argentino. Turco vendeu peixe na rua, auxiliou um alfaiate, arrancou areia do Tietê e consertou a cobertura da Estação da Luz. Não havia labor que o fatigasse.
Saudável, rústico, mas de raciocínio certeiro e resumido, compunha um tipo masculino exemplar. Tantas saias lhe iam ao encontro que bordava mil mesuras para apresentar suas recusas. Isaura, enciumada sempre, beliscava-lhe a bochecha tesa ou tascava um catiripapo na orelhinha que copiava o mantecal.

Com a intenção ingênua de pacificá-la, Turco resolveu casar-se. Anunciou sua decisão num dia 15 de inverno. Num dia 30, celebraram as bodas, no Brás. Amaram-se dois dias no sítio de um tio dela, em Jundiaí. Depois, retornaram à labuta, agora sob o mesmo teto, fuliginoso, na rua Julio Conceição.
Exigente, Isaura decepcionou-se com a parceria fugaz, de faíscas e tropeços. Turco não parava em casa. Quase todas as noites, sumia com os companheiros, empenhado em assembleias secretas e outras ações políticas sobre as quais não revelava detalhes.

Aos domingos, costumavam almoçar na casa de algum parente. Passeavam na praça. Bem trajado, Turco desfilava orgulhoso com sua “china”, que deveras amava, porque era seu perfeito par na diversidade. Com ela, sentia-se mais anarquista, mais do mundo, amante internacionalista. Nestes dias, Isaura ganhava uma rosa e alguma canção romântica calabresa, cuja letra decifrava sem dificuldade.
Mas o siciliano era tanto que essa sua datada devoção não bastava à esposa. Isaura não era de bater boca, mas exagerava em caretas de amuada. Na cama de molas rangentes, com dengos de pirraça, negava-lhe o corpo e o carinho, simulando enxaquecas.

- Vai lá se divertir com o Damiani e o Ristori, vai – provocava a bela, referindo-se ao líderes do movimento político.

O tempo correu e Turco quis empregar-se na vidraria Santa Marina, cujo nome evocava a mãe, tão querida, tão distante. Virtuoso em muitas artes ganhou imediata admissão. Aderiu à greve, em 1909, e acabou no olho da rua.
Em seguida, auxiliou o professor Edmondo Rossoni a montar uma escolinha para ministrar educação libertária aos filhos da classe operária.
No ano seguinte, convicto de que a ordem era ocupar espaços políticos e constituir protagonismos, foi arrancar mato do terreno do lenheiro. Pois, se havia de prosperar esse tal futebol, que fosse pelos pés do povo. Então, convinha que esse pedaço da revolução fosse comandada pelo Sport Club Corinthians Paulista, a agremiação internacionalista, de todas as raças e credos.

Agora, havia também o esporte bretão na agenda apertada de Turco. Isaura bufava, torcia os lábios, mas evitava a reclamação. De vez em quando, era admitida na plateia do racha-canelas, mas somente em matches menos enervados, aqueles de caráter fraterno e festivo.
Aí, em 1917, a cavalaria matou um espanholito, o José Martinez, e a multidão carregou seu corpo até o Araçá, prometendo vingança devida. O pessoal do Cotonifício Crespi, na Mooca, decretou greve. Três dias depois, 70 mil operários cruzaram os braços, ou melhor, usaram-nos para erguer barricadas e enfrentar a polícia.

Numa escaramuça no Pari, uns trabalhadores franzinos estavam para tomar sarrafo de uma tropa legal. De repente, de uma carroça, salta o Turco, soltando vapor pelas narinas dilatadas, jurando lealdade ao Comitê de Defesa Proletária. E, sozinho, arrebentou com quatro brucutus fardados, rompendo a mandíbula de um e a rótula de outro.
Denunciado como bandido arruaceiro, Turco engrossou a lista de procurados. Caçado, restou-lhe a clandestinidade. Nesse período, Isaura chorou litros, mas de forma privada, sem alarde. Agarrou-se ao companheirismo de Baku, o vira-lata preto cujo olhar parecia compreender seu sofrimento.

Um dia, quatro meses depois, um recado varou pela fresta da porta. Era de um certo Mario, ex-ajudante do jornal La Battaglia. Dizia que estivesse na casa do primo Antonio, na noite de sábado, depois das oito. Atendeu à determinação. Ansiosa, foi entrando sem bater. A residência parecia vazia. De certo, haviam saído para tocar no baile.

Aguardou na cozinha, quieta, temerosa de ser capturada em alguma armadilha do governo. De repente, a porta raspou o cimento e uma sombra esgueirou-se para dentro. Assustou-se tanto que não lhe saiu o grito imaginado. Esfregando os olhos, reconheceu no rosto encovado, tomado pela barba dura, a beleza singular de Turco.

Controlou a palpitação, calou-se e fez-se de rogada. Respirou fundo e mirou a fruteira. Recebeu o abraço apertado, ofegante, mas não o retribuiu.
- Ah, estava com quem estava este tempo todo? Com a Zulmira, aquelazinha? Ou com a Magnólia? Ou terá agora desposado essa política?
Turco baixou devagar o corpanzil e o descansou sobre a cadeira de assento curto. Balbuciou alguma desculpa que nem ele próprio logrou compreender. Depois, largou um lagrimão que pingou como batuque no tampo da mesa.

- Olha, quer saber? – disse, num impulso. - Eu tenho um coração, que está sempre ocupado. Tem lá a minha China que o toma inteirinho, todos os dias. E essa é a coisa melhor da vida. Agora, a política é a pior coisa do mundo. A política machuca. A política enerva. Nela, se a gente está do lado certo, a derrota é quase sempre certa. A política me come por dentro, me põe em estado permanente de atenção. A política é uma maldição. É uma praga, enfermidade que não parece ter cura. Eu odeio política. O problema é que ela não pode viver sem mim. E não é porque eu me julgue grande coisa. É porque tantos homens modestos, com toda a dedicação, não dão conta de preservar dela o sentido: dar a qualquer gente o direito à justiça, ao pão, à dignidade. Não posso dormir tranquilo se imagino que falta a minha mão nesta obra. Odeio, odeio, odeio. Mas ela precisa de mim mais do que você.

Isaura não concordou. Não concordou mesmo. Mas não reclamou. Sorriu economicamente, aquiescendo por paixão, porque seu amor era desse tipo, silencioso, mas sempre vulcânico. Sabia que aqueles eram tempos difíceis, se é que existem os fáceis. Abraçou seu gigante e colou nos lábios dele os seus, amorangados e úmidos. Sorria, sem deixar que o parceiro lhe percebesse o júbilo.
No dia seguinte, os amigos arranjaram a fuga. Uma semana depois, os primos deliberaram investigar o caso. Uns corinthianos asseguraram que o casal seguira para o Rio Grande do Sul. Uns sujeitos da barbearia, porém, ofereceram distinta versão. Teriam rumado para a Argentina. O tempo correu impertinente e nunca mais a família recebeu notícias de Turco e Isaura.


Terá aquele amor de tensão triunfado sobre os outros tempos difíceis? Se falta o documento e a história, é provável que somente a ficção responda. Inventemos, pois!


 Autor: Walter Falceta, São Paulo, junho de 2013.

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