A revista Readers’ Digest e a Guerra Fria.
Ou, a vanguarda pedagógica do neoliberalismo na América
Latina na década de 1960.
Quando falamos hoje -2015- do Instituto Millenium, e dos
escribas como Reinaldo Azevedo, Pondé, Mainardi, Villas, e outros tantos
jornalistas, historiadores e artistas que levantan de modo cada vez mais
agressivo as bandeiras do liberalismo, numa defesa ardorosa do sistema
capitalista, no posso deixar de me lembrar da velha Seleções do
Reader’s Digest.
A revista nasceu nos EUA de uma ideia brilhante que teve o
norte-americano Witt Wallace, de Pleasantville, Nova York, em 1918, quando tratava
dos ferimentos sofridos durante a 1ª Guerra Mundial. O conceito previa juntar
os melhores artigos e os mais úteis que já tivessem sido publicados por
diversos autores numa obra única, com um texto sintético, cuidando de não perder
nem o conteúdo nem a graça do texto. O projeto do Wallace foi rejeitado pelas
grandes editoras da época, e então ele lança por conta própria, em 1922, a 1ª
edição da Reader’s Digest, que cresce rapidamente em grandes
proporções nos EUA. Vinte anos depois, chegaria ao Brasil e à América Latina, com
o nome de Seleções aqui e Selecciones
no resto do subcontinente. Na década de 1960, a Seleções do Reader´s Digest foi uma das revistas de maior projeção na América
Latina, o que a tornou uma ferramenta essencial da disputa ideológica no
contexto da guerra fria.
Na Terra Brasilis a revista foi um sucesso imediato e estrondoso.
A primeira edição em português esgotou com 100 mil cópias vendidas muito rapidamente.
A início dos anos de 1970, a tiragem da Seleções do Reader´s Digest alcança o meio milhão de exemplares. Limitada até então a
traduções de textos estrangeiros, a Seleções teria, em 1997, seu
próprio núcleo editorial brasileiro.
No convulsionado século XX, o Reader´s Digest cresceu até proporções gigantescas, levando notícias, informações e,
sobretudo, as suas opiniões às populações daquela metade do planeta que tinha
ficado debaixo da influência norte-americana, especialmente depois da 2ª Guerra
Mundial, entrando ao galope no período de Guerra Fria. Foi uma revista de forte
visão e postura internacional, considerada de forte impacto ideológico no
século XX. É a revista há mais tempo em circulação o Brasil e a segunda maior
publicação da história editorial do país.
O Brasil, como todo e qualquer país capitalista dependente e em
pleno desenvolvimento sentiu, já à partir dos anos de 1930 do século passado, o
impacto da influência americana. A penetração econômica e militar bateu em
cheio na superestrutura da sociedade, modificando costumes e hábitos, mudando
ou simplesmente trocando os padrões de comportamento, e até a própria linguagem,
que como todos sabemos, é uma das expressões diretas e mais claras da consciência,
que é nada menos que o nosso olhar, ouvir e sentir da realidade.
O cinema introduziu –junto com os arranjos de bananas e
abacaxis da Carmem Miranda nos filmes norte-americanos em que participou- a
mentalidade da guerra, a ideia do heroísmo individual, sempre encarnado pelo herói
norte-americano, seja ele um soldado, detetive, advogado ou cowboy. Logo em
seguida, aparecem com força os “comics”, as histórias em quadrinhos, com seus
Super-Homem e Capitão América, tirando de vez da consciência do cidadão
brasileiro de classe média –o “remediado” dos anos 45 a 70- aquele herói
nacionalista e histórico que curtem os seus vizinhos latino-americanos. O herói
não é mais alguém que se entrega pelo bem comum, social, e sim um triunfador com super-poderes que se
esforça pelos EUA. É o símbolos do bem, do American-way-of-life, que encobre
com sua pureza lúdica e fantástica do “comic”, a ideologia da violência brutal,
a mitologia do capital financeiro.
O soldadinho de chumbo, e o índios e cowboy, são trocados pelo
soldadinho de “material plástico”, por revólveres e metralhadoras “infantis”.
As crianças de classe média do fim da guerra viviam como nos filmes e nos “comics”,
mascando chicletes (ás vezes com banana) e bebendo Coca-Cola e Crush em graciosas
garrafinhas de vidro. As mocinhas da pequena-burguesia e das classes médias ganhavam
maior liberdade, fumavam e trocavam as saias pelos shortinhos e calças, mesmo
que às vezes tivessem que mentir à mãe que iam estudar quando na realidade
saíssem a namorar. Jovens homens e mulheres ouviam jazz, dançavam swing e
blues. O rádio impunha de um modo irrecusável a música norte-americana, que de
repente passou a ser apenas “americana”.
Desde Hollywood chegavam as normas e os ideais de comportamento
e de beleza. Na direção contraria à da Carmem Miranda, passaram pela Patropi o Douglas
Fairbanks e Orson Welles, que como tantos outros astros e estrelas da
constelação do cinema hollywoodiano, venderam a guerra e promoveram a imagem
dos EUA como uma mercadoria de grande prestígio.
Os primeiros anos depois da 2ª Guerra Mundial, e terminados
de modo brutal –duas bombas atômicas- os combates contra o Japão, com as
poderosos, porém debilitados estados europeus, só duas superpotências brilham
no cenário global: os EUA e a URSS, que iniciam, em larga escala, um longo
conflito ideológico e de competição pela influência no mundo ocidentalizado,
mas também nas regiões mais atrasadas do planeta. O período da Guerra Fria foi
de importância histórica global, pois a corrida econômica, armamentista e
política entre os EUA e a URSS era também cultural e ideológica, e moldaria o
cenário mundial de um modo definitivo. A influência e a preponderância norte-americanas
foram inquestionáveis, e impostas ao mundo capitalista de um modo inegável.
A
propaganda de guerra se fez ver no cinema, na TV, rádio, e jornais e nos outros
meios de comunicação. Das revistas, entre as que se destacava -com um alcance
maior que qualquer outra naqueles tempos- a Seleções do Reader’s Digest,
era a mais lida de todo o século XX, com tiragens sem precedentes. Por meio dela
os norte-americanos, argentinos, brasileiros e os cidadãos das classes médias do
mundo capitalista sabiam da guerra e formavam suas opiniões e concepções em
base aos padrões globalizantes da revista do Reader’s Digest.
Continuará.
Javier Villanueva. San Fernando do Vale de Catamarca, janeiro de 2015.
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