sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Memórias de um fantasma no Túnel da Morte 4ª parte. Final



Memórias de um fantasma no Túnel da Morte
4ª parte. Final

Hoje é 28 de julho de 2013, e às quatro da tarde, exatamente oitenta anos depois do grande ataque dos paulistas contra as posições mineiras e federais, novas explosões de obuses e rajadas de metralha. Vejo a marca da bala que entrou, bem pelo meio do meu peito, do lado direito do coração. Mas já não sinto nada; nem a cicatriz sobrou. Nada sobreviveu ao grande combate.
Ontem nem consegui dormir de tanto frio e umidade no túnel. Os corpos espalhados começam a se decompor, e o cheiro ficou insuportável. Mas, dois dias depois da primeira arrancada, as batalhas foram ainda mais duras, e da manhã até a noite de 30 de julho, passamos pelo pior momento dos combates no setor do túnel, com o maior número de baixas de ambos os lados.

No dia de hoje, 2 de agosto, lembro que a Vivi trouxe um bolo para festejar o meu aniversário; em menos de vinte minutos, metade do pelotão já tinha passado pra dar uma bicada e não sobraram nem migalhas. Era o primeiro aniversário que passava longe da família e de casa, em operações de guerra, mas hoje é o de 101 anos, uma data especial. Como é triste esse eterno estar descarnado! sem pele nem ossos, e sem poder receber, neste dia, nem visitas nem correspondência de lá de casa. Mas, ainda décadas depois daqueles dias, sim, chegavam cartas da Vivi; chegou uma com data de 21 de julho de 1992. Que idade ela teria então? Em 1932 eu era um moço de vinte anos e ela tinha vinte e um. Se hoje eu faço 101, quer dizer que essa última carta chegou quando ela tinha 81. Como passou o tempo! Eu morri e continuo vagando pela linha vazia do trem. E ela? que fim será que ela levou? Era tão bonita.

No dia seguinte ao ataque maciço dos paulistas, fui até o posto de comando conversar com o coronel Lery, comandante da coluna sul, e assistimos uma missa em recordação das almas penadas dos nossos soldados abatidos no combate do dia 30. Percorri cada uma das trincheiras do lado esquerdo da boca do túnel. Melhoraram muito, com bons abrigos e boas posições para o combate. Mas as sombras dos soldados caídos no combate de ontem seguem vagando pelas paredes da longa passagem, nas bordas da entrada, e até na estação. A chuva fina e fria que me atormenta ainda hoje as poucas vezes que ponho minha alma pra fora do túnel, também torturava os soldados naqueles dias de crueis batalhas fratricidas. Na guerra, a chuva é pior do que bala. A bala fere ou mata, mas a chuva e o frio úmido trazem pneumonias, gripes e resfriados.

No dia 4 agosto, bem cedinho pela manhã, caminhei pelo leito da linha do trem, na direção do túnel, para fazer uma visita rápida ao acampamento do coronel Brandão, que era o comandante da força pública mineira. Fui caminhando, mais ou menos uns vinte quilômetros, entre a ida e a volta. O meu compadre e grande amigo, o capitão Novaes, está encarregado do tráfego ferroviário dos rebeldes. Entre os meus amigos que estão do lado dos rebeldes paulistas, o que mais lembro são o Maneco, o Novaes, e o Telêmaco Maia. E também o meu primo, o Plínio de Moraes, de Barueri. Que triste e infundada é a meu parecer esta cruel guerra civil. Destruímos o que é nosso, as vidas e o patrimônio de gerações inteiras, que construíram nossos pais e avos ao longo de muitos anos e com grandes sacrifícios. Temos que lutar contra os amigos mais queridos, nossos quase irmãos. E até os parentes mais chegados também não escapam ao fragor e ao ódio da guerra.

Meu Deus! acabemos logo com esta guerra injusta que já destruiu a minha vida e tantas outras. Mas se a felicidade do Brasil depender dessa guerra injusta, que se ilumine e purifique logo o coração de nossos políticos. Que não sejam tão ambiciosos e tão ávidos de poder e riquezas. Que eles se inspirem, só e apenas, na felicidade e grandeza do povo mais humilde do nosso Brasil. Já perdi minha juventude aos vinte anos, morto tão novinho neste túnel frio e úmido. Passei dos trinta aos quarenta numa vala comum, com outros quase trinta camaradas mortos, trucidados pela metralha paulista e pelo fogo amigo no interior deste buraco na montanha. E agora, ida pra sempre a minha idade madura, e já velho, perdura a dor das batalhas no pó dos meus ossos no cemitério a cem metros da saída do túnel.

No dia seguinte ao grande combate recebi cartas do meu pai e da Viviana pelo meu aniversário. Chegaram até São Lourenço, mas não puderam continuar para dentro da zona de guerra. A artilharia está regulando as peças para o ataque de amanhã.

Quando falo dos paulistas, juro que me dói o coração. Por que sou forçado a lutar contra eles? Tenho profunda admiração pelo grande estado, o coração do Brasil, a ele me prendem muitos laços. Casei muito jovem, e depois de dois meses na capital, fui servir em Caçapava, onde passei os melhores dias de minha curta vida; foram dias iluminados pelo carinho e amizade de minha grande Vivi.

Ontem, 6 de agosto, fui visitar as posições de artilharia do capitão Jaime. Visitei a igreja em Passa Quatro acompanhado pelos soldados Cursino, Oswaldo e Ary. E deixei com o padre uma quantia em dinheiro para os pobres da cidade. No dia seguinte fui conhecer a igreja de Manacá, cuja padroeira é Santa Luzia. As saudades de casa, principalmente de minha Dolores, muito me oprimem.
Em 8 agosto fomos visitar as posições de Itaguaré, cujo comandante era o capitão Raymundo Cardoso da força pública da polícia mineira. Encontramos o capitão Monteiro e o tenente Carvalho, que regressavam do meio do caminho por causa da forte cerração. Mas os tenentes Canavarro e o Epitácio, acompanhados pelo Avelar, empregado na fazenda São Bento, seguimos até as posições. No dia seguinte, fui a Passa Quatro durante noite, para me inteirar da triste notícia da morte de meu melhor amigo, o capitão Novaes. Os paulistas, na frente leste, começam a retirada na direção da Cachoeira. Pelo menos recebo novas cartas e até os livros que me mandou a Vivi.

No dia 10 de agosto chegaram notícias da frente leste: Queluz havia sido ocupada e avançavam as tropas até Lavrinhas. Foi confirmada no dia seguinte a queda de Areias. E eu morrendo de frio e com a umidade mordendo meus ossos.
Logo depois -acho que foi na manhã do 12 de agosto- fui até o Morro do Cristal; queria ver as posições do canhão 37, comandadas pelo tenente Gama Lobo. Apenas começávamos a inspecionar as posições da força pública mineira, fomos recebidos por granadas dos rebeldes paulistas. Fomos nos guarnecer num abrigo do túnel. Mas não houve feridos e nem baixas. Mas nem por isso deixavam de desfilar as almas em procissão dos pracinhas mortos nos combates dos dias passados.

E eu lembrava que num outro vale longínquo, em Traslasierra, Córdoba, há uma outra entrada famosa às cavernas do Mandinga, uma quebrada de paredes altas e muito estreita, por onde pela noite se passeiam as almas em pena dos índios comechingones que não quiseram render-se aos soldados espanhóis, já faz mais de quatrocentos anos, e se jogaram montanha abaixo, pelos precipícios, com os seus filhos em braços, preferindo a morte antes que a escravidão.

Lembro bem que, no dia seguinte, foi interceptada uma fala pelo rádio do general paulista Klinger, em que pede a cessação imediata das hostilidades. Não chegam cartas do meu pai, nem de Viviana. E eu já estou exausto, com o esforço que fiz, e com falta total de apetite. Tenho medo deste sintoma, que é um alerta claro do meu esgotamento nervoso. Não sinto mais meu corpo, nem a pele, e a sensação de frio úmido me penetra até os ossos que já não me sustentam mais; e o desfile das almas em pena dos pracinhas mortos continua, sem parar, eterna, durante esses longos oitenta anos.


A força policial de Itaguaré sofreu ontem uma séria derrota, com cinco mortos, dois feridos graves e 58 prisioneiros. Nos dias seguintes, eu estava muito nervoso porque não chegavam mais as cartas de Vivi. Estou pesando 62 quilos. Como houve um forte tiroteio nas linhas de frente, decidimos passar pelas posições do 10º regimento de infantaria. E na volta passei em Passa Quatro. O quartel-general do destacamento fica entre Manacá e Passa Quatro, e lá discutimos sobre a extinção ou não das polícias estaduais. 

Mas aqui a situação continua inalterada e vivemos na incerteza dos acontecimentos. Os conflitos acabaram em outubro. E eu, já não mais consigo sair do túnel. Túnel maldito, que acabou com a minha juventude. Continuo baixando de peso, 58 quilos, 45, 32, 15, já sou apenas uma pele seca e transparente e ossos pontudos que me incomodam até pra dormir. Vou virando pó, vou secando, virando história. Pó e espanto.

Fin
Javier Villanueva, São Paulo e Túnel da Mantiqueira, 13 de setembro de 2013.
Fonte: Memórias do combatente Marius Teixeira Neto. Ver Diário de Guerra do Vovô Marius.

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