sábado, 21 de fevereiro de 2015

O Readers’ Digest e a Guerra Fria



A revista Readers’ Digest e a Guerra Fria.
Ou, a vanguarda pedagógica do neoliberalismo na América Latina na década de 1960.

Quando falamos hoje -2015- do Instituto Millenium, e dos escribas como Reinaldo Azevedo, Pondé, Mainardi, Villas, e outros tantos jornalistas, historiadores e artistas que levantan de modo cada vez mais agressivo as bandeiras do liberalismo, numa defesa ardorosa do sistema capitalista, no posso deixar de me lembrar da velha Seleções do Reader’s Digest.

A revista nasceu nos EUA de uma ideia brilhante que teve o norte-americano Witt Wallace, de Pleasantville, Nova York, em 1918, quando tratava dos ferimentos sofridos durante a 1ª Guerra Mundial. O conceito previa juntar os melhores artigos e os mais úteis que já tivessem sido publicados por diversos autores numa obra única, com um texto sintético, cuidando de não perder nem o conteúdo nem a graça do texto. O projeto do Wallace foi rejeitado pelas grandes editoras da época, e então ele lança por conta própria, em 1922, a 1ª edição da Reader’s Digest, que cresce rapidamente em grandes proporções nos EUA. Vinte anos depois, chegaria ao Brasil e à América Latina, com o nome de Seleções aqui e Selecciones no resto do subcontinente. Na década de 1960, a Seleções do Reader´s Digest foi uma das revistas de maior projeção na América Latina, o que a tornou uma ferramenta essencial da disputa ideológica no contexto da guerra fria.

Na Terra Brasilis a revista foi um sucesso imediato e estrondoso. A primeira edição em português esgotou com 100 mil cópias vendidas muito rapidamente. A início dos anos de 1970, a tiragem da Seleções do Reader´s Digest alcança o meio milhão de exemplares. Limitada até então a traduções de textos estrangeiros, a Seleções teria, em 1997, seu próprio núcleo editorial brasileiro.
No convulsionado século XX, o Reader´s Digest cresceu até proporções gigantescas, levando notícias, informações e, sobretudo, as suas opiniões às populações daquela metade do planeta que tinha ficado debaixo da influência norte-americana, especialmente depois da 2ª Guerra Mundial, entrando ao galope no período de Guerra Fria. Foi uma revista de forte visão e postura internacional, considerada de forte impacto ideológico no século XX. É a revista há mais tempo em circulação o Brasil e a segunda maior publicação da história editorial do país.

O Brasil, como todo e qualquer país capitalista dependente e em pleno desenvolvimento sentiu, já à partir dos anos de 1930 do século passado, o impacto da influência americana. A penetração econômica e militar bateu em cheio na superestrutura da sociedade, modificando costumes e hábitos, mudando ou simplesmente trocando os padrões de comportamento, e até a própria linguagem, que como todos sabemos, é uma das expressões diretas e mais claras da consciência, que é nada menos que o nosso olhar, ouvir e sentir da realidade.

O cinema introduziu –junto com os arranjos de bananas e abacaxis da Carmem Miranda nos filmes norte-americanos em que participou- a mentalidade da guerra, a ideia do heroísmo individual, sempre encarnado pelo herói norte-americano, seja ele um soldado, detetive, advogado ou cowboy. Logo em seguida, aparecem com força os “comics”, as histórias em quadrinhos, com seus Super-Homem e Capitão América, tirando de vez da consciência do cidadão brasileiro de classe média –o “remediado” dos anos 45 a 70- aquele herói nacionalista e histórico que curtem os seus vizinhos latino-americanos. O herói não é mais alguém que se entrega pelo bem comum, social,  e sim um triunfador com super-poderes que se esforça pelos EUA. É o símbolos do bem, do American-way-of-life, que encobre com sua pureza lúdica e fantástica do “comic”, a ideologia da violência brutal, a mitologia do capital financeiro.

O soldadinho de chumbo, e o índios e cowboy, são trocados pelo soldadinho de “material plástico”, por revólveres e metralhadoras “infantis”. As crianças de classe média do fim da guerra viviam como nos filmes e nos “comics”, mascando chicletes (ás vezes com banana) e bebendo Coca-Cola e Crush em graciosas garrafinhas de vidro. As mocinhas da pequena-burguesia e das classes médias ganhavam maior liberdade, fumavam e trocavam as saias pelos shortinhos e calças, mesmo que às vezes tivessem que mentir à mãe que iam estudar quando na realidade saíssem a namorar. Jovens homens e mulheres ouviam jazz, dançavam swing e blues. O rádio impunha de um modo irrecusável a música norte-americana, que de repente passou a ser apenas “americana”.

Desde Hollywood chegavam as normas e os ideais de comportamento e de beleza. Na direção contraria à da Carmem Miranda, passaram pela Patropi o Douglas Fairbanks e Orson Welles, que como tantos outros astros e estrelas da constelação do cinema hollywoodiano, venderam a guerra e promoveram a imagem dos EUA como uma mercadoria de grande prestígio.


Os primeiros anos depois da 2ª Guerra Mundial, e terminados de modo brutal –duas bombas atômicas- os combates contra o Japão, com as poderosos, porém debilitados estados europeus, só duas superpotências brilham no cenário global: os EUA e a URSS, que iniciam, em larga escala, um longo conflito ideológico e de competição pela influência no mundo ocidentalizado, mas também nas regiões mais atrasadas do planeta. O período da Guerra Fria foi de importância histórica global, pois a corrida econômica, armamentista e política entre os EUA e a URSS era também cultural e ideológica, e moldaria o cenário mundial de um modo definitivo. A influência e a preponderância norte-americanas foram inquestionáveis, e impostas ao mundo capitalista de um modo inegável. 
A propaganda de guerra se fez ver no cinema, na TV, rádio, e jornais e nos outros meios de comunicação. Das revistas, entre as que se destacava -com um alcance maior que qualquer outra naqueles tempos- a Seleções do Reader’s Digest, era a mais lida de todo o século XX, com tiragens sem precedentes. Por meio dela os norte-americanos, argentinos, brasileiros e os cidadãos das classes médias do mundo capitalista sabiam da guerra e formavam suas opiniões e concepções em base aos padrões globalizantes da revista do  Reader’s Digest

Continuará.

Javier Villanueva. San Fernando do Vale de Catamarca, janeiro de 2015.

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