domingo, 22 de setembro de 2013

O narrador asmático e o grande engarrafamento no JSP



O narrador asmático do conto Reunião, de “Todos los Fuegos el Fuego” de Cortázar, me contou um dia que as senhoras de Santana agora estão mudando radicalmente de profissão. Grandes numerais indicam aos solteiros desavisados que, ali onde outrora brilhava um farolzinho vermelho, luzem agora belas moças convidativas e mundanas. Chineses ávidos de lucro fácil afastaram as velhinhas moralistas e reinstauram a velha moral, a de sempre, crua e –claro- nua, nuazinha em pelo. Palavra mais, ou palavra menos, foi o que o narrador asmático do Reunião me disse.

Mas o meu bairro fica bem mais alto, em meio aos tucanos, jacus e saruês, todos eles misturados em moderadas doses com diversos cronópios e famas zoomorfos. Maritacas que fogem dos papagaios, que fogem dos tucanos (no bom sentido da palavra) que, por sua vez, escapam dos saruês. Todo cuidado é pouco!

É de paralelas infinitas que o mar se toma? me perguntou a Maga, enquanto pulava a amarelinha com uma perna só, rindo à toa porque o fato a fez lembrar-se do Saci Pererê, bem na hora errada. O Homem com Cara de Criança Malvada limpou a garganta e saiu de fininho, não sem antes pontificar: Rayuela é amarelinha, e pronto.

Mas o fato é que eu voltava há pouco do Jardim São Paulo de deixar filho e nora em casa, quando um extraordinário engarrafamento na rodovia que vai dar em Paris me abduziu, e os carros passaram mais de um mês inteiro parados na estrada. Novas relações foram criadas, e até floresceu um novo comércio; outra vida, novas disputas, e novas formas de convivência e de sobrevivência, e até romances e casamentos surgiram à beira da estrada. 
Pude ver, a menos de cem metros a Maga, que estava no volante de uma Kombi 1962, enquanto o Homem com Cara de Criança Malvada cochilava no banco do passageiro com um cachimbo meio caído na boca. De repente, o escritor com Cara de Criança acordou, olhou para o padre da igreja que passava pela Leôncio e sussurrou: Rayuela é amarelinha, sim senhor! Pela cara que fez ao passar do meu lado, acho que o cura não entendeu bulhufas!

Pois é, mas a Elizabeth Lorenzotti também disse que o grande cronópio não merece o Jardim São Paulo, e a mesma coisa pensou a Maga; isto eu sei da boca da própria, uma vez que o engarrafamento se prolongava e eu desci do carro para bater um papinho com o casal da Kombi. Ninguém merece, disse a Maga. Paris é uma festa móvel, ou era pelo menos em 1968, quando queríamos o impossível, me esclarece a Elizabeth Lorenzotti que dizia ela, saltando as barricadas e sentindo o cheiro dos pneus queimados. Uma rosa é uma rosa, nada será como antes, amanhã ou depois de amanhã. Mal sabia ela, a Maga, que no século XXI a roda giraria para um pequeno ponto e o Jardim São Paulo seria tragado por manifestações libertárias que surpreenderiam a todos os que moravam à direita, à esquerda e ao centro, derrubando prateleiras, estátuas, estantes e dizendo: sim!

E nem imaginava a Maga, mas muito menos ainda Cortázar que, no monstruoso engarrafamento que ia de Paris ao sul, passando pelo metrô Tucuruvi e Jardim São Paulo, os carros chegariam -aproveitando uma ruga do tempo-espaço- até a esquina da Cañada com o Bulevard San Juan, bem na hora em que as hordas proletárias começavam a produzir o Cordobazo, em pleno maio de 1969. E suspiravam as senhoras de Santana pelos operários aindiados, agatinhados, de olhos verdosos e pele escura, que saiam das fábricas e se juntavam aos estudantes para trocar o “faire l'amour et la guerre” pelo mais procaz “viva el papo y meta bala!”. 
E Renée Salamanca, Raimundo Ongaro e Agustín Tosco, líderes operários e intelectuais libertários passavam  na primeira linha das colunas de trabalhadores; sérios, compenetrados, e iam arrancando sem notar, escandalosos gemidinhos das gargantas pudicas das senhoras do bairro.
 -Muy bueno! Disse a Maga, que de vez em quando lembrava do seu espanhol nativo, -sou fã descarada do Homem de Olhar Bovino, sim, mas também dos lutadores cordobeses!

Mas eu queria sair do engarrafamento; não me importava que pudesse virar crônica num best-seller e eu ficar famoso. Pedi ao escritor com Cara de Criança Malvada o manual do usuário do intelectual em momentos de pânico; estava bem escrito, claro e preciso, mas inda assim, li as instruções em meio ao fragor do Cordobazo, e entendi tudo ao contrário. Por isso é que quarenta anos depois, ao invés de subir, desci pela escada escondida no subsolo de meu prédio, saí num corredor do metrô, entre Santana e Jardim São Paulo, e terminei encontrando-me com um Cortázar confuso, perdido e desmemoriado.


Javier Villanueva. São Paulo, 22 de septiembre de 2013. Inspirado numa conversa feicibuquiana e até usando trechos das epístolas eletrônicas com Elizabeth Lorenzotti.



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