O Túnel da Morte. Memórias
de um fantasma.
3ª parte.
Eu
já disse que há oitenta e um anos que percorro este túnel? Andando a pé, de
norte a sul e de cima pra baixo, há mais de oito décadas que tremo de frio nessas
carnes, músculos e peles que já desapareceram há tanto tempo. E já contei que a
umidade do inverno penetra nesses ossos que faz décadas que viraram farelo?
Pois
é. Montar guarda a cada 36 horas, passar noventa minutos em pé, às vezes
parado, outras andando de norte a sul, e de sul a norte, para evitar a infiltração
dos paulistas, não é fácil. Mas, a verdade, é horrível andar sozinho e no
escuro, com o vento frio batendo no corpo.
Pois é, lembro-me muito bem
que assim que entrei no estado maior das forças armadas mineiras, já pude erceber que há uma certa indecisão
quanto à fidelidade de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul. Ao final, os
governos e suas tropas estão a favor ou em contra do governo federal de Getulio
Vargas?
Mas, continuo agora com a descrição das nossas
tropas: fazem parte do destacamento, dois batalhões da força pública policial de Minas, um
deles comandando pelo tenente coronel Francisco Brandão e o outro pelo major Pérez.
Para alegrar um pouco a rotina
e o clima pesado da guerra, a minha prima Viviana chegou sábado passado até a
estação pra despedir-me. Mais tarde, ao passar pela Barra do Piraí, no estado
do Rio de Janeiro, ainda encontrei o Julio, a Coca e o Dieguito, que trouxeram
um pacote de frango assado e polenta frita para a viagem, mas que não demoramos
nem dez minutos em devorar ai mesmo.
Houve ainda uma longa demora na
hora do embarque das viaturas e dos animais em Barra Mansa porque alguém calculou
mal o número de pranchas, e também porque apareceram mais caminhões e carros que
haviam sido desapropriados a última hora. Improvisação.
Cansados de tanta espera,
terminamos dormindo no trem. Em Volta Redonda, depois de mais uma longa demora,
embarcamos toda a artilharia pesada. Partimos com quatro composições, às sete
da noite de Barra Mansa, no dia 17 de julho e chegamos em Soledade, às cinco e meia da tarde do
dia seguinte.
O 10º regimento seguiu para a região
do Túnel, e enquanto isso, ficamos com o coronel Portela e o tenente Aricles num
hotelzinho de Soledade.
O Túnel da Mantiqueira fica no
leito da Viação Sul Mineira, que liga a cidade de Cruzeiro, em São Paulo, com a
de Passa Quatro em Minas Gerais. São 1.120m de túnel que foi cavado pelos ingleses,
quando construíram a estrada de ferro MG-SP. A última estação paulista na direção
de Minas é a de Perequê; e a primeira estação mineira, ao deixar São Paulo, é a
do Túnel. Pela Serra da Mantiqueira corre uma estrada, a SP-052 que em Minas se
chama MG-158, e que na topo da qual se situa a divisa entre os dois estados.
Por essa passagem se ligam a estação paulista de Perequê com a mineira do
Túnel.
Hoje, 20 de julho, tomamos um banho
no Rio Verde de Soledade. A minha missão como oficial orientador de um batalhão
da força pública mineira vai começar em poucos dias. Esta função era do capitão
Assunção que, mesmo ferido, não deixou a linha de frente. No dia seguinte recebi
cartas do meu pai e da Viviana. Junto com os tenentes Aricles e Lucena fomos até
um morro, a uns 4 mil metros de Soledade, desde onde pode ser vista com maior
amplitude a posição do Túnel. Quando chegamos, tinham acabado de tomar
prisioneiro um capitão da força pública de São Paulo. Era o capitão Brandão,
meu amigo na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, e também fiquei sabendo por
ele, que um outro dos nossos antigos colegas, o capitão Gilberto Maciel da
Silva, tinha sido ferido de gravidade.
Três dias mais tarde fui
visitar a frente do Túnel, onde acampava o 10º regimento de infantaria,
preparando o que eles chamavam de “um movimento desbordante” contra as tropas
paulistas. Em Passa Quatro estava o amigo, capitão Ramalho, e com ele segui até
Maracá, que fica a uns 3 quilômetros de Passa Quatro e a 6 da estação do Túnel.
No dia seguinte, o 24 de julho,
o tenente Aricles e o coronel Portela saíram em missão até Guaxupé. Mais uma
noite em que fiquei para dormir num vagão da estrada de ferro em Passa Quatro.
No dia 25 de julho cheguei até
as posições perto do Morro do Cristal, a 1.750m de altitude. Desci com muita
dificuldade por mais de três quilômetros morro abaixo, aproveitando uma picada
aberta pela tropa de engenharia da força pública mineira. Depois de subir e a
descer morros enormes, envolvendo o flanco esquerdo dos paulistas, voltei a
cavalo para passar a noite num vagão, outra
vez.
No dia seguinte tive que
inspecionar o flanco esquerdo, até que fomos atingidos por rajadas de
metralhadoras, o que fez com que o sargento que dirigia o carro perdesse a
direção e se emaranhasse numa cerca viva. O coronel Ayres e o tenente Canavarro
foram feridos de leve. Sai do carro para tirar os arames farpados que se
escondiam atrás da cerca viva y senti uma batida nas costas, que pensei ser um tiro
de raspão de alguma bala perdida. Mas não foi nada e não posso perder tempo. Voltamos
sem pressa para descansar. Amanhã cedo vai começar o ataque ao Túnel, apoiado por
artilharia e pelas metralhadoras, e talvez por uma companhia da força pública
de Minas.
Um
colega, um soldado pracinha mineiro, está ai, duro, congelado com o fuzil em
mãos. Não está ferido, mas o vento gelado, que aumenta à medida que entramos no
território dos paulistas, deve ter acabado com a vida do coitado. Queima a
testa e os olhos; é como uma brasa gelada, cortante, úmida.
São
975 m de pura rocha, três metros de largura e mais de quatro ou cinco de
altura. O teto do túnel está queimado pelas chamas e cinzas da Maria Fumaça.
Mais de 250 homens morreram na batalha. Outros dizem que foram mais de
trezentos, e que uns 25 corpos continuam enterrados numa vala comum. O silencio
é estarrecedor. Estamos debaixo da montanha que chora.
Um
fuzil, um martelete, uma bandeirinha da cidade de Cruzeiro e dois cravos da
linha férrea nas mãos do soldado que parece dormir, mas que está congelado,
morto por hipotermia.
No dia 27 de julho, fomos para
as posições com o coronel Ayres, acompanhando os tenentes Gama Lobo, Monteiro e
Oswaldo Carvalho. Chegamos até onde estava acampado o coronel Lery Santos, que
comandava as tropas mineiras da força pública, e daí saímos para as trincheiras
do 10º regimento de infantaria para inspecionar os observatórios. O assalto está
planejado para o meio dia. Antes de começar as operações fui ver os tiros de
artilharia da bateria do capitão Jaime de Almeida. Os disparos foram bons, mas
a infantaria nada fez, a não ser uns poucos exercícios de trincheira.
Hoje é 28 de julho, e às quatro
da tarde os paulistas começam o ataque às posições mineiras e contra as tropas federais.
Dois dias depois, durante toda
a jornada de 30 de julho, foi o pior momento das batalhas no setor do Túnel,
com o maior número de baixas dos dois lados; fomos até a Fazenda São Bento e
mudamos a posição das peças de artilharia que agora já batem direto nas
trincheiras rebeldes. Encontrei no caminho o Juarez Távora e o Barcellos,
responsáveis pela área do Túnel da Mantiqueira. Saímos da Fazenda São Bento e
chegamos até o Morro do Cristal pouco depois do meio dia. Do alto da seção de metralhadoras
da 5ª companhia vemos todo o movimento da retaguarda inimiga, um pouco além dos
1.500 metros de distancia. Às cinco e quinze da tarde, um forte tiroteio ao
longo de toda a linha. As balas assobiam em cima de nossas cabeças. Não feriram
ninguém. A peça de artilharia conhecida como “a Violeta” é muito eficaz. Ouvimos
os barulhos de tiros de artilharia inimiga e deitamos, justo quando algumas
granadas explodiam muito perto de nós. Na força pública mineira houve pânico e muitas
mortes.
No dia seguinte, estava tudo
calmo e voltei a Passa Quatro para contabilizar os mortos e feridos. No
hospital encontramos uma vala na qual foram enterrados uns 23 mortos. Fui
informado que o General Jorge Pinheiro estava em Passa Quatro.
A
medida que melhor me inteiro dos acontecimentos e da chamada revolução
paulista, mais me convenço de que a elite paulistana, sobretudo, representa
melhor do que qualquer outra oligarquia, o ranço racista das classes altas
brasileiras contra o povo. Nunca aceitou a revolução de 30, menos ainda o
governo do Getúlio Vargas. E essa elite foi derrotada pelo Getulio e pelos
candidatos que ele apoiou. Atribuía a oligarquia paulistana a derrota aos
“marmiteiros” -mais uma expressão depreciativa que a direita tinha para os
trabalhadores, uma forma explicita de preconceito de classe.
A
ideologia separatista da revolta paulista do ano 1932 – que considerava São
Paulo como “a locomotiva da nação”, o setor mais dinâmico e trabalhador, que
arrastava os vagões preguiçosos e atrasados dos outros estados – sempre foi a
base do sentimento mais fortte da elite paulista em relação ao resto do país.
Os imigrantes, sobretudo italianos e espanhóis, que junto com os migrantes
mineiros e nordestinos ajudaram a construir a riqueza de São Paulo, eram todos chamados
de “baianos” ou “cabeças chatas”.
A
elite paulista foi protagonista das campanhas das senhoras de 1932, com doações
de joias e outros bens para a “salvação do Brasil”- e pelo jeito, os militares
de novas ditaduras vão ser sempre para eles os salvadores da pátria. O túnel
está cada vez mais frio; uma umidade que penetra nos ossos. E essa locomotiva
que não para de passar, assobiando, cuspindo fumaça, noite e dia. Sem parar
nestes últimos oitenta anos!
No dia 1º de agosto, como de
costume sai para percorrer os arredores do acampamento em Passa Quatro. As casas estão todas
vazias, e algumas poucas só com os donos homens. As mulheres estão em cidades
vizinhas ou escondidas nos grotões da serra. Os mineiros têm mais de 3 mil homens cercando a entrada do Túnel. Mas nunca nos meus vinte anos de vida tinha
visto tamanha violência produzida contra os pracinhas e voluntários pela
economia de força. Os combatentes estão espalhados de um modo primitivo, mal
abrigados e mal entrincheirados.
Continuará.
JV. São Paulo, 2 de septiembre
de 2013.
Fonte: Memórias do combatente Marius Teixeira Neto.
Ver Diário de Guerra do Vovô Marius
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