Um homem valente e até audacioso.
Porém, sensato, humilde
e sempre sorridente.
e sempre sorridente.
Foz
do Iguaçu, 17 de outubro de 1981.
Tinham passado exatos dois anos
e três meses depois da minha entrada legal no Brasil; mas, a situação não
deixava de ser esquisita porque, embora meu ingresso ao país como turista tivesse
sido dentro de todos os conformes, a saída da Argentina eu devia agradecer apenas
ao documento de identidade que um tal de Julio Melgarejo tinha perdido na
estação portenha do trem de Belgrano-R.
Tinha passado sem problemas na
checagem da gendarmería argentina
aquele 19 de julho de 1979, e passaria agora de novo, no meu primeiro retorno à
pátria, me repetia a mim mesmo, uma vez atrás da outra. Meu velho me esperava
em frente ao hotel da rua principal de Foz -naquela época uma pacata
cidadezinha de fronteira- decidido a ajudar-me no retorno, e a dar-me forças
para poder minguar o medo.
Passamos pela balsa e por uma
rápida revista das malas, sem demasiada atenção nos documentos por parte da gendarmería da província de Misiones. Os militares estavam mesmo
interessados era nos cinco ou seis jeans brasileiros que o meu pai -astuto como
sempre- havia colocado bem à vista na malinha que carregava o mais
ostensivelmente possível. Nem olharam para minha cara, mas também não se
atreveram a confiscar nenhuma das peças que o velho levava com o único
propósito de distrair os milicos. Tentaram, claro, mas não se animaram a
consumar o achaque. Meu pai tinha conseguido seu propósito e seguíamos direto
para Puerto Iguazú.
No dia seguinte chegamos na
casa dos meus pais, depois de passar por duas novas revistas da gendarmería: primeiro, a 50 km da
fronteira em Misiones, e mais tarde na estrada entre San Francisco e Córdoba.
Córdoba,
18 de outubro de 1981.
Fim da tarde do meu segundo dia
na Argentina, depois de dois anos de exílio que já tinham se convertido em
imigração.
Sinto muito frio, mesmo sendo primavera. Ou será que é o medo? Estou
num bar da galeria em frente à Plaza San
Martín de Córdoba, esperando meu pai que foi até o Cabildo,
a central de polícia, conversar com o marido de uma cliente. Como ele
acabou de conceder três freezers dos seus sorvetes Laponia, a mulher acha que o marido não vai se recusar a facilitar-me
um laissez-passer para que eu possa ir sem riscos até a embaixada
brasileira em Buenos Aires e, quem sabe, sair com a Modelo-18, documento
indispensável, prévio à Modelo-19 que iria me garantir a permanência legal no
Brasil.
O laissez-passer, para
quem não sabe, é usado para viagens de ida para o país expedidor, por um
período curto, sendo inválido para outros trechos, e substituindo
o passaporte, quando por algum motivo é impossível obtê-lo, ou não é
aceito pelas autoridades do país de destino. No meu caso era apenas para viajar
em segurança os 703 km de Córdoba até Buenos Aires, e poder pedir o passaporte
definitivo.
Buenos
Aires, 19 de outubro de 1981.
O marido da cliente do meu pai
não era um mero escrivão da polícia, como meu pai tinha me dito, talvez para
não me apavorar mais. Era um subdelegado, e se bem emitiu de próprio punho o
tal do laissez-passer, mandou dizer
bem claramente que eu tinha um frondoso dossiê, com a tríplice comandância das
principais forças guerrilheiras do país, que a essa altura já estavam
desestruturadas e em retirada. Ou seja, o marido da cliente do meu pai me
“deixava” ir com meu salvo-conduto até Buenos Aires, sempre e quando eu pegasse
meu passaporte, arrumasse a Modelo-18 na embaixada brasileira...e sumisse. E,
por quê? Porque eu tinha sido um perigoso malabarista que conseguira comandar
três partidos revolucionários ao mesmo tempo, grandes organizações que haviam
sido de um certo modo rivais, e que apenas quatro anos antes, em 1979, tinham
tentado se aliar para combater a ditadura de Videla. Só um bando de milicos pra
ter semelhante ideia estapafúrdia.
Eu não sabia se rir da besteira
do subdelegado da polícia de Córdoba, abraçar o meu pai pela ajuda que me dava,
ou sair correndo, chorando aos berros pelo medo que se metia nos ossos só de pensar que o tira
sabia que eu estava bem perto dele, e prestes a viajar muitos quilômetros por
dentro do país. Ou seja, podia prender-me a qualquer momento, e assim foi que
paguei a conta do barzinho e saímos quase que voando com o meu pai pela calle Rivadavia, olhando para trás para
ver se não éramos seguidos, até entrar na rodoviária local e pegar o primeiro
ônibus para a capital federal.
Pensei que meu velho iria me
acompanhar só até a plataforma, mas não. Comprou fichas e achou um telefone pra
ligar para minha mãe e avisar que viajaria comigo.
Entro na embaixada do Brasil, na
Calle Cerrito na altura do 1300, bem no
comecinho da Avenida Alvear e em
frente à Plaza Carlos Pelegrini. O
edifício é um dos palácios da burguesia portenha de inícios do século XX,
herdeira das terras mapuches e tehuelches que passaram das mãos dos
seus autênticos proprietários, os índios, para a oligarquia da capital, por
obra e graça do general Julio A. Roca e sua sangrenta campanha ao que ele
chamou de “deserto” patagônico, em 1878.
Enquanto eu nem reparava nos
detalhes arquitetônicos e históricos do prédio, meu pai oficiava de “campana”,
sempre caminhando uns vinte metros atrás de mim, e me esperando na entrada e à
saída de cada lugar por onde eu arrastava o meu processo de documentação na
nova pátria tropical.
Sair da embaixada com o protocolo
de entrada à Modelo-18 até que foi fácil. Difícil mesmo foi pegar, antes disso,
os outros dois protocolos -o do atestado de antecedentes da PF argentina e o do
passaporte-, papeizinhos sem os quais não dava para iniciar a longa tramitação
pelos labirintos kafkianos das burocracias dos meus dois países, o novo e o
antigo.
Nada que o meu velho não
pudesse resolver: outro amigo, agora um despachante de Águila-Saint, foi até a
agência de viagens da sua confiança e mandou o vendedor pra deixar primeiro e
pegar depois a documentação do passaporte e do atestado na polícia federal
argentina. Fácil, não é? Para meu pai, sim. Disse ao vendedor que queria
comprar a passagem aérea para São Paulo, o que nos anos 80 era quase que um
luxo, mas que ele deveria ir e voltar com toda a papelada necessária da polícia.
E assim foi que sai com o meu
passaporte –o atestado de bons antecedentes não saiu nunca, provavelmente
porque o exército argentino ainda espera, desde 1976 e até hoje, que me
apresente pra fazer o serviço militar-.
Bom, tudo isto foi para contar
como era meu pai, homem valente, alegre, decidido e muito distraído, que por
sorte não cometeu nenhum dos seus erros de distração ao longo desta rápida
aventura; a não ser, claro, os cinco ou seis jeans que comprou na fronteira, exatamente
num dia 17 de outubro, data em que os milicos tradicionalmente concentravam
suas forças militares para recordar ao povo quem é que mandava naqueles tempos
tenebrosos. Poderíamos ter sido presos por contrabandistas, mas com o meu pai
sempre dava tudo certo.
Fim
JV, entre San Justo e Córdoba, 7
de setembro de 2013.
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