terça-feira, 10 de setembro de 2013

O Túnel da Morte. Memórias de um fantasma. 3ª parte.



O Túnel da Morte. Memórias de um fantasma. 
3ª parte.

Eu já disse que há oitenta e um anos que percorro este túnel? Andando a pé, de norte a sul e de cima pra baixo, há mais de oito décadas que tremo de frio nessas carnes, músculos e peles que já desapareceram há tanto tempo. E já contei que a umidade do inverno penetra nesses ossos que faz décadas que viraram farelo?
Pois é. Montar guarda a cada 36 horas, passar noventa minutos em pé, às vezes parado, outras andando de norte a sul, e de sul a norte, para evitar a infiltração dos paulistas, não é fácil. Mas, a verdade, é horrível andar sozinho e no escuro, com o vento frio batendo no corpo.

Pois é, lembro-me muito bem que assim que entrei no estado maior das forças armadas mineiras, já pude erceber que há uma certa indecisão quanto à fidelidade de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul. Ao final, os governos e suas tropas estão a favor ou em contra do governo federal de Getulio Vargas?
Mas, continuo agora com a descrição das nossas tropas: fazem parte do destacamento, dois batalhões da força pública policial de Minas, um deles comandando pelo tenente coronel Francisco Brandão e o outro pelo major Pérez.

Para alegrar um pouco a rotina e o clima pesado da guerra, a minha prima Viviana chegou sábado passado até a estação pra despedir-me. Mais tarde, ao passar pela Barra do Piraí, no estado do Rio de Janeiro, ainda encontrei o Julio, a Coca e o Dieguito, que trouxeram um pacote de frango assado e polenta frita para a viagem, mas que não demoramos nem dez minutos em devorar ai mesmo.
Houve ainda uma longa demora na hora do embarque das viaturas e dos animais em Barra Mansa porque alguém calculou mal o número de pranchas, e também porque apareceram mais caminhões e carros que haviam sido desapropriados a última hora. Improvisação.

Cansados de tanta espera, terminamos dormindo no trem. Em Volta Redonda, depois de mais uma longa demora, embarcamos toda a artilharia pesada. Partimos com quatro composições, às sete da noite de Barra Mansa, no dia 17 de julho e chegamos em Soledade, às cinco e meia da tarde do dia seguinte.
O 10º regimento seguiu para a região do Túnel, e enquanto isso, ficamos com o coronel Portela e o tenente Aricles num hotelzinho de Soledade.

O Túnel da Mantiqueira fica no leito da Viação Sul Mineira, que liga a cidade de Cruzeiro, em São Paulo, com a de Passa Quatro em Minas Gerais. São 1.120m de túnel que foi cavado pelos ingleses, quando construíram a estrada de ferro MG-SP. A última estação paulista na direção de Minas é a de Perequê; e a primeira estação mineira, ao deixar São Paulo, é a do Túnel. Pela Serra da Mantiqueira corre uma estrada, a SP-052 que em Minas se chama MG-158, e que na topo da qual se situa a divisa entre os dois estados. Por essa passagem se ligam a estação paulista de Perequê com a mineira do Túnel.
Hoje, 20 de julho, tomamos um banho no Rio Verde de Soledade. A minha missão como oficial orientador de um batalhão da força pública mineira vai começar em poucos dias. Esta função era do capitão Assunção que, mesmo ferido, não deixou a linha de frente. No dia seguinte recebi cartas do meu pai e da Viviana. Junto com os tenentes Aricles e Lucena fomos até um morro, a uns 4 mil metros de Soledade, desde onde pode ser vista com maior amplitude a posição do Túnel. Quando chegamos, tinham acabado de tomar prisioneiro um capitão da força pública de São Paulo. Era o capitão Brandão, meu amigo na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, e também fiquei sabendo por ele, que um outro dos nossos antigos colegas, o capitão Gilberto Maciel da Silva, tinha sido ferido de gravidade.

Três dias mais tarde fui visitar a frente do Túnel, onde acampava o 10º regimento de infantaria, preparando o que eles chamavam de “um movimento desbordante” contra as tropas paulistas. Em Passa Quatro estava o amigo, capitão Ramalho, e com ele segui até Maracá, que fica a uns 3 quilômetros de Passa Quatro e a 6 da estação do Túnel.
No dia seguinte, o 24 de julho, o tenente Aricles e o coronel Portela saíram em missão até Guaxupé. Mais uma noite em que fiquei para dormir num vagão da estrada de ferro em Passa Quatro.
No dia 25 de julho cheguei até as posições perto do Morro do Cristal, a 1.750m de altitude. Desci com muita dificuldade por mais de três quilômetros morro abaixo, aproveitando uma picada aberta pela tropa de engenharia da força pública mineira. Depois de subir e a descer morros enormes, envolvendo o flanco esquerdo dos paulistas, voltei a cavalo  para passar a noite num vagão, outra vez.

No dia seguinte tive que inspecionar o flanco esquerdo, até que fomos atingidos por rajadas de metralhadoras, o que fez com que o sargento que dirigia o carro perdesse a direção e se emaranhasse numa cerca viva. O coronel Ayres e o tenente Canavarro foram feridos de leve. Sai do carro para tirar os arames farpados que se escondiam atrás da cerca viva y senti uma batida nas costas, que pensei ser um tiro de raspão de alguma bala perdida. Mas não foi nada e não posso perder tempo. Voltamos sem pressa para descansar. Amanhã cedo vai começar o ataque ao Túnel, apoiado por artilharia e pelas metralhadoras, e talvez por uma companhia da força pública de Minas.

Um colega, um soldado pracinha mineiro, está ai, duro, congelado com o fuzil em mãos. Não está ferido, mas o vento gelado, que aumenta à medida que entramos no território dos paulistas, deve ter acabado com a vida do coitado. Queima a testa e os olhos; é como uma brasa gelada, cortante, úmida.
São 975 m de pura rocha, três metros de largura e mais de quatro ou cinco de altura. O teto do túnel está queimado pelas chamas e cinzas da Maria Fumaça. Mais de 250 homens morreram na batalha. Outros dizem que foram mais de trezentos, e que uns 25 corpos continuam enterrados numa vala comum. O silencio é estarrecedor. Estamos debaixo da montanha que chora.
Um fuzil, um martelete, uma bandeirinha da cidade de Cruzeiro e dois cravos da linha férrea nas mãos do soldado que parece dormir, mas que está congelado, morto por hipotermia.

No dia 27 de julho, fomos para as posições com o coronel Ayres, acompanhando os tenentes Gama Lobo, Monteiro e Oswaldo Carvalho. Chegamos até onde estava acampado o coronel Lery Santos, que comandava as tropas mineiras da força pública, e daí saímos para as trincheiras do 10º regimento de infantaria para inspecionar os observatórios. O assalto está planejado para o meio dia. Antes de começar as operações fui ver os tiros de artilharia da bateria do capitão Jaime de Almeida. Os disparos foram bons, mas a infantaria nada fez, a não ser uns poucos exercícios de trincheira.

Hoje é 28 de julho, e às quatro da tarde os paulistas começam o ataque às posições mineiras e contra as tropas federais.
Dois dias depois, durante toda a jornada de 30 de julho, foi o pior momento das batalhas no setor do Túnel, com o maior número de baixas dos dois lados; fomos até a Fazenda São Bento e mudamos a posição das peças de artilharia que agora já batem direto nas trincheiras rebeldes. Encontrei no caminho o Juarez Távora e o Barcellos, responsáveis pela área do Túnel da Mantiqueira. Saímos da Fazenda São Bento e chegamos até o Morro do Cristal pouco depois do meio dia. Do alto da seção de metralhadoras da 5ª companhia vemos todo o movimento da retaguarda inimiga, um pouco além dos 1.500 metros de distancia. Às cinco e quinze da tarde, um forte tiroteio ao longo de toda a linha. As balas assobiam em cima de nossas cabeças. Não feriram ninguém. A peça de artilharia conhecida como “a Violeta” é muito eficaz. Ouvimos os barulhos de tiros de artilharia inimiga e deitamos, justo quando algumas granadas explodiam muito perto de nós. Na força pública mineira houve pânico e muitas mortes.

No dia seguinte, estava tudo calmo e voltei a Passa Quatro para contabilizar os mortos e feridos. No hospital encontramos uma vala na qual foram enterrados uns 23 mortos. Fui informado que o General Jorge Pinheiro estava em Passa Quatro.

A medida que melhor me inteiro dos acontecimentos e da chamada revolução paulista, mais me convenço de que a elite paulistana, sobretudo, representa melhor do que qualquer outra oligarquia, o ranço racista das classes altas brasileiras contra o povo. Nunca aceitou a revolução de 30, menos ainda o governo do Getúlio Vargas. E essa elite foi derrotada pelo Getulio e pelos candidatos que ele apoiou. Atribuía a oligarquia paulistana a derrota aos “marmiteiros” -mais uma expressão depreciativa que a direita tinha para os trabalhadores, uma forma explicita de preconceito de classe.

A ideologia separatista da revolta paulista do ano 1932 – que considerava São Paulo como “a locomotiva da nação”, o setor mais dinâmico e trabalhador, que arrastava os vagões preguiçosos e atrasados dos outros estados – sempre foi a base do sentimento mais fortte da elite paulista em relação ao resto do país. Os imigrantes, sobretudo italianos e espanhóis, que junto com os migrantes mineiros e nordestinos ajudaram a  construir a riqueza de São Paulo, eram todos chamados de “baianos” ou “cabeças chatas”.
A elite paulista foi protagonista das campanhas das senhoras de 1932, com doações de joias e outros bens para a “salvação do Brasil”- e pelo jeito, os militares de novas ditaduras vão ser sempre para eles os salvadores da pátria. O túnel está cada vez mais frio; uma umidade que penetra nos ossos. E essa locomotiva que não para de passar, assobiando, cuspindo fumaça, noite e dia. Sem parar nestes últimos oitenta anos!


No dia 1º de agosto, como de costume sai para percorrer os arredores do acampamento em Passa Quatro. As casas estão todas vazias, e algumas poucas só com os donos homens. As mulheres estão em cidades vizinhas ou escondidas nos grotões da serra. Os mineiros têm mais de 3 mil homens cercando a entrada do Túnel. Mas nunca nos meus vinte anos de vida tinha visto tamanha violência produzida contra os pracinhas e voluntários pela economia de força. Os combatentes estão espalhados de um modo primitivo, mal abrigados e mal entrincheirados.


Continuará.

JV. São Paulo, 2 de septiembre de 2013.
Fonte: Memórias do combatente Marius Teixeira Neto. 
Ver Diário de Guerra do Vovô Marius

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