Ideologia e propaganda.
"Veja" hoje, "Seleções do Readers' Digest" ontem.
A mesma Guerra Fria de sempre.
3ª e última parte
Leia a 1ª parte aqui:
http://javiervillanuevaliteratura.blogspot.com.br/2015/02/a-revista-readers-digest-e-guerra-fria.html?spref=fb
E a 2ª parte aqui:
http://javiervillanuevaliteratura.blogspot.com.br/2015/02/o-novo-liberalismo-guerra-fria-e.html?spref=fb
A revista Seleções do Reader’s Digest, já
comentamos antes, apresenta um caso de sucesso excepcional no mercado
editorial. E é que a sua diagramação e conceito de revista é também uma
verdadeira novidade. Ela consegue ser, ao mesmo tempo, um material para ser lido
e colecionado como uma revista, e guardado, cuidado e “respeitado” como um livro.
Por muitos anos ela podia ser encontrada em salas de espera
de clínicas, nos revisteiros de salões de beleza, e até em respeitáveis
prateleiras de bibliotecas, junto com enciclopédias, ou obras clássicas, ou as
melhores coleções de ficção científica.
Na abordagem dos conteúdos, a revista foi uma pioneira no
tema –tão atual hoje na nossa classe média emergente- do mérito e a
“meritocracia”; e para isto contou com redatores que relatavam o sucesso dos
cidadãos norte-americanos comuns, que ficavam assim unidos com o leitor brasileiro,
fusionados numa causa comum, o que sem dúvida muito contribuía para o alcance
do interesse popular. É difícil apontar com certeza a existência de linhas
tendenciosas e doutrinadoras em todas as reportagens, mas é importante registrar
que aquela era uma situação de guerra e de grandes interesses em jogo. A
revista Seleções atingiu sucesso no Brasil, e na América
Latina, sobretudo nos anos de 1950 e 60, decaindo aos poucos nas décadas
seguintes.
Essa mudança vai ser sentida no início de 1970 quando os
escritórios da Seleções do Readers’
Digest se transferem definitivamente do Brasil para Portugal.
A velha e insistente revista mensal brasileira Seleções do Reader's Digest foi, entre
os anos de 1954 e 1964, uma publicação norte-americana que, baixo a
responsabilidade da Editora Ypiranga S.A., se concentrou na propaganda
ideológica pró-ocidente durante os longos e tenebrosos anos da Guerra Fria. Assoprando
com força na intolerância política, podemos ver que as edições sempre percorreram
dois caminhos paralelos. No primeiro, através da seleção para análise e
discussão de aqueles artigos que veiculavam uma clara temática anticomunista, de
modo de tomar alguns dos elementos das disputas entre os EUA e a URSS durante a
guerra fria, e oferecer as representações ideológicas que os norte-americanos
construíam sobre seu opositor. A revista tentava assim montar um imaginário
popular que justificasse a superioridade da democracia e das liberdades no
ocidente, em contra da tirania dos regimes comunistas.
A campanha anticomunista ostensiva que orientava as edições
do Reader's Digest nos diferentes
países, acompanhava a mesma formas e os alinhamentos da geopolítica da Guerra Fria,
criando o “cordão sanitário de segurança” que os EUA promoviam como garantia de isolamento em
torno dos países comunistas, tudo o qual negava e boicotava, de fato, qualquer
tipo de esforço para uma efetiva coexistência pacífica. A discussão da
intolerância política, desemboca necessariamente na questão dos direitos, e exige
uma investigação mais profunda do aparato jurídico e político da época,
dividida em dois momentos, antes de 1964, quando as direitas atacavam o governo
constitucional de Jango Goulart, e durante a ditadura. Por isso, um outro
caminho que se pode percorrer na pesquisa é a análise das relações entre a
revista Seleções e o mercado
brasileiro da imprensa e –semelhante à Veja de hoje e daqueles anos- ver as suas
articulações com o mundo político e parlamentar, estudando por exemplo, os
trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito -CPI n° 33/63- de julho de 1963 na
Câmara dos Deputados Federais para investigar a atuação das revistas
estrangeiras no país.
Sobre toda esta questão, vale a pena ler de J. Micklethwait e
R. Wooldrige, “Uma nação conservadora”. Com relação ao tema, também é
interessante a leitura de Hayek, em cujo trabalho “Caminhos da escravidão”, é possível
ver sua notável compreensão dos mecanismos através dos quais o sistema pode
gerar um consenso cultural e ideológico por meio da propaganda. Embora o texto
critique a propaganda totalitária, a explicação que ele dá sobre a luta
simbólica em torno do significado das palavras é muito interessante também.
A este nível, é também bom procurar a análise de Helmut
Dubiel em relação à utilização Helmut Dubiel em relação à utilização da língua
e das variadas linguagens. Em vários artigos, eles analisam também o uso do
conceito “revolução” nas Seleções do
Readers’ Digest em uma ação de desconstrução, com o intuito de transformação
do mesmo e o esvaziamento do seu conteúdo.
Para resumir e finalizar, digamos que a revista apresenta
dois tipos de artigos. Por um lado, as seções mais ou menos fixas e outras com
ensaios, notas e livros sintetizados que dão o nome à publicação: já comentamos
antes que “digest” em inglês, pode ser traduzido como “resumo”, e também por
“digestão”, ou seja, um fast-food de ideologia.
Os primeiros oferecem uma variedade de contos humorísticos,
sumários de notícias de qualquer área do conhecimento, específicos ou para rever
pensamentos ou aforismos memoráveis. Essas seções são de uma leitura rápida, e
são ideais para uma primeira abordagem à publicação. Em seguida, você pode aprofundar
na leitura dos artigos mais longos. Estes, por sua vez, também tendem a
carregar em suas páginas finais, uma ou mais piadas ou histórias curtas. De
alguma forma, depois da agitação de uma leitura complexa, é um respiro, um
alívio sutil que a revista dá ao leitor, como uma pequena pausa. Por estas características
da revista, organizada a partir de uma multiplicidade de artigos e de seções diferentes,
o que vemos ao abrir a publicação é uma resposta para a seguinte abordagem,
como um emaranhado de temas das mais variadas naturezas.
Parece uma realidade fragmentada, que reproduz a divisão do
mundo em parcelas que o leitor já tem legitimado em sua experiência cotidiana.
Cada área aparece claramente definida e separada das outras, isolada e impedida
de uma possível coesão mais globalizadora. A resposta a essa fragmentação do
conhecimento, é a de evitar que o leitor seja capaz de intuir como se
relacionam as contradições que de fato estão expressas nas diferentes questões
abordadas nos artigos e, em consequência, para que as soluções levantadas apareçam
como individuais e não como o que são, uma visão ideológica sistemática.
Ao levar o leitor a emular esse rol individualista, de
progresso e de “mérito próprio”, afastado de qualquer vínculo social, a Seleções do Readers’ Digest acaba cumprindo
assim, à perfeição, o seu papel moralista de veículo de reprodução da ideologia
dominadora.
Alguma semelhança com a moderna Veja? Você decide.
Javier Villanueva. Santiago de Chile, enero de 1998.
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